Festival de negócios que produzem impacto socioambiental positivo demonstra maturidade dos projetos e expansão desses investimentos na Amazônia, na perspectiva de novos saltos com uma melhor imagem brasileira no exterior
Por Sérgio Adeodato, de Manaus
Na porta de entrada do festival em Manaus, no coração da Amazônia, a mariposa do cartaz com a identidade visual do evento exibe uma chamativa característica que faz refletir sobre o tema em debate naqueles dias: o momento dos negócios de impacto socioambiental na maior floresta tropical do planeta. “Esse inseto é da família Saturniidae, com mancha na asa posterior semelhante a um olho, usada para confundir e repelir predadores”, aponta Neliton Marques, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no acesso ao auditório apinhado de startups, investidores, gestores de instituições tecnológicas, pesquisadores, empresas e organizações da sociedade civil.
No geral, as mariposas são cercadas de crenças populares, como fonte de mau presságio, mas neste caso os “olhos” indicam boa sorte, símbolo de força e resistência. O mimetismo, ponto alto da criação idealizada pela designer manauara Rakel Caminha, ilustra a efervescência na oferta e demanda por inovações, com novos projetos e recursos mobilizados no II Festival de Investimento de Impacto e Negócios Sustentáveis da Amazônia (Fiinsa), nos dias 29 e 30 de novembro.
“O design criado para o evento representa o desafio de nadar contra a corrente em um mundo construído por predadores”, explica Caminha, ao mostrar as peças desenhadas com a motivação de “fazer brotar o amanhã na cabeça das pessoas”.
Além da cabeça de uma indígena com o grande “chapéu” de elementos regionais e tecnológicos, a mariposa e seus “olhos” também se destacam sobre uma lâmpada em alusão ao eureka das boas ideias. O material artístico mistura painéis de energia solar e cogumelos amazônicos dos Ianomami associados à cúpula do Theatro Amazonas, ícone de Manaus e da exploração da borracha – capital que agora busca o mix entre indústrias digitais e conservação da floresta. A designer revela a inspiração na arte: “É um tributo à diversidade e respeito para com os povos amazônicos”.
Como pano de fundo, está a jornada de negócios socioambientais em torno de soluções para o desenvolvimento sustentável, atrelados às cadeias de produtos da floresta, vitrine principal do festival com cerca de 550 participantes que acompanham o desenrolar de um movimento em franca expansão. “Em cinco anos, foi bastante expressivo o crescimento dos investimentos de impacto positivo na Amazônia”, celebra Mariano Cenamo, diretor de novos negócios do Idesam e CEO da aceleradora de impacto Amaz.
A ambição futura é chegar aos primeiros “unicórnios” amazônicos – startups que alcançam valores de mercado acima de US$ 1 bilhão. O Brasil se classifica entre os 10 países com o maior número de startups avaliadas acima desse patamar, e a Amazônia, que cresce nesta trajetória de inovações, tem potencial de escala diante da importância para o planeta.
“Destruir a floresta é ruim para a economia e os negócios, e algumas empresas já perceberam isso”, ressalta Cenamo. Ele lembra que o atual momento brasileiro é de reconstruir governança ambiental, mas também mecanismos de desenvolvimento, “discutindo a Amazônia na própria região”.
Avanço de maturidade na bioeconomia
O novo cenário se espelha na expansão do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio) – política pública da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), sob a coordenação do Idesam, organização da sociedade civil que faz a ponte entre empresas investidoras e startups. O mecanismo repassa investimentos empresariais de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), obrigatórios como contrapartida pelos incentivos fiscais. Em quatro anos, o programa reúne 31 empresas apoiadoras e R$ 30 milhões já mobilizados para o fortalecimento de 12 cadeias produtivas, com 34 projetos de 27 instituições executoras em estados da Amazônia Ocidental e Amapá. Outros R$ 54 milhões estão hoje em planejamento para repasse no primeiro semestre de 2023, totalizando R$ 85,3 milhões aportados no programa.
“Os resultados do Fiinsa mostram a qualificação dos setores envolvidos com novos negócios sustentáveis da Amazônia para alavancar uma nova economia baseada da natureza”, avalia Carlos Koury, diretor de inovação em bioeconomia do Idesam e coordenador do PPBio. “São necessárias soluções tecnológicas que permitam aumentar a interiorização da economia com inclusão socioprodutiva, superar desafios de produção e agregar valor na região amazônica”.
Segundo o investidor e empresário Guilherme Leal, copresidente da Natura, em mensagem na abertura do festival, “não existe agenda verde sem melhoria da qualidade de vida”. Em sua análise, o Brasil tem condições de protagonismo na construção da economia regenerativa via empreendedorismo: “O mundo tem grande interesse em investir na Amazônia, diante dos compromissos do governo brasileiro eleito, expressos na COP 27, a conferência do clima no Egito”.
