Quantos recursos são necessários para proporcionar o desenvolvimento na região Amazônia e como alcançá-los? Um olhar minucioso sobre despesas e receitas nos nove estados que compõem a Amazônia Legal mostra a dimensão desse desafio, ao revelar a estreita margem com que os governos locais operam para executar investimentos de ordem social e ambiental.
Os números lançam sinais amarelos para o planejamento e a gestão pública na região, como a necessidade aumentar a eficiência, a produtividade e a transparência na alocação dos recursos, de modo a cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mostram também a importância de buscar caminhos alternativos para contornar o engessamento do orçamento público – que constitui um problema estrutural não só na Amazônia, mas em todo o País.
Esses números foram dissecados em recente estudo coordenado por João Bernardo Bringel, intitulado Elaboração de estudo e diagnósticos sobre aspectos fiscais dos estados da Amazônia Legal. Especialista em Planejamento e Orçamento Federal e com larga atuação no governo, Bringel ocupou cargos como a secretaria do Orçamento Federal e a secretaria executiva do Ministério do Planejamento. Hoje é líder de Projetos do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais (FGV-DGPE).
Os principais pontos de sua pesquisa foram apresentados no webinar Orçamento Público: desafios e caminhos para o desenvolvimento sustentável na Amazônia, o segundo realizado pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia em parceria com a Página22. O debate, mediado pela jornalista Karen de Souza, também contou com a participação de Sônia Janete Gomes, secretária executiva de Planejamento do Amazonas (que faz parte da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação), e Francisco Gaetani, que foi secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente (2011-2016) e hoje preside o Conselho de Administração do Instituto República.
Ao mesmo tempo em que traça o diagnóstico da saúde financeira na região, o estudo aponta possíveis “tratamentos”. Para cada estado da Amazônia Legal, traz indicadores de atenção, mostrando potencialidades locais a serem exploradas para encontrar as saídas. (Fazem parte da Amazônia Legal os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Maranhão, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.)
Para Bringel, a boa notícia está na alta diversidade ambiental e sociocultural da região – como mostra a reportagem “Quem é a Amazônia?”, com base no primeiro webinar desta série de encontros. “A diversidade faz com que a região tenha vocações diferentes, por isso possui um potencial muito grande”, afirma.
A Amazônia, de forma geral, padece de um descompasso: o crescimento econômico nos últimos 27 anos (de 1990 a 2017) foi insuficiente para promover uma redução na desigualdade regional de renda. Estados como Amazonas, Pará e Amapá tiveram empobrecimento relativo da população em relação ao Brasil, enquanto outros progrediram, como Maranhão, Tocantins e Mato Grosso.
Mas, olhando de forma agregada, é possível verificar o quanto a Amazônia sofreu com o período de recessão dos anos 2015 e 2016. Considerando as receitas arrecadadas em valores reais, ou seja, descontada a inflação no período, cinco anos após o início da crise, a Amazônia Legal ainda não tinha voltado ao mesmo patamar de 2014. Entre os anos de 2014 e 2019, houve quedas significativas nas operações de crédito (de R$ 6,67 bilhões para R$ 2,7 bilhões) e nas transferências de capital (de R$ 1,38 bilhão para 336 milhões), devido ao arrocho realizado pela União para conter a crise fiscal. Essas duas contas são relevantes porque delas depende a maior parte dos investimentos efetuados pelos estados.
Bringel ressalta que, mesmo com a forte queda das operações de crédito, estas ainda significaram 62% do valores investidos pelos estados em 2019. “Isso retrata o alto grau de dependência dos estados [em relação a recursos externos]. Para fazerem investimentos com recursos próprios, precisam de esforço muito grande”, afirma.
