Há dezenas de outros “açaís” prontos para o mercado, capazes de estabelecer a bioeconomia, substituindo o boi, a soja e o desmatamento como sinônimos de progresso [Foto: Constantino Lagoa/ Flickr Creative Commons]
A “filosofia da pilhagem”, segundo a qual a Amazônia é uma reserva sempre disponível, baseia a sua exploração em contravenções, em atividades econômicas de alto impacto socioambiental e no consumo incapaz de relacionar a carne no prato com o impacto sobre a floresta
Por João Meirelles Filho*
Que Amazônia as próximas gerações receberão de nós? Será uma Amazônia respeitada e justa, diversa e sustentável, ou será aquela com os piores indicadores socioambientais do Brasil, em que predomina a concentração de renda e poder, e a violação diária de direitos básicos?
Há séculos o pensamento dominante, com pequeninas nuances e com amplo espectro de seguidores (caso contrário não alcançaria tamanha envergadura), acredita que desenvolvimento é “ocupar” o “vazio populacional e econômico”, fruir os bens que a Amazônia oferece e implantar modelos de fora para dentro.
Essa “filosofia da pilhagem”, segundo a qual a Amazônia é uma reserva do Brasil infindável e sempre disponível, baseia-se em: 1. Contravenções – garimpo, roubo de madeira, pesca excessiva, apropriação de terras públicas, desmatamento e queimadas, trabalho precário e trabalho infantil etc.; 2. Atividades econômicas de alto impacto socioambiental – principalmente a pecuária bovina extensiva e a produção intensiva de grãos; e 3. Consumidores parvos e estólidos – incapazes de relacionar a carne de seu prato com o impacto sobre a Amazônia.
A contravenção deveria ser tratada na esfera policial e judicial. Mas, a eloquente impunidade incentiva contraventores a prosseguir, em um universo de punições irrisórias, protelações judiciais, multas nunca pagas (e nem sequer cobradas), mecanismos sofisticados de apropriação do bem público.
As atividades de alto impacto dependem do desmatamento e queimadas sistemáticos e, oferecem produtos baratos e de baixo valor agregado ao Brasil e ao mundo, crendo-se vencedores. Entretanto não remuneram as externalidades (custos socioambientais e econômicos não contabilizados), e especial os impactos aos povos tradicionais, à biodiversidade, a erosão do solo, as perdas de serviços ambientais (diminuição de umidade e chuvas, aumento das temperaturas etc.), entre outros. Os impostos, que deveriam compensar algumas externalidades, trazem poucas melhorias para a maioria da população.
Exportação modelo “pata do boi”
De longe, a pecuária bovina extensiva é a atividade de mais alto impacto socioambiental, responsável por mais de 80% do desmatamento e queimadas. Nada novo a um país que reduziu significativamente as paisagens naturais dos outros biomas a partir do modelo “pata do boi” – modelo econômico que tem na pecuária bovina extensiva a ocupação pioneira do território. Nesse modelo, a pecuária “esquenta” a terra até que ela tenha valor, seja terra pública invadida, seja privada.
A diferença é que na Amazônia a era da motosserra e do trator de esteira acelerou exponencialmente a devastação. Poucos visualizam que as decisões de consumo por mais carne significou a destruição de uma área maior que a soma dos estados de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Pior: nada indica que este processo esteja em declínio.
O consumo de carne bovina também cresce pela avidez da China e outros mercados internacionais por carne barata. sendo que os impactos negativos da produção (uso de água, degradação do solo, emissão de carbono etc.) se dão no Brasil.
Mesmo que a produtividade da pecuária na região avançasse estrondosamente (o que, sabemos, não ocorrerá), esta seguiria sendo o motor da destruição. A única saída seria um conjunto de cadeias de valor sustentáveis baseadas na biodiversidade, no conhecimento tradicional e no desenvolvimento técnico-científico. Modelos capazes de encontrar outros paradigmas de sucesso que o boiadeiro-desmatador.
Novas gerações
As esperanças estariam nas novas gerações e seus novos padrões de responsabilidade – no reconhecimento de populações tradicionais, na relevância da biodiversidade e serviços ambientais, nas decisões de consumo.
Os jovens terão forças para exigir mudanças profundas na Amazônia, substituindo os pastos monotonamente improdutivos por uma bioeconomia vibrante e socialmente justa? E, uma questão ainda mais crítica: haverá tempo para mudanças tão profundas de comportamentos, diante de mudanças climáticas que atingem duramente regiões como a Amazônia?
O açaí pode servir de exemplo, pois seu enorme crescimento se deve ao consumo dos jovens como algo associado à saúde. Apesar do trabalho precário e infantil que impacta mais de cem mil famílias, este aponta um caminho: como um produto que praticamente era de consumo local e considerado “comida de pobre” tornou-se uma cadeia de valor com perspectivas de gerar renda local e “imitar a floresta”?
De fato, há dezenas de outros “açaís” prontos para o mercado, capazes de estabelecer a bioeconomia, substituindo o boi, a soja e o desmatamento como sinônimos de progresso. Está na hora de a força jovem exigir o legado que quer receber das gerações no comando da Amazônia.
*Escritor e diretor do Instituto Peabiru, tem nove livros e diversos artigos dedicados à questão amazônica