De um lado, o patrimônio histórico, a cultura afro, a musicalidade, as praias de águas claras e uma gastronomia da moqueca e vatapá. De outro, o desafio social da ocupação urbana desordenada, do saneamento básico e outras mazelas sofridas pela cidade desde o período da colonização portuguesa. E a busca pelo desenvolvimento econômico como uma ponte entre tradição e modernidade. Por entre mandingas e axés, o aroma inconfundível que emana dos tabuleiros de acarajé se mistura a um ritual de vanguarda com poderes de dar uma nova ginga à primeira capital do Brasil.
Ao incorporar a mitigação e adaptação à mudança climática como bandeira, aterrissando um problema global no nível local, Salvador atrai olhares curiosos, em especial quando no País a agenda ambiental tem cores sombrias sob a batuta do governo federal. Vitrine desse modelo que se irradia foi a Climate Week da ONU, realizada semana passada na capital baiana, depois de um imbróglio que só reforçou e deu publicidade à importância da iniciativa no cenário da urgência climática.
Em março, o evento chegou a ser cancelado unilateralmente pelo ministro brasileiro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alegando risco de manifestações e protestos. Mas o prefeito ACM Neto, presidente nacional do Democratas (DEM), agiu politicamente junto às lideranças de seu partido no Congresso Nacional – como Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, onde à época o Planalto buscava votos para a reforma da Previdência. Não tardou para o governo Bolsonaro voltar atrás e aceitar o papel de anfitrião do encontro.
Dar um “murro na mesa” para receber o evento preparatório para a COP 25, no Chile, mais do que rinha política, significava também visibilidade e renda para a cidade. E, mais ainda, um marco no processo de lidar com os impactos do clima. “Queremos chegar aos 500 anos, em 2049, como cidade neutra em carbono”, ambiciona André Fraga, secretário municipal de sustentabilidade, inovação e resiliência, em entrevista à Página22. O engenheiro ambiental criou um “IPCC baiano”, reunindo experts da ciência para o enfrentamento do desafio. E está otimista: “O trabalho em rede nos levará longe”.
De onde veio a motivação para a estratégia climática como diferencial em meio ao cenário sombrio das políticas federais no setor?
André Fraga: Como ex-militante do movimento estudantil e presidente do Partido Verde (PV) local, identificado com o viés de esquerda, eu frequentemente debatia na cidade temáticas como áreas verdes e mobilidade. No caminho das eleições de 2012, porém, o partido já demonstrava ter perdido força e o então candidato a prefeito, Antônio Carlos Magalhães Neto, nos acenou com uma aliança na disputa contra o PT e seus inúmeros aliados. Debatemos internamente no partido essa mudança de rumo e respondi que a gente toparia, desde que tivéssemos o vice e assinássemos uma carta com 43 compromissos: ciclovia, coleta seletiva, revisão do plano de desenvolvimento urbano, ficha limpa etc. Ninguém acreditou, mas seguimos em frente e vencemos as eleições. Então foi criada uma secretaria de governo inspirada na Programa Cidades Sustentáveis, com parceria do Instituto Ethos. Naquele momento foi preciso organizar a casa, porque a cidade vinha de um processo de precariedade da infraestrutura. Superamos passivos, organizamos legislações e criamos o IPTU Verde, o plano diretor de arborização urbana e a política municipal de meio ambiente, uma demanda histórica. Na primeira gestão, trabalhamos a coleta seletiva, requalificamos áreas verdes importantes e começamos a dialogar com agenda de mudança climática.
E aí entra um tema muito importante: o papel das redes de cidades, como algumas que Salvador faz parte, que proporcionam articulação, inspiração, diálogo e muito conhecimento e aprendizado. Aos poucos aprofundamos a política ambiental, assumindo novos compromissos públicos e voluntários, e no longo prazo queremos que cidade seja neutra de carbono até 2050. O objetivo está no Plano Salvador 500, com a visão de como deverá ser a capital no horizonte de 2049, quando completa meio milênio de vida.
Como o desafio do clima interage com a questão da desigualdade social e outras demandas típicas de uma cidade como Salvador?
Fazemos parte do projeto global 100 Cidades Resilientes, com ações que já estão sendo implantadas. Lançamos uma estratégia de resiliência, incorporada do planejamento municipal. A gente precisa vencer tensões e estresses. Tensões crônicas que se acumulam ao longo do tempo. A principal delas em Salvador é a desigualdade social. Quanto ao estresse, temos os eventos climáticos extremos, em especial a chuva que causa enchentes e deslizamentos de encosta. Convivemos com esse desafio de forma permanente e é necessário tirar pessoas de área de risco e criar parques para criar oportunidades de lazer e evitar a ocupação de áreas ambientalmente mais frágeis em bairros de baixa renda. Um dos exemplos é obra de saneamento, urbanização, moradias e intervenções sociais na região do Mané Dendê, no subúrbio ferroviário, com US$ 130 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Como os mais jovens estão se engajando nesta nova visão de cidade resiliente?
Investimos em empreendedorismo social de impacto. Um centro de inovação para incubar e acelerar soluções contra a desigualdade na cidade, considerando também os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, foi o principal caminho. Lançamos um edital chamando negócios em economia e agora faremos outro para empreendedorismo feminino. Assim procuramos sair da tensão.
Esses investimentos seguem algum estudo de vulnerabilidade da cidade quanto às mudanças climáticas?
