Mudar a lógica do sistema – pela qual empresas ignoram as consequências de orientar sua atuação em torno do retorno e do risco – para outra, na qual investidores, negócios e governos considerem retorno, risco e impacto para melhorar a vida das pessoas e o ambiente: esta é a Revolução de Impacto proposta pelo investidor e inovador social Sir Ronald Cohen.
A seu ver, trata-se de um novo modelo mental capaz de provocar uma transformação disruptiva no capitalismo, cada vez mais necessária, uma vez que os governos e a filantropia não conseguem lidar sozinhos com a escala das desigualdades sociais e dos problemas ambientais. “Os governos precisam trazer o capital privado para dentro do jogo, pois não conseguem gerar mais impostos para lidar com os problemas, e nem possuem o tipo de inovação e o empreendedorismo necessários para encontrar as soluções”, diz.
Nesta entrevista à Página22, Cohen traça uma linha histórica, mostrando como os investidores passaram a considerar risco, retorno e, mais recentemente, impacto. Hoje ele vê o movimento como irreversível. Já existem globalmente, de acordo com pesquisa realizada pela Global Sustainable Investment Review em 2016, US$ 22 trilhões direcionados para investimentos pautados por critérios ambientais, sociais e de governança das empresas. Esse valor representa 25% de todos os recursos sob gestão profissional. Um dos desafios do momento, em sua avaliação, é trazer grandes investidores para esse campo. Nesse sentido, Cohen sugere que seguradoras e gestores de fundos de pensão e de grandes fortunas criem pools, por meio dos quais possam investir em fundos menores, focados em impacto socioambiental.
Para ele, o ponto de virada neste campo ocorrerá quando houver um modelo de mensuração de impacto robusto e reconhecido pelo mercado, como os modelos de mensuração de risco. Para fazer frente a esse desafio, Cohen e sua equipe, em colaboração com a Universidade de Harvard e especialistas de todo mundo, estão trabalhando para chegar a 2020 com uma proposta de modelo de mensuração que defina princípios gerais para a contabilidade de impacto.
Sir Ronald Cohen preside o Global Steering Group for Impact Investment (GSG) e The Portland Trust. É cofundador do Bridges Fund Management e do Big Society Capital. Em sua obra On Impact – A guide for Impact Revolution, apresenta-se como filantropo, venture capitalist, investidor em private equity e inovador social. Há duas décadas, reúne esforços para que o capital privado promova benefícios sociais e ambientais. Nascido no Egito, deixou a terra natal como refugiado aos 11 anos, passando a residir no Reino Unido.
O subtítulo do livro de sua autoria é Um Guia para a Revolução do Impacto. O que torna o investimento de impacto revolucionário? Qual é o propósito dessa revolução?
O propósito dessa revolução é migrar de um sistema no qual as empresas ignoram as consequências de orientar sua atuação em torno do retorno e do risco para outro, no qual os negócios conseguem ajudar os governos a melhorar a vida das pessoas e o planeta.
Do ponto de vista histórico, tivemos, primeiramente, um capitalismo no qual os governos tentavam controlar o comércio externo. Depois, vivemos um período laissez-faire, em que os governos saíram de cena. Em seguida, veio a época do keynesianismo, com o gerenciamento das economias, em que se buscou manejar as políticas monetárias para regular o nível de desemprego. Depois passamos para o neoliberalismo, quando as pessoas disseram novamente que “o propósito dos negócios é fazer dinheiro”.
Com o modelo risco-retorno-impacto, temos uma mudança histórica, na direção do que chamamos de mercados gerenciados. Muitos países não querem desistir do mercado, e sim tentar utilizá-lo a seu favor, o que representa uma grande mudança no modelo mental.
Que dados o senhor tem para mostrar o desenvolvimento desse mercado e para acreditar que essa é uma tendência irreversível?
As tendências são claras. Vemos as pessoas mais novas consumindo produtos de empresas com as quais compartilham valores, e deixando para trás as que possuem valores com os quais não concordam. Temos empresas surgindo com base nos novos desejos dos consumidores. Vemos a Tesla vendendo carros para consumidores que, além de possuir um veículo, querem evitar a poluição do meio ambiente. Um outro exemplo: hoje, no mundo, 1 a cada 4 dólares investidos em ativos financeiros considera critérios ambientais, sociais e de governança [ESG, na sigla em inglês] como fatores de decisão. Isso representa US$ 22 trilhões.