Junte-se a esse quadro o fato de que, de 1960 pra cá, os estados vieram perdendo relevância na distribuição tributária dos recursos, um assunto a ser discutido no âmbito das propostas de Reforma Tributária. Segundo o especialista, é possível instituir uma melhor divisão e cobrança desses tributos. “Muitas vezes, estados da Amazônia contribuem mais do recebem. Precisa haver uma concertação dos políticos que representam os estados da Amazônia Legal na discussão da reforma no Congresso. A região representa um terço do Senado Federal, ou seja, conta com peso político”, diz.
Despesas
Do lado das despesas, Bringel chama atenção para o comprometimento de 93,6% dos recursos públicos na Amazônia Legal em apenas cinco contas: encargos especiais (pagamento de dívida pública e repartição de receitas), freios e contrapesos (despesas com Legislativo, Judiciário e Ministério Público), investimento social (gastos obrigatórios em saúde, segurança e educação, que tiveram elevação significativa desde 2014), gastos sociais (previdência, assistência aos presidiários), e gastos com administração.
O restante, que corresponde a apenas 6,4% do total, são despesas com logística, economia, infraestrutura social (habitação, saneamento, urbanismo), investimento em sociedade (trabalho, cultura, desportos e lazer), gestão ambiental e ciência e tecnologia – sendo esses dois últimos itens contemplados com a minúscula fatia de 0,4% e 0,2% do bolo.
Esse engessamento não é uma prerrogativa da Amazônia. No País como um todo, o comprometimento do orçamento também chega aos níveis de 93%, 94%. Já nos Estados Unidos, para efeito de comparação, a rigidez orçamentária é de 68%.
As despesas com freios e contrapesos chamam atenção não apenas pelo volume relativo (13,3% das despesas em 2019) como o aumento desde 2014, quando representavam 11,7%. Basta comparar com as rubricas de gestão ambiental e investimentos em ciência e tecnologia para se ter se ideia da disparidade.
Para Bringel, os freios e contrapesos são indispensáveis ao funcionamento da democracia. O que se discute é a qualidade dos gastos no âmbito dos Poderes e a forma diferenciada como são tratados. Ele pontua que, recentemente, o Executivo encaminhou o projeto de Reforma Administrativa, contudo declarou não ter competência para incluir modificações inerentes aos Poderes Legislativo, Judiciário e ao Ministério Público. “Grande parte do peso dessas despesas é com pessoal e encargos sociais, despesas obrigatórias de caráter contínuo, sujeitas a críticas sobre privilégios. Mais uma vez, são os desequilíbrios e a eficiência que estão em jogo”, diz.
Francisco Gaetani entende que esse é um assunto delicado, sobre o qual há um temor generalizado em se tratar, pois se temem retaliações – mas que precisa ser enfrentado. Segundo ele, de 2010 a 2020 a erosão da autoridade do Executivo correspondeu a um aumento do orçamento desses poderes e órgãos, com situações inadmissíveis em alguns casos. “Os custos de transação do mundo jurídico sobre a economia são únicos no mundo. O primeiro desafio é explicitar o problema, o que o Bringel fez”, afirma.
Uma outra conta que drena recursos que seriam usados para educação, saúde e, meio ambiente é a previdência, sob a rubrica de gastos sociais. A maioria dos estados da Amazônia (excetuando-se o Acre) ainda tem uma vantagem sobre outros estados da federação, pois os gastos com inativos estão abaixo da metade das receitas com ativos. Em São Paulo, por exemplo, as despesas com inativos são de 95% e, em Santa Catarina, 99%. Mas não é o caso de baixar a guarda: Bringel lembra que houve uma piora acentuada em cinco anos na Amazônia Legal, com esse percentual passando de 37% em 2014 para 45,3% em 2019. “É preciso um movimento no tempo certo, pois se não pode se aproximar muito da situação de SC e SP”, afirma o especialista.
Também há despesas pesadas no âmbito de pessoal. Das receitas advindas do Fundo de Manutenção e desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), por exemplo, mais de 90% foram aplicados em salários em todos os estados da Amazônia Legal, em 2018. O Maranhão chegou a 100%. É o que se chama de efeito catraca: quando as receitas crescem, são aplicadas em pessoal, mas, quando caem, as remunerações não podem ser reduzidas.