No entanto, Denis Minev, CEO da Bemol e investidor anjo de startups amazônicas, adverte que “somos uma região de superlativos, mas não na prosperidade e na expectativa de vida”. Para o empresário, apesar de patrimônio para a humanidade, a Amazônia não gera desenvolvimento para quem vive nela. “Há necessidade de investir em cérebros e produtividade por meio de novos negócios”, aponta.
Fersen Lambranho, presidente da GP Investments, sediada em Londres, concorda: “O momento é excepcional, mas o desafio é enorme e precisa de ações rápidas”. O Brasil, segundo ele, tem condições de resolver as dores da humanidade, como no contexto da mudança climática, “mas os próprios brasileiros precisam valorizar esse processo e ter projetos atraentes”.
Investidor de grandes marcas como a Americanas.com, e também da aceleradora Amaz, Lambranho defende o slogan de “fazer na Amazônia e para Amazônia”, mobilizando tecnologias e conhecimento para criar histórias vendáveis. “A tecnologia digital está desmaterializando o planeta e isso vai permitir reflorestar o País e o mundo”, acrescenta o investidor, cujo avô paterno veio da Espanha aos 19 anos para e trabalhar na construção da ferrovia Madeira-Mamoré e escapar do serviço militar no Exército.
Mas é preciso ter sabedoria para respeitar as realidades locais na dicotomia entre escala e impacto, adverte Patricia Daros, diretora de operações do Fundo Vale, organização que está criando uma startup, com outro CNPJ, para avançar no investimento em novos negócios com essas características. “Nessas questões, o caminho se aprende ao andar”, diz Daros, durante debate no evento.
Gustavo Pinheiro, coordenador de economia de baixo Carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS), destaca que “pela primeira vez, trazemos o capitalismo para uma conversa não só com a lógica colonial da exploração de recursos”. Pela evolução dos últimos cinco anos, diz ele, há motivos de otimismo em torno de modelos de negócio adequados à realidade amazônica, mas conceitos associados ao impacto positivo, como a cultura precisam ser traduzidos em valores para o engajamento do mundo financeiro.
O amadurecimento dos investimentos de impacto já é uma realidade, de acordo com dados da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA). O número de organizações dinamizadoras que olham para esses negócios na região vem crescendo com o tempo, o que está em linha com o setor dinamizador de impacto em geral: 33 organizações (50% do total mapeado) foram fundadas nos últimos 12 anos. De 2020 para cá, surgiram 12 delas.
Zona Franca busca diversificação
De novas moléculas e insumos biotecnológicos para diversos mercados a soluções obtidas da natureza para as indústrias tradicionais, a bioeconomia é estratégica à ZFM, em busca de diversificação a partir dos ativos da região, alinhados à floresta em pé. Para avanços consistentes, dizem analistas do setor, é necessário estruturar cadeias produtivas verticalizadas, tanto de base florestal como de processamento industrial, na região.
“Há um gap muito grande para chegar aonde outras regiões brasileiras já chegaram”, avalia Marivaldo Albuquerque, diretor do Instituto Creathus.
No Amazonas há cerca de 50 instituições tecnológicas dos vários setores. “Elas precisam olhar para o mercado e, principalmente, para as demandas da sociedade”, enfatiza Albuquerque. Na análise de Andre Wongtschowski, diretor de inovação na World-Transforming Technologies (WTT), a agenda de inovação exige visões de curto, médio e longo prazos, com estratégias mais ambiciosas, inclusive com o desafio de conhecer melhor os ativos do ecossistema de ciência e tecnologia. “A formação de capital humano, como professores e pesquisadores, é a forma de o conhecimento ficar na região, atraindo investidores na lógica de uma nova economia, sem pressa no retorno financeiro”, destaca Tatiana Balzon, diretora da projetos da agência de cooperação alemã GIZ.
Nessa trajetória de desafios, afirma Rebecca Garcia, empresária da indústria de componentes eletrônicos GBR, em Manaus, a Amazônia por si já se vende, mas ainda “não estamos envelopando a região da forma que o mundo quer comprar, com cara, design e história por trás dos produtos”.
As indústrias da maior metrópole da floresta têm pela frente um papel estratégico na busca do desenvolvimento sustentável, para além das maravilhas tecnológicas para celulares e computadores. “A questão de como compatibilizar o atual modelo da ZFM e a bioeconomia não se restringe às empresas que operam no polo industrial, mas às novas cadeias produtivas que precisam se instalar e ainda não têm pacotes tecnológicos correspondentes”, adverte o economista Osíris Silva, especializado na temática. Ele reforça que as oportunidades no setor são gigantescas, mas exigem construir indústrias biotecnológicas, além da necessidade de um organismo coordenador das ações.