O campo de investimento de impacto tem crescido mais rapidamente ou mais devagar do que o esperado?
Acredito que o campo tenha crescido mais rapidamente em termos do número de países, se olharmos, por exemplo, para os Social Impact Bonds [contratos de pagamento por resultados, geralmente firmados entre governo e investidores privados]. Não houve, talvez, um crescimento tão relevante no volume de recursos de fundos de investimentos focados em impacto social.
No entanto, agora vejo vários produtos novos, como o fundo Rise da gestora americana TPG, com ativos de US$ 5 bilhões; o fundo Bain, já com US$ 400 milhões e levantando outro fundo maior; o europeu Partners Group levantando US$ 1,2 bilhão para um fundo de private equity. Há, portanto, uma expansão na oferta de produtos.
Quais são os gatilhos para que haja um ponto de virada?
O ponto de virada acontecerá quando o impacto for integrado à contabilidade financeira, quando os investidores tiverem a possibilidade de avaliar não apenas a lucratividade das empresas, mas também seu impacto, de forma simples. Isso começará a se acelerar nos próximos 10 anos e, até 2025, veremos um número considerável de empresas prestando contas dessa maneira. Essa é uma das áreas que o GSG [Global Steering Group for Impact Investment] está catalisando hoje, por meio de um projeto especial incubado na Harvard Business School. O objetivo é elaborar um modelo de mensuração de impacto – ao qual foi dado o nome de impact weighted accounts – que possa ser amplamente adotado pelas empresas e divulgado para a sociedade, tal qual, hoje, as empresas divulgam seus resultados econômico-financeiros.
Qual é o resultado esperado desse projeto?
Esperamos reunir mais de 150 iniciativas para mensurar impacto e calcular seu valor, e queremos entregar, dentro dos próximos 12 meses, um framework para definir os princípios gerais de impacto.
Otimizar a equação risco-retorno-impacto permite ganhos maiores do que maximizar só o lucro
O campo enfrenta um desafio de comunicação?
Vivenciei desafios de comunicação na indústria de private equity e venture capital. As pessoas ainda têm dificuldade para entender que o investimento de impacto envolve a intenção de criar impacto e de medi-lo. Ainda associam impacto com filantropia, acreditam que significa perder dinheiro. Entendo que, ao otimizar a equação risco-retorno-impacto, é possível obter lucros maiores do que quando se busca apenas maximizar o lucro. Há uma melhoria no perfil de risco da empresa em relação à regulamentação, e abre-se o caminho para oportunidades de investimento para atender à enorme demanda latente a preços menores. A compreensão de que o investimento de impacto não é sinônimo de retornos mais baixos se dissipará à medida que pudermos comprová-la por meio de casos reais, como o da Tesla.
Se de um lado existe o desafio de mobilizar capital comprometido com impacto, de outro é preciso garantir bons negócios – e com capacidade de escala – para absorverem esses recursos. O senhor poderia falar sobre os desafios do fluxo de oportunidades de investimento?
Acredito que a oferta de capital cria sua própria demanda, pois o número de oportunidades de investimento depende do grau de facilidade para levantar recursos. Quando começamos a ver um aumento nos volumes disponíveis para investimento em fundos de private equity e venture capital, tivemos um crescimento do número de negócios em busca de financiamento. Pode-se dizer, portanto, que estamos no caminho e, se conseguirmos obter alocações de grandes investidores institucionais – como fundos de pensão – nos fundos de impacto, isso vai impulsionar as oportunidades de negócios a serem investidos. Para melhorar o fluxo, precisamos aumentar o volume de dinheiro levantado.
Um desafio que temos visto no Brasil é que há disponibilidade de capital para empresas mais maduras, enquanto muitos empreendedores enfrentam dificuldade para acessar capital em fases anteriores. Como essa demanda poderia ser mais bem atendida?
Veremos um número crescente de fundos, como o Bridges, do Reino Unido, e o Aavishkaar, da Índia, que oferecem venture capital para os empreendedores de impacto. Atualmente, a dificuldade está relacionada a instituições como os fundos de pensão que, por terem grande volume de recursos sob gestão, querem apenas fazer investimentos altos. Portanto, precisamos de um novo modelo mental em que gestores de fundos de pensão, gestores de fundos de patrimônio e de seguradoras criem pools de inovação. Dentro dessas alocações, poderiam investir em fundos menores – que estão fazendo coisas novas e relevantes e prometem bons retornos.
