“O combate à mudança climática é urgente. Tão urgente que o Parlamento britânico declarou recentemente estado de emergência climática no país”, disse a diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), Ana Toni, na abertura do “Evento Internacional sobre Litigância Climática – A busca por Justiça Ambiental no Brasil”. O encontro foi realizado em Brasília, em 9 de maio, 24 horas após o governo brasileiro anunciar o bloqueio de 95% do orçamento de clima. “Como conciliar o descompasso entre essa urgência e a inação do governo e das empresas poluidoras?”, questionou.
A litigância climática (ou Justiça ambiental) é uma solução que vem sendo adotada mundo afora para forçar o cumprimento de metas firmadas, por exemplo, no Acordo de Paris – segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), 880 casos de litigância climática já foram identificados em 25 países. A proposta do evento foi a de fomentar essa ideia aqui no Brasil.
A tarefa não deve ser muito simples já que a lentidão da Justiça brasileira mostra-se inversamente proporcional à urgência na questão do clima. Em entrevista concedida à Página22, Ana Toni lembrou que a litigância climática funciona também como um instrumento estratégico de articulação global, uma vez que pressiona legisladores, gestores públicos e empresas a estarem atentos às suas responsabilidades no cenário climático. Não só em relação ao cumprimento das metas de redução das emissões de gases de efeito estufa acordadas em Paris, em 2015, mas também à adoção de medidas de adaptação e resiliência aos efeitos adversos do clima.
De qualquer modo, no Brasil, a litigância climática ainda é incipiente em relação a outros países, assim como a litigância ambiental. A maioria dos processos legais relacionados à poluição e desmatamento apenas tangencia o tema, sem o confrontar diretamente. Por exemplo, ao mover uma ação envolvendo problemas respiratórios provocados pela poluição do ar, os advogados e promotores quase nunca inserem a questão ambiental nas argumentações do processo. “É isso que se quer mudar”, explica Ana Toni. “Precisamos explorar mais a nossa legislação ambiental e enriquecer a jurisprudência. No Brasil temos leis que ‘pegam’ e leis que ‘não pegam’. Precisamos assegurar que essas leis estejam entre as leis que ‘pegam’”.
Um exemplo paradigmático de litigância climática ocorreu recentemente na vizinha Colômbia. Em abril, em decisão histórica, a Corte Suprema de Justiça concluiu que o governo daquele país fazia pouco para combater a mudança climática e, desse modo, estava pondo em risco a biodiversidade e os direitos fundamentais das gerações futuras. Assim, a Corte sentenciou o Estado colombiano a fazer um plano para reduzir até 2020 o desmatamento na Amazônia colombiana. No Acordo de Paris, a Colômbia compromete-se a zerar o desmatamento na Amazônia até 2020.
Ana Toni é diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e sócia-fundadora do GIP (Gestão de Interesse Público). Economista e doutora em Ciência Política, possui longa trajetória no trabalho e apoio a projetos voltados à justiça social, à promoção de políticas públicas, à área do meio ambiente e mudança climática e à filantropia. Foi presidente do Conselho do Greenpeace Internacional e diretora da Fundação Ford no Brasil e da ActionAid Brasil. Integra a Rede de Mulheres Brasileiras Líderes pela Sustentabilidade e os conselhos da Agência Pública, Gold Standard Foundation, Instituto Escolhas, ClimaInfo, Instituto República, Fundo Baobá por Igualdade Racial e Transparência Internacional.
Por que é importante trazer o tema da litigância ambiental ao Brasil neste momento?
Nós já havíamos pensado nesse encontro desde o ano passado, mas ele adquiriu uma importância específica nesta conjuntura atual. Vemos nos instrumentos legais de litigância uma das coisas mais importantes para assegurar a implementação de políticas ambientais. Não há dúvida de que o Judiciário, como um todo – Defensoria Pública, Promotoria de Justiça etc. – tem o papel fundamental de garantir a implementação das políticas e das leis. Pode ter um papel de interpretação da lei para ir além, para olhar o direito ambiental e trazer novas leis. Então, nossa primeira intenção é a implementação das leis, a implementação das políticas brasileiras que hoje estão sendo questionadas.
