A escolha de Joe Biden e Kamala Harris – mas principalmente a derrota de Donald Trump – de um dia para o outro sinalizam potências na sociedade que estavam adormecidas: sonho, esperança, construção coletiva. Se tempos duros continuam postos adiante, recebemos agora uma injeção de ânimo e de crença no poder de transformação da humanidade
Mal foi anunciado o resultado das urnas nos Estados Unidos e a eleição de Joe Biden tem motivado leituras de contexto e especulações do futuro que se aproxima. Em meio aos desafios da pandemia e da crise econômica, surge a perspectiva de volta dos EUA ao Acordo de Paris, de avanço da agenda de energia renovável naquele país, de reversão das medidas mais perversas em relação ao social e ao ambiental, de estabelecimento de um Green Deal para gerar empregos em uma lógica de sustentabilidade.
A lista é longa e sua materialização depende de muitas variáveis e de um jogo político nada trivial. Independentemente do que está por vir, existe um efeito imediato da eleição que é digno de celebração. A escolha de Joe Biden e Kamala Harris, mas principalmente a derrota de Trump, de um dia para o outro sinalizaram potências na sociedade que estavam adormecidas: sonho, esperança, construção coletiva.
Essas potências, tão necessárias aos grandes movimentos de uma sociedade, pareciam confinadas frente ao autoritarismo cínico do governo de extrema direita. Com a subida de Trump, Bolsonaro e outros representantes dos governos de segregação e destruição, havia a sensação de que estávamos diante de um longo e sombrio período que levaria boa parte do mundo a uma espécie de Idade das Trevas.
Não é que não houve protestos, eles surgiram aos montes, nas ruas e nas redes, incluindo uma reação mundial histórica pela valorização das vidas negras. Mas a sensação é que em meio a impulsos pontuais, havia um desalento partilhado mundialmente. Um desencanto com a vida política e com a própria vida para se levar, num contexto de restrição de direitos e de fluxos que perpetuam a vida, seja na sociedade, seja na natureza.
Essa névoa espessa foi então potencializada pela pandemia que obrigou grande parte do mundo a um isolamento em casa. Quarentena se tornou uma ideia compartilhada por pessoas de diferentes regiões, culturas, classes sociais. Ainda que com especificidades bem diferentes. O confinamento físico logo ampliou o confinamento das subjetividades, afetadas de um lado pelo isolamento, pela falta de perspectivas de futuro e pela restrição aos estímulos da vida de corpo presente. De outro, as subjetividades pressionadas pela supressão de direitos, pela violência contra minorias políticas, pelas ações de destruição do tecido social e dos elos ambientais.
Para milhões de pessoas que se importam e estão atentas havia também a sensação de um confinamento de alma, da esperança, do vislumbrar um mundo menos injusto e menos fadado a padecer de uma hecatombe ambiental. Não é à toa que o modo como se lida com o humano nos EUA foi o grande impulsionador do voto anti Trump, já mostram as pesquisas. E eis que, num esforço de mobilização gigantesco, uma votação histórica elegeu a mudança.
Não é que a ameaça tenha se dissipado magicamente de uma hora para outra. A tal votação histórica aconteceu dos dois lados, indicando que é forte naquela sociedade o sentimento de que o outro pode ser descartado, pelas mais diferentes motivações. E os EUA – assim como o Brasil – continuam afetados pelas mazelas da pandemia, da divisão, da ignorância e das sombras do espírito humano.
Mas a derrota de Donald Trump indica que a força e perenidade do tipo de governo que representa podem de fato ser postas em questão e à prova. Mais do que isso, a nova configuração nos relembra que está ao alcance almejar um futuro mais harmônico, imaginar transformações substanciais, botar fé na mobilização do coletivo, vislumbrar saídas para as situações que se mostram angustiantes como a pandemia, a mudança climática ou os governos de extrema direita.
O noticiário continuará falando de números, especulando sobre o jogo político e sobre as medidas que serão adotadas pelo governo Biden. Tudo isso é importante e será definidor do futuro daquele país e do mundo todo. Mas é no sorriso íntimo de saber que malefícios como Trump podem ser expurgados que reside a grande vitória da eleição nos EUA. Se tempos duros continuam postos adiante, recebemos agora uma injeção de ânimo e de crença no poder de transformação da humanidade.
*Ricardo Barretto é comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)
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