Assim como no caso das saúvas, deixar de perceber a relação entre causa e efeito tem se mostrado fatal para a sociedade humana
A saúva é aquela formiga grande, vermelha, encontrada Brasil afora. Nos anos 50, um dito popular era: “ou o Brasil mata a saúva, ou a saúva mata o Brasil”.
As saúvas cortam as folhas, especialmente das plantas em crescimento, prejudicando bastante as lavouras ou canteiros de mudas para reflorestamento. Essas folhas são levadas para o formigueiro, onde servem de substrato para formação dos fungos dos quais as saúvas se alimentam. Matar as saúvas na lavoura não adianta nada, pois muitas outras virão e continuarão o ataque. A solução é destruir o formigueiro, mas uma das dificuldades é que os formigueiros podem estar muito longe das plantas atacadas, a até mais de 300 metros, enterrados, profundos e difíceis de localizar.
Um tipo particularmente eficaz (embora perverso) de formicida consiste em iscas envoltas em uma camada de celulose que são depositadas no caminho percorrido pelas formigas, esse sim visível a olho nu. As saúvas identificam as iscas como comida, levam ao formigueiro e adicionam ao estoque de fungo, para fermentar como qualquer outra folha. As iscas passam a soltar o veneno após a camada de celulose se decompor, envenenam o alimento e destroem o formigueiro por inanição – as formigas só se alimentam das folhas fermentadas, não das in natura.
Os primeiros desses formicidas não deram certo: soltavam o veneno em cerca de 24 horas, e as formigas conseguiam associar aquelas iscas ao veneno, levando-as para fora do formigueiro antes que contaminassem todo o fungo, evidência de inteligência das saúvas, visível, aliás, em diversos outros aspectos de sua sociedade.
A solução (para os agricultores, não para as saúvas) foi criar uma camada de celulose mais espessa, que levasse três dias para se decompor. Após esse período, as formigas não se “lembram” mais das iscas, o veneno age sobre todo o fungo acumulado e o formigueiro é destruído. Sua inteligência não é suficiente para fazer a associação entre causa e efeito, e sua sociedade – aquele núcleo – se extingue.
Fenômeno semelhante parece ocorrer com a espécie humana, tida como a mais inteligente das espécies vivas (e creio que também das extintas). Só que nossa escala de tempo, na qual não somos mais capazes de relacionar causa e efeito, passa de dias para anos, décadas e talvez mesmo séculos.
Isso fica evidente nos processos de gestão pública democráticos, em que administradores e candidatos estão sujeitos à lógica temporal dos mandatos (no Brasil, quatro em quatro anos), enquanto devem tratar de problemas cuja solução pode demandar 10, 20, 30 anos ou até mesmo mais.
Assim é na questão da educação. Investir em sistemas educacionais que efetivamente formem cidadãos só produzirá resultados quando a geração estudantil se tornar adulta e assumir as responsabilidades produtivas, culturais, públicas que lhe caberão. Exames anuais ou periódicos de fim de ciclo ajudam a avaliar a qualidade da educação, mas o verdadeiro resultado é de longo prazo, exige perseverança no investimento e certamente ultrapassa vários mandatos.
Assim é na questão do transporte público. Construir uma malha metroviária nas metrópoles toma décadas. Quem inicia essa obra provavelmente não a verá concluída. Quem quer resultados de curto prazo, que possam ser usados nas campanhas eleitorais, investe em sistemas viários voltados ao transporte particular, como viadutos, túneis, alargamento de avenidas, que desafogam o trânsito logo depois de prontos, mas cujo efeito a longo prazo é mais carros nas ruas e mais lentidão, como pode ser visto numa cidade como São Paulo, totalmente congestionada.
Assim é no uso dos recursos naturais, essenciais para a sobrevivência humana. Em vez de se perceber como parte integrante da natureza, o homem passou a querer dominá-la. Descobriu o petróleo, inventou os combustíveis e outros derivados como plásticos, e hoje enfrenta níveis insuportáveis de poluição e de acúmulo de detritos sólidos, cuja decomposição ultrapassará gerações. A queima de combustíveis fósseis provoca o efeito estufa e o aquecimento global, ameaçando a sobrevivência de ilhas estados-nação, de cidades costeiras e da própria espécie humana, a longo prazo, pela alteração dos regimes de chuvas e secas e pela ocorrência de fenômenos naturais extremos, como furações de forte intensidade.
A exploração florestal desordenada, predatória, objetivando ganhos de curto prazo para venda de madeira e transformação de áreas de floresta em pastagens reduzirá, no caso da Amazônia, o fluxo hídrico do Norte para o Sul, os chamados rios voadores, ameaçando o futuro do agronegócio e, igualmente, a sobrevivência da espécie humana.
Nos diversos casos, perdeu-se a relação entre causa e efeito. No entanto, temos hoje suficiente conhecimento científico para refazer essa conexão. Cabe a nós, aos que hoje dirigem empresas, aos que ocupam cargos em governos e à sociedade como todo nos conscientizarmos de que o que fazemos hoje impactará gerações futuras, até mesmo os ainda não nascidos, que não podem, portanto, se defender, e assumirmos a responsabilidade de tomarmos decisões que preservem os recursos naturais para que seu uso possa se estender de forma sustentável a perder de vista.
* Sergio Mindlin é membro da Coalizão Brasil, Clima, Floresta e Agricultura e consultor associado do Instituto Ethos e do Instituto Akatu
[Foto: Henrique Simplicio/ Flickr Creative Commons]