“Estamos nos preparando para essa articulação”, revela Aline Lauria, coordenadora da agência de inovação da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com a capilaridade de 68 laboratórios em Manaus e 23 no interior. “Temos muito, mas pouco se faz com isso”, admite. Segundo ela, um novo universo está sendo descortinado por meio de chamadas para projetos da academia visando abrir a caixa preta do P&D, com iniciativas na bioeconomia. Além disso, o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), que saiu da esfera federal e foi incorporado pela UEA, em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), “tem grande potencial como interface entre indústria e ciência”.
Fibras amazônicas e computadores
De acordo com Lucio Flavio de Oliveira, presidente executivo do Centro da Indústria do Estado do Amazonas (Cieam), a expansão das estratégias ESG, baseadas em critérios ambientais, sociais e de governança, é uma oportunidade de trabalhar políticas de sociobiodiversidade nas indústrias sediadas na Zona Franca. Para Oliveira, a bioeconomia é o caminho para consolidar o polo industrial com expansão para o interior, cumprindo o objetivo da ZFM de reduzir desigualdades sociais. Com faturamento do polo em elevação, a estimativa é de um total de R$ 2 bilhões de repasse obrigatório para P&D, incluindo bioeconomia, em 2023: “É preciso sensibilizar as multinacionais para a demanda do impacto positivo, com insumos da floresta”.
É o caso do bioplástico a partir de fibras do tucumã e castanha-do-brasil com potencial de uso em computadores, celulares, motocicletas e televisores.
“Precisamos sair do casulo dos incentivos fiscais para ajudar a região a ser mais competitiva e trazer o desenvolvimento para todos, também no interior da Amazônia”, observa Mariana Barella, à frente da indústria de plásticos Tutplast, investidora na bioeconomia por meio do PPBio.
Seu avô foi soldado da borracha – brasileiros que entre 1943 e 1945 foram alistados e transportados pelo governo federal para a Amazônia, com o objetivo de extrair borracha para os Estados Unidos na II Guerra Mundial.
“Com a estrutura industrial existente e a expertise produtiva, podemos ser mais ativos em projetos de negócios que geram impacto social e ambiental positivos na região”, reforça a CEO, representante da nova geração de lideranças empresariais da ZFM. Há três décadas em Manaus, onde fatura anualmente R$ 400 milhões em peças e insumos plásticos fornecidos às indústrias locais, a empresa da família busca há quatro anos conciliar a estratégia do negócio com novas oportunidades mais sustentáveis.
O caminho foi desenhar resinas (polipropileno) a partir de fibras amazônicas com propriedades semelhantes ao plástico convencional em termos de resistência mecânica e durabilidade. Com meta de incorporar 20% de conteúdo da biodiversidade, para chegar gradativamente aos 100%, o projeto buscou suporte do Idesam para acesso à academia no processo inicial de desenvolvimento. A indústria entra com os testes em maior escala e destinação do insumo para clientes finais dos setores eletroeletrônico e de informática, que investem na inovação via recursos obrigatórios de P&D. “Sozinhos, seria impossível fazer ou levaria muito mais tempo. Dinheiro é o menor problema; a questão é criar as pontes”, diz Barella.
Com recursos da Samsung e da indústria de alimentos JBS, no total de R$ 2 milhões, a tecnologia está em desenvolvimento nos laboratórios da UEA para início dos testes na indústria em janeiro, prevendo inicialmente 30 toneladas mensais. Há desafios, como a necessidade da moagem das fibras no interior da floresta, com maior valor agregado para as comunidades. Na visão da empresária, há um novo momento na relação com a universidade sem as barreiras que no início interromperam o plano do bioplástico, agora viabilizado via PPBio com apoio do Idesam. “O desafio amazônico exige celeridade para acesso a recursos e trazer centros de pesquisa para dar vazão a essa demanda”, completa.
O burburinho abrangendo negócios de propósitos socioambientais na Amazônia se reflete em espaços como o Biohub, atração do Fiinsa com concorridas dinâmicas de interação entre investidores, startups e demais elos do ecossistema inovação.
Com cerca de 100 participantes, a iniciativa demonstra o momento de maturidade e o potencial do que está por vir na bioeconomia amazônica. Na análise de Paulo Simonetti, líder de captação e relacionamento com o investidor do PPBio, o evento trouxe visibilidade para a efervescência de inovação na Amazônia, que começa a chamar a atenção do resto do Brasil. “Essas conexões entre os diversos segmentos das cadeias produtivas e possíveis atores externos são essenciais para que os negócios cresçam mais rápido e de forma mais sustentável”.