Achamos que o evento seria importante para entender o papel garantidor do Judiciário em políticas ambientais e, especificamente, as climáticas no Brasil.
Recentemente, tivemos a notícia de que o governo fez um bloqueio de 95% no orçamento da área de clima. Como podemos garantir que o governo vai implementar a sua própria lei constitucional? [Segundo o artigo 225 da Constituição, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.]
A Colômbia já tem um caso recente e emblemático de litigância climática, cuja sentença diz: “O governo deve fazer um pacto intergeracional pela vida da Amazônia colombiana”. Será que chegaremos lá?
Os juristas colombianos olharam para o arcabouço legal desde a Constituição. A Constituição brasileira também traz, no caput, o direito ao meio ambiente equilibrado. Então, temos os aparatos legais, mas estão sendo pouco utilizados para garantir que as leis sejam implementadas. O objetivo do nosso encontro foi discutir com a comunidade jurídica que instrumentos temos, o que já está sendo utilizado e o que pode ser mais bem utilizado. E, ainda, qual a responsabilidade do Poder Judiciário em garantir a implementação das leis.
Aliás, boas leis ambientais não nos faltam, não é? Para cobrir especificamente a questão climática as leis em vigor são suficientes?
É mais difícil porque a política climática está mais ligada a setores. Os entes por trás das políticas de desmatamento, de eficiência energética e de poluição do ar que ajudam na mudança climática são mais difusos. Mas como se começa a desmembrar essas políticas e esses direitos e dar responsabilidades para agentes públicos e privados em assegurar o cumprimento dessas políticas? Por exemplo, a poluição do ar é um fator muito palpável porque tem a ver com a saúde das pessoas. Em outros países já começaram a responsabilizar tanto empresas de veículos, assim como governos locais, por problemas respiratórios de alguns pacientes. Os governos locais ou os fabricantes de carros não estão resguardando a saúde das pessoas. Em alguns países isso já está muito consolidado. Acho que aqui no Brasil casos como esses vão começar a chegar, inclusive na área de desmatamento. Que responsabilidade têm as prefeituras, os estados e as empresas? Eles têm que olhar para as cadeias de negócios e assegurar que o desmatamento não aconteça para cumprir tanto a lei do desmatamento como a climática.
Existe algum caso desse tipo em andamento na Justiça brasileira?
Existem casos legais contra desmatamento que mencionam a Lei de Mudança Climática [nº12.187/2009] e o plano contra o desmatamento [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm]. Entra no grande arcabouço do que a gente chama de litigância climática, mas o seu objeto específico não é a política climática em si. No Brasil, o tema é tangenciado. É mais um argumentação entre muitas. A ideia é olhar qual o potencial para se explorar mais as políticas climáticas que estão no mundo inteiro. Você deve estar acompanhando que a própria Raquel Dodge [procuradora-geral da República] criou no Ministério Público Federal uma força-tarefa na Amazônia de combate ao desmatamento ilegal [Portaria nº 675/ 2018, a força-tarefa combate também a mineração ilegal, a grilagem de terras públicas, a violência agrária e o tráfico de animais silvestres na Amazônia]. Na justificativa para criar essa força-tarefa, Dogde cita as leis de combate ao desmatamento e à mudança climática. Isso tudo mostra que esse arcabouço jurídico existe e quem quer pode usá-lo, como nesse caso.
Se o arcabouço jurídico já existe, então o que falta é potencializá-lo?
Exatamente, a gente quer reforçar entre os advogados que, ao darem início a um caso legal [em que haja alguma correlação], que citem em sua argumentação a Lei de Clima, os planos municipais e estaduais de clima. Isso não só reforça o próprio caso como começa a fortalecer o arcabouço para que outros juristas possam utilizá-lo no futuro em outras causas.
Quais agentes costumam levar governos ou empresas à Justiça para responder sobre casos ambientais?
