É preciso desmistificar a comparação automática que vem sendo feita entre a pandemia e uma eventual crise climática, como se a primeira fosse um “simulado” em menor medida da última. Na verdade, a situação atual já é um aspecto da emergência climática
Este artigo não está focado em destrinchar os impactos sociais e econômicos sobre a crise do coronavírus, dado que estamos inundados de informação sobre eles. O objetivo aqui é desmistificar a comparação automática que vem sendo feita entre a pandemia e uma eventual crise climática, como se a primeira fosse um “simulado” em menor medida da última. O motivo é simples: na verdade, a situação atual já é um aspecto da emergência climática.
O Relatório de Riscos Globais para 2020 (com dados levantados em 2019), do Fórum Econômico Mundial, colocava o risco de “doenças infecciosas” em uma modesta décima posição em seu ranking de impactos. Na listagem de probabilidade de ocorrência, tal risco nem aparecia no Top 10. Os riscos climáticos aparecem no topo de ambas as tabelas: em probabilidade, os riscos de eventos extremos e de falha na ação para a crise climática ocupam as duas primeiras posições; em impacto, a incapacidade de gerir tal crise fica em folga no topo.
É possível utilizar essa abordagem para ressaltar a magnitude da intensificação dos impactos climáticos que vivenciaremos no futuro: se uma doença infectocontagiosa, que mal aparece na lista de principais riscos econômicos, já nos deve colocar na pior crise desde 1929, imaginem o que pode ocorrer caso a falha de agir frente às mudanças do clima pode gerar? Mas essa análise superficial esconde a relação substancial entre as duas crises.
Em primeiro lugar, precisamos riscar a esotérica hipótese de que a crise é “um recado da natureza” e serve de aviso para a questão do clima. O desenvolvimento de vírus e outros agentes patogênicos (para os humanos) faz parte dos ciclos naturais e o fato deles estarem se acelerando, sim, merece uma atenção especial pois se deve a nossa espécie. Ademais, esse argumento embute a ideia que somos corpos estranhos ao planeta e que a natureza busca nos descartar, o que não é o caso. O fato de não termos a melhor relação possível com o meio ambiente não significa que não somos parte dele, mas que precisamos repensar o nosso modelo de civilização.
Adicionalmente, a pandemia amplifica situações já existentes. Termos grupos sociais tão mais afetados expõe a desigualdade do sistema que vivemos, a qual comprovadamente só vem crescendo em quase todos os países ao longo das últimas décadas. Outra constatação factual é a relação entre o supracitado surgimento de doenças infecciosas, de maior ou menor periculosidade, de modo recorrente e com intervalos cada vez menores e a deterioração ambiental promovida por nós – desmatamento, derretimento do permafrost, comércio de animais exóticos etc.
Portanto, não podemos entender essa crise como um fim em si mesma. A pandemia e seus impactos em cascata já são a consequência de uma crise maior e multidimensional – ambiental, social e econômica: a crise climática, que deve se manifestar mais frequentemente e de forma cada vez mais intensa.
Todos os impactos ambientais gerados pelo nosso modelo econômico – que metonimicamente chamamos de “crise climática” dada a amplitude de eventos que a causam e as multifacetadas consequências que apresenta – se converterão em mais impactos. Serão mais doenças, eventos extremos, redução de produtividade agrícola, diminuição na disponibilidade de insumos e, enfim, efeitos de magnitudes que nunca lidamos no passado.
Esse momento não deve, então, ser utilizado apenas para intervenções pontuais, como estratégias de saúde contingenciais ou, menos ainda, em uma realocação no uso de recursos que deixe desamparada a gestão do clima. Há, claro, de se refazer a ressalva que estamos no período agudo de uma crise e realmente necessitamos lançar mão de ações emergenciais e de uma reorganização do orçamento escasso dos diferentes níveis de governo. Mas deve haver em conjunto um planejamento de longo prazo mais bem pensado, articulado entre as nações e, principalmente, posto em prática para evitar novas situações similares e relacionadas e também mitigar seus efeitos caso ocorram.
Por exemplo, o investimento prévio em saúde pública de qualidade e sua preparação para situações extremas tem se mostrado um diferencial no desempenho de regiões em lidar com o vírus. De igual forma, investimentos presentes na mitigação à mudança climática (redução de emissões), na adaptação aos seus efeitos (com infraestrutura mais resiliente e de atenção a populações mais vulneráveis) e na coordenação global para que isto ocorra de modo amplo no mundo terão igualmente impactos futuros na nossa capacidade de lidar com a intensificação da crise climática. Trazendo novamente o caso da saúde humana, esses investimentos “ambientais” terão efeitos também em reduzir casos de doenças crônicas respiratórias, evitando o surgimento de novas epidemias, entre outras benesses.
Há alguns sinais positivos nesse sentido. O reforçado engajamento da sociedade civil e do setor privado a despeito de sinais contraditórios de alguns governos mostram que se pode avançar em buscar soluções para crises. Além disso, vê-se uma pressão maior por decisões de investimento mais sustentáveis não só de governo, mas de investidores individuais e institucionais. É o caso das instituições financeiras, que vêm estabelecendo compromissos cada vez mais fortes para a promoção de uma economia sustentável.
Essa última citação é de particular importância, pois essas entidades são responsáveis em maior ou menor medida pelo financiamento de todas as atividades produtivas, e merece uma análise um pouco mais detalhada. Há uma mudança visível na abordagem das instituições financeiras em relação ao clima: não apenas querem entender como o impactam, como também como este as afetam. Isso é importante pois não há mensagem mais forte para uma instituição focada no lucro do que a quantificação das possíveis perdas.
Não à toa, vimos o surgimento de iniciativas como a Task-force on Climate-related Financial Disclosures (TCFD) e uma adesão cada vez maior a grandes compromissos como os Princípios para o Investimento Responsável (PRI) e Princípios para Responsabilidade Bancária (PRB). Essas iniciativas podem promover mudanças estruturais e não apenas conjunturais – e, provavelmente, de vida curta –, como a redução atual das emissões de gases de efeito estufa.
Entretanto, estas mesmas instituições precisam avançar muito diante da face social de uma crise, dado que alguns dos grupos mais afetados pela redução da atividade econômica, como empreendedores individuais e micros e pequenas empresas, têm tido enormes dificuldades para acessar crédito e mesmo vendo-o mais caro. Ou seja, precisam corresponder também nos momentos imediatos que são mais necessárias e em aspectos diretamente relacionados ao coração de seu negócio.
Outros efeitos benéficos da crise vêm em outras áreas que vinham sendo atacadas nos últimos tempos: a valorização da ciência e do jornalismo profissional, que serão instrumentos necessários para a sensibilização e implementação de planos para a crise climática. Por outro lado, devemos ter cuidado com esses ganhos. Os períodos de crise anteriores geraram melhoras apenas de curto prazo, com tudo voltando ao “normal” ou mesmo piorando pouco depois. Ademais, é preciso evitar a captura dessa agenda por poucos agentes que, posteriormente, podem cooptá-la para o simples interesse de geração de lucros, reduzindo-a a um disfarce seguir o business as usual.
Precisamos entender que a pandemia desvenda apenas a ponta do iceberg. Estamos apenas iniciando a curva de impactos da crise ambiental e parte de sua solução para alguns de seus efeitos pode até envolver momentos de isolamento, mas sua superação dependerá, principalmente, da cooperação entre pessoas, instituições e países.
*Fred Seifert é Chefe de Operações para América Latina & Caribe da SITAWI Finanças do Bem. O artigo reflete suas opiniões pessoais
[Foto: Lewis Roberts/ Unsplash]