Essa é uma questão importante para o movimento de impacto hoje. Passei essa mensagem recentemente em uma conferência sobre investimentos de fundos de pensão, que reuniu alguns dos maiores fundos dos Estados Unidos, da Austrália e do leste da Ásia, onde houve uma sessão sobre investimento de impacto. Enquanto enxergarem o impacto dentro do seu portfólio total, com investimento mínimo de US$ 100 milhões por transação, nunca conseguirão apoiar esses novos fundos.
Como o senhor vê o movimento da venture philanthropy e qual é a conexão com o investimento de impacto?
Vejo os dois como aliados próximos, ambos guiados pelo desejo de criar impacto significativo e mensurável. A venture philanthropy, ao oferecer recursos retornáveis e não retornáveis [doações], contribui para criar fluxos de capital de dívida, permitindo a participação de diferentes classes de investidores, o que não seria possível sem esses recursos.
Portanto, a filantropia é muito importante no desenvolvimento de fluxos de capital para impacto. Isso vale no lado do investimento, em termos do chamado blended finance, mas também na criação de fundos de pagamento por resultados, juntando-se com organizações de assistência ou outros filantropos. Isso atrai fluxos de capital e traz, para as organizações prestadoras de serviços, transparência, accountability, recursos não carimbados e de longo prazo, além de foco nas metas. Dessa maneira, quando os filantropos se comprometem com os resultados, criamos uma dinâmica poderosa que atrai o dinheiro dos investidores e traz os fatores citados para os prestadores de serviço, permitindo que inovem e escalem suas atividades.
Para alguns países, como o Brasil, tem sido difícil criar instrumentos de pagamento por resultados [Social Impact Bonds]. O que o senhor aconselharia?
No caso do Brasil, as fundações dos grandes bancos têm um papel importante nesse assunto. Na minha última visita ao Brasil, em 2015, eu me reuni com representantes do Banco Itaú, e conversei com eles sobre o potencial de se envolverem, por meio de sua fundação, com o pagamento por resultados na área de educação. Estamos estruturando fundos grandes em lugares como a África, a Índia e o Oriente Médio, onde as fundações, e não os governos, pagarão os investidores pelos resultados. As fundações dos bancos são um ativo estratégico muito grande para o Brasil, que poucos países possuem [a vinda ao Brasil deveu-se à conexão entre o GSG e a Aliança pelos Investimentos de Impacto, que é o National Advisory Board do grupo no País].
Quais países têm os resultados melhores e mais inspiradores em criar um ecossistema para investimento de impacto?
Hoje, diria que Reino Unido, Estados Unidos e, de certa maneira, Austrália, Japão, Coreia do Sul e França estão trabalhando em políticas públicas para fortalecer o ecossistema. Para mim, o Reino Unido está mais desenvolvido, pois foi o país pioneiro, onde os primeiros SIBs foram desenvolvidos, onde se criou a Big Society Capital como grande investidor, e onde o governo publicou na internet os custos de intervenções sociais.
Criar grandes fundos de investimento que podem ser protagonistas no desenvolvimento dos investimentos de impacto, e lançar uma entidade responsável por desenvolver o campo dentro do governo nacional, provavelmente são as políticas mais simples que os governos estão considerando fazer.
O Brasil lançou no final de 2017 uma estratégia nacional para investimento de impacto, a Enimpacto [mais neste artigo]. O governo é necessariamente um ator-chave para esse processo? Que papel deve exercer?
O governo é um ator-chave. Não queremos depender do governo para fazer tudo, mas o queremos como um parceiro. Com o aval do governo e com políticas para apoiar nossos esforços, podemos avançar muito mais rápido. Espero que o governo brasileiro consiga enxergar o investimento de impacto como recursos que vêm do mercado de capitais privados, e não do orçamento público, mas que podem ajudar a atingir seus objetivos sociais e ambientais.
Diante de seus desafios socioambientais, o Brasil é muito importante para mostrar que investimento de impacto pode operar em grande escala
Quais são suas impressões sobre o avanço desse campo no Brasil? O País poderia dar dicas ou exemplos para outras nações?
O Brasil, diante de seu tamanho e diversidade dos desafios socioambientais que precisa atacar, é um lugar muito importante para demonstrar que investimento de impacto pode operar em grande escala. Países como Brasil e Índia têm um papel especial no mundo de impacto. O fato de se ter fundações ligadas a grandes bancos é uma grande vantagem, pois os bancos estão acostumados a utilizar as forças do mercado para realizar coisas e a desenvolver produtos financeiros inovadores para financiar novas atividades. Contar com a participação dos bancos seria um sinal importante para o resto do mundo. Espero que os esforços que temos feito no Brasil permitam que o País desempenhe um papel de liderança em implementar essas abordagens em grande escala com apoio dos filantropos.