Diante desse cenário de contas apertadas, Gaetani vê oportunidades. “Em época da abundância, a gente faz grandes bobagens, mas em época da escassez a gente gerencia os recursos de uma forma melhor”, diz. “Talvez agora a gente tenha uma possibilidade de explorar os recursos com mais seriedade e qualidade, e com maior preocupação em relação à sua produtividade.”
Ele lembra que a natureza do gasto não é garantia de uma boa aplicação dos recursos. Ou seja, não é porque se gasta com uma causa nobre como educação, por exemplo, que o gasto necessariamente é adequado. Este pode ser mal aplicado e não trazer os resultados esperados. Assim, antes de se discutir o teto de gastos – que julga importante para conferir credibilidade à política econômica, mas é frequentemente acusado de impedir de impedir o desenvolvimento –, Gaetani entende que há muito a ser feito na região junto a doadores, investidores e o capital nacional que está investindo na região, de modo que os governos locais possam gastar de uma forma mais efetiva.
O ex-secretário executivo do MMA que “a Amazônia não vai se erguer pelos cabelos”, e precisa de fundos de natureza diversa, como já teve no passado, além de fazer as pazes com a comunidade internacional. “Não tem cabimento uma situação como a do Fundo Amazônia. A gente está rasgando dinheiro no País”, diz. Em 2019, os repasses de doadores internacionais do Fundo Amazônia foram suspensos depois que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pôs em suspeição a forma como eram geridos.
Por outro lado, há boas notícias, como a organização dos estados no Consórcio Interestadual da Amazônia Legal, alavancando investimentos. Oficializado em março de 2019, o consórcio tem como objetivo transformar a Amazônia Legal em uma região mais competitiva, integrada e sustentável. É o terceiro consórcio interestadual no Brasil, seguindo-se ao do Brasil Central e o do Nordeste.
Cultura de planejamento
Mas, para Gaetani, o Brasil acabou perdendo a cultura de planejamento. “A Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia] já foi um órgão importante; hoje é uma pálida imagem do que foi no passado”, diz.
Sônia Gomes, que se dedica ao planejamento no estado do Amazonas, é da mesma opinião. “Você pode observar que a nossa cultura no Brasil é de orçamento. Por exemplo, o tema do webinar do qual participamos era orçamento e não planejamento. Só que o orçamento deriva do planejamento. Primeiro é preciso planejar e depois montar o orçamento para executar os planos, do contrário o plano acaba virando uma peça de gaveta”, diz.
Mas o Amazonas está buscando uma forma de contornar essa situação, colocando o Plano Plurianual (PPA) na ordem do dia e ainda imprimindo critérios de sustentabilidade às ações e políticas do estado: para isso, busca alinhar o PPA aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030.
Segundo a secretária, esse alinhamento com a agenda da ONU, iniciado no PPA 2020-2023, é capaz de trazer uma série de benefícios: faz do plano uma peça integrante do dia a dia do gestor, facilita o monitoramento dos resultados das ações do governo, aproxima o cidadão comum das políticas públicas e ainda confere ao governo uma chancela que facilita o estabelecimento de parcerias internacionais e com empresas privadas (saiba mais em quadro abaixo “Pensar global, agir local”).
Gaetani salienta que o alinhamento com os ODS contribui para alavancar sinergias, ao permitir que as diversas áreas dialoguem umas com as outras. Isso leva a um melhor aproveitamento dos recursos públicos.
No âmbito do planejamento regional, ele vê a necessidade de trabalhar com uma visão de desenvolvimento que articule “as várias Amazônias’, dispostas em uma heterogeneidade de microrregiões. “Temos a Amazônia da Suframa, temos a de Roraima, temos a passagem para o Pacífico, temos Santarém, Marajó, Matopiba. Ele defende um olhar que articule essas diversas regiões e busque uma simbiose entre o capital privado, as forças civis e as militares.