Ainda não. Temos um inventário de emissões de carbono e agora, aproveitando a Climate Week em Salvador, lançamos o início dos estudos de vulnerabilidade. Temos quase R$ 1,5 milhão para elaborar o plano de mudança climática como parte dos recursos destinados à obra de requalificação da orla. Recebemos ainda mais US$ 300 mil da organização C40 Cities, rede que conecta gestores e prefeitos ao redor do mundo para possibilitar uma ação climática coletiva mais forte.
No Climate Week foi anunciada uma ideia inovadora quando se olha para a gestão das cidades, o Painel de Mudanças Climáticas. Qual a proposta?
A iniciativa pretende funcionar no modelo do famoso Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), só que aplicado a uma cidade. Em Nova York já há uma tentativa nesse sentido. Reunimos cientistas de várias instituições em dez áreas do conhecimento, como mobilidade, zona costeira, áreas verdes, reduzindo a distância entre academia e governantes. Você sabe que no Brasil é difícil o diálogo entre as duas partes, mas aqui a mudança climática tem servido de ponte entre eles, aproximação entre ciência e gestão pública que já tem acontecido na criação de parques municipais. O time é auxiliado pelo climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), referência em aquecimento global, além do Sérgio Margulis, pesquisador do Instituto Internacional para Sustentabilidade que acaba de elaborar um amplo diagnóstico sobre a vulnerabilidade das obras de infraestrutura brasileiras à mudança do clima.
Como a cidade tem respondido a essa pegada nova do clima?
Certo dia disse para o prefeito: “Não sei se percebeu, mas você se tornou uma liderança no enfrentamento da mudança climática, não podemos negar”. Ele virou para mim e disse: “sua responsabilidade aumentou também”. Com certeza. Agora mais do que antes, obviamente. E para a cidade neutra em carbono precisará enfrentar o principal problema quanto às emissões: o transporte público, que corresponde a 74% dos gases de efeito estufa. É um problema de todas as capitais da América Latina e vamos tentar mudar a matriz energética de 1,2 mil ônibus, e não dá para esperar que a prefeitura sozinha faça isso. Mudar o combustível das frotas do padrão Euro 2 para Euro 5, com menos teor de enxofre, já evita dez mortes por ano em Salvador.
Como a iniciativa privada está incorporando esse processo conduzido pelo poder público?
Falta um pouco mais de engajamento. Vou dar um exemplo muito local, muito objetivo, que poderia contar com uma participação muito maior das empresas, inclusive por questão legal: a gestão do resíduo sólido. A sociedade de forma geral só exige coleta seletiva do poder público municipal. Não vemos a sociedade cobrar das empresas. Elas precisam tirar compromissos do papel e contribuir. Essa é uma agenda que precisamos avançar junto com o setor privado.
Que tipo de benefício para a economia da cidade a lógica do baixo carbono pode trazer?
Ao criar o programa de incentivo IPTU Verde, o foco foi promover a construção sustentável que consome menos energia e gera menos resíduo, mas a ideia na verdade estava em atrair e incentivar a chegada de empresas de energia solar, tecnologia de aproveitamento de água e destinação adequada de resíduos, criando alternativas econômicas vinculadas à inovação. A cidade já tem um hub de tecnologia, e agora criaremos um hub de economia criativa. O PIB da cidade continuará tendo como carro-chefe o turismo, mas também um turismo de base ecológica bacana, com inovação. Inovação em sustentabilidade, energia, impacto social, porque a agenda não pode estar de forma alguma apartada da questão da desigualdade. Em resumo: o turismo precisa ser uma mola propulsora para potencializar a inovação e sustentabilidade em Salvador.
Para neutralizar emissões, além de reduzir gases dos veículos, será preciso plantar árvores para a captura de carbono, certo?
Isso, a gente vai fazer agora, no nosso Plano Municipal de Mata Atlântica. Mas é preciso plantar árvores adequadas e por isso criamos um manual de referência. Além disso, a prefeitura mantém um serviço de “disque muda” para delivery na casa dos moradores. Em dois anos, foram 5 mil entregas. Hoje é obrigatório a novos prédios e casas plantar árvores na calçada em Salvador.
O que representa a Climate Week nesse novo processo histórico que Salvador tenta emplacar? E como isso contrasta com o contexto nacional da política de meio ambiente?
Vejo como um grande divisor de águas. Isso gera um ambiente que envolve todo mundo, setor privado e sociedade civil, mas principalmente o próprio governo municipal. Vieram todos os secretários, estamos unidos nesse objetivo. É um momento de engajamento do próprio poder público. É muito importante continuar o processo montando coalizões com outras cidades.
No momento atual, a construção de redes de poderes locais é o que pode fazer a diferença na agenda climática?
Isso já está fazendo a diferença. Basta ver o C40, onde voluntariamente as cidades assumiram metas de emissões com acesso a financiamento da Embaixada Britânica e outras organizações para atingir os objetivos [no Brasil, Salvador, Rio, São Paulo e Curitiba].
O que a Bahia tem de diferente, de cultura, de formas de enxergar as coisas, que ajuda a ter sucesso nesse diferencial do enfrentamento climático?
Somos a primeira capital e não tenho dúvidas que Salvador influenciou a ciência mundial porque aqui passou Charles Darwin, no primeiro contato que teve com a floresta tropical – e também com a escravidão, conforme registros antigos. Cantores e artistas são grandes ativos da cidade, assim como a cultura africana e indígena, que interagiu com a europeia. A diversidade é a grande força. E isso contribui bastante com essa nova agenda.