[Foto: Idesam]
Novas gerações de empresários da Zona Franca de Manaus olham para a bioeconomia como alternativa para diversificação de negócios em linha com a sustentabilidade
Diante dos atuais desafios econômicos, ambientais e sociais envolvendo o futuro da Amazônia, empresas da Zona Franca de Manaus (ZFM) historicamente dedicadas à produção de peças para celulares, televisores e computadores começam a corrida por se adequar a novas demandas mundiais e se diferenciar no mercado pela aposta no que a floresta bem conservada oferece. Mais especificamente, além das tecnologias digitais, as atenções se voltam a negócios inovadores na bioeconomia, capazes de diversificar a matriz produtiva e gerar mais oportunidades de receita e emprego com o uso sustentável dos recursos naturais.
“A Amazônia tem grande potencial no exterior como marca; há um inestimável valor na narrativa de que, para tirar óleos vegetais, é necessário manter a floresta em pé, mas precisamos encontrar um caminho para sermos competitivos”, afirma Rebecca Garcia, CEO do Grupo GBR, em Manaus. A tradicional fabricante de componentes eletroeletrônicos, como placas, modem, receptores de TV e outros itens de informática, aderiu neste ano à nova fronteira de negócios por meio de investimento na produção de biocosméticos pela Biozer da Amazônia, startup amazonense especializada em inovações com espécies nativas.
Com os selos de certificação Ecocert (Europa) e Halal (Oriente Médio), os produtos reúnem alto potencial de demanda e a expectativa é servirem de vitrine para outros insumos da biodiversidade amazônica que já estão na mira da indústria investidora para exportação.
“No planejamento estratégico da empresa decidimos fazer estudos aprofundados e pinçar novos produtos em diferentes setores para investimento na diversificação”, revela a empresária, segunda geração de uma família de empreendedores regionais que aproveita o momento favorável a quem quer fazer diferente, unindo negócio e propósito. É, no final das contas, “uma contribuição para aquilo que a gente acredita”.
Apesar do cenário econômico difícil, “arriscar faz parte do jogo, ainda mais porque a crise global provocada pela pandemia de Covid-19 despertou a revisão de conceitos que nos fortalece e abre oportunidades em torno do que é sustentável”, reforça Garcia, participante do webinar Zona Franca de Manaus – Oportunidades para Inovação e Investimentos em Bioeconomia – o primeiro de uma série de debates virtuais que será realizada pelo Idesam até dezembro com a temática “Nova Economia da Amazônia” (confira abaixo a programação completa).
Os recursos de R$ 750 mil investidos pela indústria em projetos de biocosméticos vêm da contrapartida pelos incentivos fiscais que a beneficiam na produção eletroeletrônica na ZFM. A Lei de Informática obriga as empresas do setor a investir 5% do faturamento bruto em Pesquisa & Desenvolvimento, e desde o fim do ano passado esses valores – cerca de R$ 800 milhões por ano – podem ser revertidos também para negócios inovadores com base na biodiversidade. Como gestor desses recursos, o Programa Prioritário em Bioeconomia (PPBio), criado pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) e coordenado pelo Idesam, tem o papel de aproximar as duas pontas: pesquisadores de universidades, institutos de ciência e tecnologia e startups, de um lado, e empresas investidoras, de outro, fazendo a roda de uma nova rota de desenvolvimento girar.
Até o momento, o PPBio tem 73 projetos cadastrados, entre os quais 10 foram selecionados e estão em negociação para o repasse de recursos por indústrias que saem do business as usual, ao encontrar respaldo e segurança jurídica para arriscar o novo (veja mais na plataforma da Página22 Amazônia Soluções Covid-19).
A importância do capital humano
Pelo lado da oferta de tecnologias, a expansão dos negócios exige avanços na academia para prospecção da biodiversidade e desenvolvimento de produtos, conforme padrões de mercado: “Já temos o conhecimento tradicional; falta a ciência e a tecnologia para garantir a qualidade de produto que o mundo quer”. Para Garcia, pesquisas nessa linha “devem se transformar em nota fiscal”, aproveitando o momento de transformação na percepção dos mercados para a bioeconomia, de modo a vender lá fora, “trazer recursos de volta ao Brasil e gerar empregos”.
Na visão da empresária, o modelo mais diversificado pode fortalecer a economia amazônica e ajudar a interiorizá-la. Em 2019, o polo industrial da ZFM faturou R$ 104 bilhões, com mais de 400 empresas e 80 mil empregos (um terço na indústria eletroeletrônica), sendo que 95% do ICMS do Amazonas é arrecadado em Manaus, de acordo com Garcia.