“Não basta só combater o desmatamento, precisamos de opções de crescimento, de geração de emprego e renda, pois a busca dinheiro fácil e imediatista empurra as pessoas para ilegalidade”, afirma Gaetani. A saída, a seu ver, é deixar a polarização de lado para um trabalho cada vez mais conjunto e colaborativo.
Pensar global, agir local
Parceria, transparência e controle social: essas são as palavras-chave que, segundo Sônia Gomes, definem a iniciativa do estado do Amazonas em atrelar o planejamento local à agenda global dos ODS. Ela afirma que essa adesão conta o envolvimento direto do governador, Wilson Miranda Lima (PSC), do vice-governador, do secretariado e dos presidentes de autarquias.
“Hoje você não assiste a uma reunião com um governador que ele pergunte se determinada ação está no PPA e vinculado ao ODS. Isso é uma coisa que não se via” diz. O alinhamento, segundo ela, mostra a preocupação do governo com um desenvolvimento que seja sustentável e facilita o acesso a recursos, o que é ainda mais estratégico em um contexto de rigidez orçamentária e escassez de verba.
Até o momento, foram apresentados dois projetos de parceria para a Agência Brasileira de Cooperação, e a secretaria conseguiu recursos junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para executar ações de área de fronteira ainda este ano.
A secretaria de Planejamento hoje conta com o apoio do Programa das Nações para o Desenvolvimento (Pnud) que a auxiliou no alinhamento com a Agenda 2030 e na consulta para definição de aceleradores e direcionadores. “Com isso, a secretaria tem mais clareza de onde focar esforços para obter um resultado mais rápido na execução das atividades”, afirma.
Gomes explica que o PPA ficou mais próximo do dia a dia dos gestores, e inclusive foi criado e entregue aos dirigentes um PPA de bolso para ser consultado a qualquer hora. Além disso, a secretaria está trabalhando com Escolas de Governo para treinamento dos gestores, de forma a proporcionar o maior alinhamento com a Agenda 2030. O diagrama abaixo mostra como o PPA e os ODS se integram no Amazonas.
Ela acredita que o alinhamento com os ODS, que trazem mensagem claras e ícones acessíveis, ajuda também a traduzir as políticas para o cidadão, aproxima as políticas públicas de sua realidade cotidiana e pode facilitar o entendimento e acompanhamento das ações do governo. A secretária admite que o Portal da Transparência do Estado do Amazonas, por exemplo, não é tão claro ao cidadão comum como poderia ser.
Ela conta um episódio para mostrar como a comunicação impõe desafios para todos os lados, e o que puder ser feito para a aumentar a clareza é relevante: “Nós fizemos uma pesquisa dois anos atrás, fomos aos municípios e fizemos aquelas grandes reuniões para ouvir o cidadão. Um senhor registrou lá que precisava de um banco. Nós imaginamos que era uma agência bancária. Mas não, o que ele queria era um banco na praça. A praça da cidade não tinha um único lugar para sentar! Este é só um exemplo de que a gente precisa se entender mais. E que nós, como poder público, temos a obrigação de compreender o que o cidadão está demandando”.
Dentro da mapa estratégico até 2030 para o estado, que tem como visão de futuro tornar o Amazonas um estado competitivo, socialmente justo, com cidadania plena e ambientalmente correto, foram estabelecidas três diretrizes: qualidade de vida, desenvolvimento sustentável e modernização da gestão pública.
Para a elaboração do PPA 2020-2023, a população foi consultada a respeito das diretrizes por meio de meios eletrônicos, reuniões participativas e aplicativo por celular, inclusive offline. Já foram recebidas 12.650 sugestões de 62 municípios, mas Gomes espera uma participação ainda maior por parte da população para que o controle social se efetive.