Os dados científicos exaustivamente divulgados não comovem a maior parte da elite, do poder público, das empresas e da sociedade como um todo. No futuro, será preciso recorrer ao melhor da produção cultural para compreender esta era de insensatez, desperdício e egoísmo
Em algumas décadas, quando analisarem como foi o período desde a ditadura militar aos anos atuais para a Amazônia Brasileira, não será difícil concluir que a montoeira de informações científicas sobre a violência contra povos indígenas e populações tradicionais, o desmatamento sem precedentes e a sistemática aniquilação do bioma amazônico foi insuficiente para sustar estes processos.
Os dados científicos exaustivamente expostos nas mídias, relatórios e boletins, sobre o impacto das atividades econômicas e a gestão política reinante, não comovem a maior parte da elite, do poder público, das empresas e da sociedade como um todo.
No futuro, será preciso recorrer ao melhor da produção cultural para compreender esta era de insensatez, desperdício e egoísmo. Quem melhor que Miguel de Cervantes e William Shakespeare para o século XVI, Gregório de Matos para o século XVII, ou mesmo Apuleio para o primeiro século pré-cristão?
Regredindo um pouco no tempo, se dependêssemos da elite manauara ou belenense para nos contar sobre o período da escravização pela borracha, jamais saberíamos da verdade, em que eles eram os feitores-coadjuvantes dos senhores europeus e americanos – asseclas de uma belle époque passadista. Euclides da Cunha em seus breves ensaios, o débil romance do português Ferreira de Castro (A Selva, 1930) ou o filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog (1982) são fontes melhores que os chochos relatórios oficiais.
O hiato entre a crise da borracha (1910), e os anos 1960 pelo menos aliviou por algum tempo a pressão sobre indígenas e povos e comunidades tradicionais. Ninguém melhor para iluminar este período que o paraense Dalcídio Jurandir, em sua série de romances sobre o Marajó e Belém entre 1941 e até falecer em 1979, um dos grandes da literatura do século XX.
A cultura militante
Como seria possível compreender a perversidade da ditadura militar na região, sem filmes como Iracema, uma transa Amazônica, de Jorge Bodanky (1976), os romances de Antonio Callado (Quarup, de 1967, e Expedição Montaigne, de 1982); ou as décadas de fotografias de Paula Sampaio, sobre a Transamazônica e Tucuruí; e Claudia Andujar sobre os Yanomami? E melhor será a voz de tantos autores indígenas, como David Kopenawa Yanomami, que, com seu colega, o antropólogo Bruce Albert, presentearam-nos com A Queda do Céu (2010).
Ninguém fica incólume perante as esculturas e as fotografias do artista naturalizado brasileiro Frans Krajcberg sobre as queimadas e o desmatamento, que utiliza as madeiras imoladas pelo fogo em sua obra! E quem ler o paraense Edyr Augusto e os seus livros-bomba, curtos e afiados, jamais sairá ileso (como Pssica, de 2015, e Belhel, 2020). Thiago de Mello, Haroldo Maranhão, Bené Fontelles, Milton Hatoum, Paulo e Rui Barata, Waldemar Henrique… O rol de artistas que contribuem para a cultura relacionada à Amazônia é enorme, para citá-los seria preciso uma enciclopédia.
Apesar do trabalho escravo e o trabalho precário não serem novidades, é emocionante o filme Pureza, baseado em fatos reais, em que atua brilhantemente a paraense Dira Paes (direção de Renato Barbieri, escrito pelo diretor e Marcus Ligocki a partir de ideia original de Hugo Santarém, de 2019).
O que deveria ser a celebração das nações indígenas, de quilombolas, povos e comunidades tradicionais, a maior biodiversidade do planeta, e o maior patrimônio brasileiro, resume-se a cidades caóticas e desgovernadas, garimpos, grilagens, violência na luta pela terra, trabalho infantil, boi, muito boi, o pior nível educacional do País, roubo de madeira, corrupção.
O tratamento dado pelo brasileiro à Amazônia tem todos os ingredientes para a ficção mais tenebrosa e aviltante em que vivemos. E, quando será que os dados científicos aliados à cultura vingarão e nos convencerão, a todos, que é hora de agir?
João Meirelles Filho é escritor, com nove obras sobre a Amazônia, e ativista socioambiental há 35 anos. Dirige o Instituto Peabiru – www.peabiru.org.br
[Foto: Fitzcarraldo _ Alvaro Ortiz/ Flickr Creative Commons]