O que podemos fazer para engajar melhor as grandes empresas, e quais as alternativas para esses atores se engajarem?
O primeiro passo é encorajar as grandes empresas a prestar contas sobre seu impacto e tentar mensurá-lo. Nem todas vão querer, obviamente. Algumas estão gerando impactos negativos e não desejam mostrar isso. Hoje elas conseguem, em geral, comunicar seus impactos positivos, mas sem medir os impactos negativos que também geram. Não espero que sejam atores muito ativos no campo enquanto não tivermos a mensuração transparente e confiável de impacto refletida na contabilidade financeira.
Hoje, mais de 70% das empresas fazem alguma referência em seus relatórios anuais aos impactos que criam, e encorajá-las a detalhar essas informações provavelmente seja a melhor coisa a ser feita no momento. Não acredito que as empresas mudarão seus produtos ou processos ambientais até que sintam a pressão dos clientes ou dos acionistas, Sendo bem-sucedidas hoje, não terão motivo para mudar o status quo do qual se beneficiam.
Há algumas empresas no Brasil, como a Natura, que aceitaram a filosofia e têm trabalhado para implementá-la em seu modelo de negócios. Mas, de modo geral, sensibilizar as empresas sobre o impacto, e ajudá-las a mensurá-lo e a prestar contas sobre seu impacto seria o caminho mais efetivo. Na França, empresas estão criando iniciativas próprias no campo de impacto, como a Danone, com a criação de um fundo de 500 milhões de euros para combater a degradação do solo. A Unilever, no Reino Unido, tem se esforçado para estimular a análise de impacto. Se conseguirmos com que mais empresas desempenhem esses papéis ou invistam em fundos de pagamento por resultados, por meio das suas áreas de responsabilidade socioambiental, isso seria ótimo. Mas os atores do ecossistema de impacto no Brasil sabem melhor do que eu se esse tipo de atuação seria viável no País.
As empresas em geral conseguem comunicar seus impactos positivos, mas sem medir os impactos negativos que também geram
Qual o potencial da tecnologia para trazer transformações no campo?
Já vemos muitos exemplos disso: empreendedores – alguns deles na América Latina – com soluções de base tecnológica para problemas da produção agrícola de pequenos produtores; áreas da saúde com serviços de diagnóstico remoto; tecnologias financeiras reduzindo o custo de fazer transferências para os países mais pobres. A tecnologia tornou-se central no desenvolvimento de qualquer modelo de negócio.
Como podemos garantir uma relação positiva entre os impactos sociais e ambientais e impedir que um aconteça a detrimento do outro?
Temos de mensurar sempre o saldo líquido, e não apenas o impacto positivo criado. O social e o ambiental geralmente caminham juntos. Por exemplo, no tema da migração, as questões ambientais podem levar ao deslocamento da população, o que pode causar problemas com a absorção dos imigrantes. Se trabalharmos no ambiental e também na absorção efetiva da imigração, ambos vão na mesma direção. Quando os dois se encontram em conflito, como acontece às vezes, precisamos de uma contabilidade apropriada, para que possamos avaliar se o saldo líquido do impacto é grande suficiente para aceitarmos o impacto negativo. Portanto, a contabilidade do impacto que tenho mencionado será uma ferramenta importante para a tomada de decisões consistentes nos negócios e nos investimentos.
Podemos dizer que a Revolução do Impacto causará uma ruptura no capitalismo?
Acredito que a Revolução do Impacto já esteja causando uma ruptura no capitalismo, e que vá acontecer mais por necessidade do que por escolha. Vai acontecer porque os governos não conseguem mais lidar com a escala e complexidade das desigualdades sociais e dos problemas ambientais. Eles precisam trazer o capital privado para dentro do jogo, pois não conseguem gerar mais impostos para lidar com os problemas, e nem possuem o tipo de inovação e o empreendedorismo necessários para encontrar as soluções. Portanto, acredito que o mundo chegará à conclusão de que isso é um novo modelo mental, uma nova fase do capitalismo. Não queremos abrir mão do poder dos mercados e do capital mas, ao mesmo tempo, não podemos continuar permitindo que as empresas gerem lucros sem se preocupar com as consequências.