O verde que estava aqui
virou cinza, virou pó, virou carvão
de bicho, de planta, de vida
Patas queimadas, terra arrasada
alma chamuscada
De quem está presente e de quem assiste
… atônitos com a voracidade do fogo
e de quem desgoverna esse povo
e ri de um jeito jocoso
ao ver o Brasil em chamas
Nero por negligência, Nero pelo estímulo
às condutas que revelam o vil do humano
Desejo de ter tudo o que puder
doa a quem doer, queime o que queimar
Novidade não há
A mente torpe já traduziu
pandemia em gripezinha
e a morte em coisas da vida
Enquanto uns tossem, outros sufocam
e a perplexidade faz engasgar
O fogo, que para delirantes
é só fumacinha,
traz surpresas óbvias e turva
a reputação irreal e o ganho daninho
E avisa aos ímprobos: arremete!
No peito o grito é o mesmo: arremete!
Se afasta deste chão, voa bem longe daqui
Os pés entre a casa e a rua,
movidos de lágrima e bílis,
prontos para dar um pé na bunda
Condição para inspirar a gente cansada
que nem sempre concorda
mas que tem a noção de que vida
não se perpetua no escárnio
nem se regenera sem cuidado
Se em pandemia aprendemos
que cuidar de si é cuidar do outro,
na epidemia do fogo
relembramos que nutrir a vida
é cuidar do entorno
E se vem mais por aí
até o fim do ano, e nos seguintes
na próxima década
ao longo do século…
Como avançar?
Eu, você, quem vem depois
sem água, sem terra, sem refresco
sem amor, sem escuta
sem força ou aspiração?
Não
Podemos mais do que isso
Somos mais do que aquilo
Agir agora é agir pra sempre
Que o fogo ilumine veias, vales, valores
e ative o substrato que os fazem pulsar
*Comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)
[Foto: Fumaça das queimadas na cidade de Poconé, Mato Grosso. Lula Marques/ Fotos Públicas]