[Ponte entre Portland, Oregon, e Vancouver, Washington, obscurecida pela fumaça dos incêndios florestais. Foto: Aaron Hockley/ Flickr Creative Commons]
O ar que respiro é um dos piores do mundo. Vedamos portas e janelas e ligamos um sistema de filtragem, mas não basta. Por isso, escrevo de máscara. A luz que entra pela janela é vermelha, embaçada, trazendo flashbacks do polo industrial de Cubatão no fim dos anos 1980, quando me descobri jornalista ambiental, na finada Gazeta Mercantil.
Não que eu more perto de carvoarias, cimenteiras, termoelétricas. Vivo em Portland, na Costa Oeste, uma cidade com uma economia de baixo carbono, focada em tecnologia e serviços, e com um dos maiores índices de árvores per capita dos Estados Unidos.
Mas as nossas florestas queimam há dias, em um fogo atiçado por ventanias sem precedente. Pelo menos 400 mil hectares já foram perdidos no estado do Oregon, com 10 mortes confirmadas. Mortes humanas, bem entendido. Ninguém sabe ao certo as baixas entre outras espécies. Nas redes sociais, amigos pedem que deixemos comida e água do lado de fora para alimentar veados, alces e coiotes em fuga. Se não bastasse o drama, estamos importando fumaça da Califórnia, que já perdeu 1 milhão de hectares.
A EPA, a agência ambiental americana, adota um índice de qualidade do ar que leva em conta a presença de particulados e a concentração de diversos gases poluentes. O índice indica riscos à saúde quando excede 50 pontos. O estado de emergência é declarado quando ele passa de 301 por mais de 24 horas. Aqui em Portland, esse índice tem flutuado entre 375 e 700 nos últimos seis dias. Boa parte dos meus amigos fugiu para áreas menos afetadas. Mas eu não me engano. Não há para onde correr.
Eu me mudei para Portland há nove anos porque buscava, justamente, um refúgio contra a mudança climática. Na época, eu morava em Santa Fé, capital do estado do Novo México, um lugar árido, com rios sazonais e verões tórridos. Portland, em contraste, oferecia uma alta pluviosidade, autonomia agrícola, bom transporte público e consciência ambiental. A cidade até ganharia com uma elevação das temperaturas globais. É triste, mas você tem de pensar nessa linha, quando tem filhos e possibilidades.
Quando resolvemos mudar, recebemos uma família interessada em alugar a nossa casa em Santa Fé, vinda, justamente, da Costa Oeste. Perguntei a razão da mudança. “Meu marido acredita na profecia maia – acha que só o Novo México vai sobreviver à destruição”. Respondi com um sorriso: “Pois eu acredito em mudança climática. Quero me mandar para um lugar onde chove”.
Não deixo de apreciar a ironia da minha situação.
Fábio Barbosa, que era presidente do Banco Santander quando eu trabalhava por lá, na incorporação da análise de riscos socioambientais às operações de crédito, costuma dizer que “não dá para ir bem em um país que vai mal”. País, mundo – no caso, tanto faz. Não há como encontrar refúgio em um planeta que derrete.
E daí, como prosseguir quando se chega a esse entendimento?
Ambientalistas e cientistas têm manifestado sua depressão diante dos prognósticos cada vez mais sombrios. Não há consolo em dizer “eu avisei”.
Mas eu me agarro às memória de Paulo Nogueira-Neto, patrono da conservação da nossa natureza. Às vésperas da conferência Rio+10, a celebração de uma década desde a Cúpula da Terra, perguntei como ele não se desanimava diante da avalanche de reveses. “Se formos para Johannesburgo com uma expectativa excessivamente otimista, seremos ingênuos”, ele ponderou. “Mas se não tivermos um mínimo de otimismo, não sairá nada de lá”.
Nossa única saída é cair para cima. Olhar para as próprias circunstâncias e buscar possibilidades de ativismo, investimento social, educação. No meu caso, entendi que não tenho estrutura para lidar com tragédias, elas me paralisam. E eu quero ser como o doutor Paulo. Quero saber do que pode dar certo. Para isso é preciso ter foco. Todos precisamos de algum objetivo, uma cenoura que nos obrigue a avançar, mesmo que sem visibilidade. Mesmo que a fumaça dificulte a respiração.
No meu caso, defini botar a minha energia no apoio a iniciativas de recuperação de áreas degradadas da Mata Atlântica, meu hábitat original. Vamos ter de plantar muito, e com critério, para reduzir impactos. Daí nasceu o Projeto Nova Mata, que já mapeou mais de 800 iniciativas, entre ONGs, empresas, poder público e toda sorte de comunidade, de remanescentes de quilombos a pequenos viveiros engajados nesse movimento.
Também quero organizar toda a informação disponível, os guias e manuais, as fontes de recursos físicos e financeiros, as pessoas engajadas na base, na tentativa de reforçar as redes que já existem.
Isso faz diferença? Vai mudar alguma coisa? Não faço ideia. Mas não há alternativa além da resistência.