“A Zona Franca reúne uma série de atributos fundamentais para posicionar Manaus e o Brasil como o hub global de inovação em bioeconomia. Precisamos ter ambição e visão de longo prazo para tornar isso uma realidade, que é de interesse do Brasil como um todo”, aponta Mariano Cenamo, diretor de novos negócios do Idesam, durante o webinar. Ele lamenta o viés negativo das altas taxas de desmatamento dos últimos três anos, correspondentes a 50% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa.
O quadro resulta, em grande parte, da “nossa incapacidade de aumentar a relevância dos negócios florestais, e agora precisamos investir no curto prazo para recuperar o tempo”, analisa Cenamo, lembrando que a Amazônia está no centro da pressão internacional de grandes investidores em busca de adequação de portfólios e compliance no cenário da mudança climática.
Sob o ponto de vista das oportunidades, destaca o diretor, “temos condições de desencadear uma verdadeira revolução verde, o que exige discutir a Amazônia de dentro para fora, e não o contrário”. Mas a alternativa é complexa, pois há um emaranhado de questões em jogo, como uma em especial apontada por Denis Minev, CEO do Grupo Bemol, em Manaus: a falta de cérebros. “Não formamos capital humano no ritmo necessário para sermos competitivos”, adverte. “Chega a ser ridículo o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, por exemplo, ter um orçamento anual de R$ 50 milhões, e não dá para falar sério sobre bioeconomia diante desse cenário”.
Investidor em negócios de uso sustentável da floresta, Minev lembra que a bioeconomia não é nada novo para a região, que desde os tempos da borracha e das “drogas do sertão” tem ciclos de desenvolvimento baseados em recursos da biodiversidade, hoje responsáveis por uma fatia inexpressiva do Produto Interno Bruto (PIB) da Amazônia. “Onde perdemos? O que fizemos de errado?”
Para Minev, a Amazônia pode ser estratégica para o País se reinventar no contexto de longo prazo da recuperação econômica, mas precisa de inteligência e escolhas, como algumas feitas no passado com efeito transformador. “Foi o caso do Instituto Tecnológico da Aeronáutica [ITA] e da Embraer, que deram posição de liderança ao Brasil nesse setor, e das pesquisas da Embrapa que expandiram a soja”, cita o empresário, reproduzindo o que a geógrafa Bertha Becker (1930-2013) já dizia nos anos de 1980, quando comparava esse esforço estratégico ao que poderia ser construído para o uso sustentável dos recursos florestais. “Até hoje, no entanto, o País não fez uma escolha sobre a Amazônia, e isso traz consequências”, lamenta o empresário, para quem a atual corrida em busca de uma vacina contra o coronavírus demonstra como é possível alcançar um objetivo quando há convergência de vontade política, recursos e urgência de uma solução.
“Até o momento, as ações não vão de encontro ao bonito discurso”, observa Minev, também fundador da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) – iniciativa coletiva do setor privado para apoio a soluções sustentáveis de startups inovadoras, hoje com 30 negócios acelerados e investimento de R$ 5 milhões.
Em mensagem enviada ao debate do webinar, o coordenador de economia verde do Ministério da Economia, Gustavo Fontenele, reforçou a relevância do modelo da ZFM e seus instrumentos de incentivo fiscal, e a necessidade de fortalecê-los, enxergando nisso uma “oportunidade muito grande para promover o desenvolvimento sustentável na Amazônia”. Segundo ele, o governo federal está criando o projeto Nova Amazônia Verde para promover cadeias sustentáveis, com ênfase em biofármacos, biocosméticos, piscicultura, turismo e mineração sustentável – mas não há detalhamento sobre instrumentos financeiros e políticas públicas que deverão ser propostas para o plano sair do papel.
No encontro virtual, discutiu-se a necessidade de investimentos em bioeconomia passar pela dimensão empresarial, mas também ampliar o alcance, com o respaldo de um programa de Estado que garanta continuidade em benefício das futuras gerações. Na análise de Minev, recursos humanos, infraestrutura e desburocratização são elementos essenciais. O controle do desmatamento é uma medida óbvia, porém “precisamos não apenas resmungar e construir um ambiente favorável aos negócios nesta nova economia”. “Na nossa teimosia regional”, diz, “sempre tentaremos de novo porque sabemos que um dia dará certo”.
Assista à íntegra do primeiro webinar da série:
https://www.facebook.com/pagina22/videos/1002715973532452