Há diversos. Pode ser uma instituição da sociedade civil, o Ministério Público ou a Defensoria Pública, quando envolve casos na área de saúde, e podem ser empresas ou acionistas. Uma empresa de energia solar poderia reclamar na Justiça de um subsídio a uma usina movida a carvão, o que vai contra as leis de competição. Na litigância climática é possível explorar não só legislações ambientais mas também as econômicas e empresariais que podem ser utilizadas em benefício do meio ambiente. O acionista de uma empresa de energia renovável pode achar que os seus direitos estão sendo lesados se a empresa não considera os riscos da mudança climática no futuro e os impactos que poderão vir a ter no valor das suas ações. Acredito que temos de olhar para possíveis brechas em outras áreas legais, apesar de o Brasil ter uma excelente legislação ambiental.
A litigância costuma envolver também investidores, como fundos de pensão, ou bancos?
Sim, fundos de pensão e bancos. Fundos de pensão são importantes porque seus investimentos são de longo prazo. Até que ponto as entidades de fundos de pensão estão computando nos seus riscos os impactos da mudança climática. Existem acionistas minoritários de empresas que hoje em dia começam casos legais contra seus respectivos fundos de pensão por não considerar mudança climática nos riscos. Ou seja, o valor das poupanças não está sendo devidamente preservado. Esses casos estão começando, mas precisam ser muito bem fundamentados com evidências. A jurisprudência nacional e internacional está sendo criada.
Onde no mundo tem um amadurecimento desse tema e quais os resultados práticos obtidos?
Nos Estados Unidos e na Europa, a litigância climática está muito avançada. Na Holanda, por exemplo, tem a Urgenda Foundation com diversos casos. Tem também a Client Earth [com escritório em Londres, Bruxelas, Varsóvia, Berlim e Pequim] atuando globalmente. Até pequenos países insulares estão começando casos legais contra grandes empresas porque sofrem risco de desaparecerem do mapa. Há países com uma cultura de litigância mais robusta do que outros. Os EUA litigam por qualquer coisa. Lá há muito mais casos de litigância climática do que em qualquer outro lugar. Por exemplo, se existe uma termelétrica de carvão poluindo um município, vários setores iniciam um ações legais – as áreas de saúde, as agências de monitoramento da poluição do ar etc.
Existem diversas possibilidades em nível local com potencial para a litigância, mas o grande desafio é a necessidade de perceber que os riscos ambientais e climáticos são riscos concretos. Se de um lado a gente quer que as leis relacionadas a clima que existem “peguem” – porque no Brasil tem lei que “pega” e lei que não “pega” –, de outro, queremos mostrar que há riscos iminentes de mudança climática. E hoje os investidores e as empresas precisam considerar dentro dos seus conselhos e dos seus comitês de risco que o cumprimento das leis poderá ser concretizado através de processos legais.
Em relação à Colômbia, havia uma legislação climática? Em que a Corte suprema se baseou para dar aquela sentença?
Os colombianos tinham uma meta e uma lei sobre desmatamento que não foi cumprida. A iniciativa de litigância lá partiu de um ente privado. Esses casos climáticos têm todo um potencial de chegarem aos supremos tribunais. Alguns chegam mais rápido porque ganham em primeira instância.
Tem muita diversidade de casos. O evento que realizamos em Brasília trouxe casos concretos para mostrar o que está acontecendo pelo mundo, mas nosso objetivo foi também chamar atenção da comunidade jurídica para olhar o potencial dessa área. Muitas vezes não é preciso nem chegar à litigância. Apenas uma carta da Promotoria Pública, ou do TCU [Tribunal de Contas da União], sobre alguma norma que deveria ter sido implementada e não foi, talvez seja suficiente para os conselhos de administração agirem.
Ou seja, a litigância pode ser também um instrumento estratégico então?
Com certeza. Qualquer um que entre com estratégia de litigância tem que ter certeza que o caso é seguro, que as evidências estão claras e a relação com a legislação é forte o suficiente. Mas não resta dúvida de que na área de litigância climática o engajamento e o debate público sobre o caso são tão importantes quanto o caso em si. E o debate sobre a questão climática tem de ser internalizado por todos – setor público, privado, judiciário.
O “Evento Internacional sobre Litigância Climática – A busca por Justiça Ambiental no Brasil” pode ser assistido na íntegra aqui.