Inclusão digital abre fronteiras de conhecimento e engajamento em áreas remotas da Amazônia
A comunidade Nova Esperança, em Carauari (AM), no Médio Juruá, carrega no próprio nome o ímpeto de mudanças para dias melhores e novidades, como a que chama atenção na cantina local – a mercearia comunitária típica dos grotões amazônicos para acesso a alimentos industrializados e outros gêneros de primeira necessidade não pescados ou colhidos na roça ou na floresta. A modernidade em questão, porém, não está marca do café, açúcar, refrigerantes e demais produtos daquele armazém, mas na engenhoca lá instalada: uma antena de internet, gerenciada pelo cantineiro para venda e distribuição de wi-fi aos ribeirinhos que aderiram à tecnologia, em expansão nas áreas remotas.
Quase tão importante quanto comida e remédio na lista de prioridades dessas regiões, a conexão com o mundo tem o poder de mobilizar reflexões, buscar soluções e transformar vidas. “Para muito melhor”, atesta Almira Silva, coordenadora de políticas sociais da Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), organização responsável pelo projeto de infraestrutura de comunicação que até o momento instalou pontos de internet em quatro comunidades ribeirinhas, no Programa Território Médio Juruá (PTMJ). “Foi um processo construído coletivamente desde o começo de 2018, com ampla discussão sobre a forma de monitoramento”.
Após consulta às comunidades sobre o possível acesso à internet e as formas de viabilizá-lo e garantir a manutenção, o modelo foi lançado com a oferta de um plano mensal (R$ 25 por celular) ou avulso (R$ 3 por hora), bancado inicialmente com recursos do programa até o projeto ganhar autonomia. Em agosto de 2020, o serviço – fornecido pela empresa Ozônio, com operações no Amazonas – passou a ser mantido diretamente pelos pagamentos dos moradores, cujos valores vinham sendo repassados pelo cantineiro à Asproc, no propósito de compor um fundo de sustentabilidade do sistema. “Em janeiro, quando esses recursos de reserva para cobrir as mensalidades já terão sido utilizados, a ideia é fazer nova avaliação para a continuidade do serviço”, explica Almira.
Orelhão e radiocomunicadores aposentados
A contar pelos benefícios da conexão, a expectativa é mantê-la, e, se possível, ampliá-la, após o impulso do PTMJ – iniciativa gerenciada pela Sitawi junto a organizações locais, com recursos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (Usaid), Natura e Coca-Cola. Com 50 GB de acesso em banda larga por satélite, a internet serve às 67 famílias da Nova Esperança: “Dá para verificar email, preencher documentos e relatórios on-line, fazer chamada de vídeo e até navegar em sites”, diz Almira, com a ressalva de que basta ter um pouco de paciência nos horários de pico, principalmente à noite, quando ocorre lentidão devido ao grande número de moradores conectados.
Não mais refém de um orelhão que não funcionava e do antiquado sistema de radiofonia, já limitado diante da atual dinâmica de vida, a comunidade olha para oportunidades. Saúde, trabalho, educação, produção florestal e contato com empresas e instituições parceiras para comercialização e capacitações, por exemplo, são áreas que avançam no ritmo da internet, conforme ficou demonstrado no distanciamento social imposto pela pandemia de Covid-19. “Antes os celulares eram utilizados basicamente para ouvir música off-line e os moradores só tinham conexão de wi-fi quando iam para a cidade, a cada dois meses mais ou menos, para receber o dinheiro do Bolsa Família e outros programas assistenciais”, conta Almira.
No caso dos jovens, a conexão ajuda a evitar o êxodo em busca de atrativos no meio urbano. “Eles passam a ter tudo o que precisam nas comunidades, inclusive acesso a pesquisas com ganho de aprendizagem na escola”, aponta Almira, ao lembrar que, após natural resistência no início, também os mais velhos se renderam às maravilhas da tecnologia, como as mensagens de áudio e texto, pela facilidade de conversar com parentes distantes sem a necessidade de longas viagens de barco.
Chave para novos negócios
“O primeiro acesso causou uma emoção bem parecida de quando, em 2002, foi colocada uma televisão no centro comunitário”, compara Luciene Lima da Silva, liderança da Associação Agroextrativista da Comunidade Nova Esperança (Aane). “Não sabíamos sequer utilizar um aparelho telefônico, muito menos imaginávamos o quanto essa nova ferramenta poderia mudar nossa vida aqui”, diz.
Ela conta que a inclusão digital revolucionou a comunicação comunitária: “Além de salvar vidas, como ocorreu na atual pandemia, ao permitir resgate de emergência para hospitais e orientações de prevenção à distância, a internet trouxe uma incrível possibilidade de desenvolvimento intelectual e profissional”. À frente de um grupo de mulheres que fazem produtos ecológicos de limpeza à base de extratos da folha da mandioca, Luciene buscou auxílio em cursos de empreendedorismo do Sebrae na internet para avançar nas vendas. “Baixamos os PDF de madrugadinha, quando o acesso melhora”, conta a ribeirinha, feliz por realizar o velho sonho de empreender socialmente.
A atual transformação pelo acesso à Internet no Médio Juruá é fruto do nível de organização social que historicamente marca a região, desde os tempos de luta por direitos nos seringais. “A aprovação dessa nova forma de se comunicar é unânime e isso precisa ser multiplicado para outras comunidades”, ressalta o pedagogo Adão Ferreira, ligado à Associação dos Moradores Agroextrativistas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari (Amaru). “A conexão digital ajuda na emissão de documentos por associações e cooperativas e dá maior segurança em situações de urgência, além de aproximar as pessoas e ser uma alternativa de entretenimento”.
Tecnologia necessária à bioeconomia
Ao lado da saúde e educação, a infraestrutura de conectividade representa um dos principais desafios socioeconômicos da Amazônia, em especial nos municípios do interior e comunidades isoladas – uma condição, por exemplo, para o desenvolvimento da bioeconomia. Mas há um longo caminho. Enquanto no Brasil existem 35 milhões de acessos de banda larga fixa, na Região Norte são somente 1,4 milhões, e, no Amazonas, 382 mil, segundo dados de outubro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
O projeto Amazônia Conectada, lançado em 2015 pelo governo federal sob a coordenação do Exército para instalar 9 mil quilômetros de fibra óptica subaquática foi paralisado pelo Tribunal de Contas da União e depois retomado, com meta reduzida para 3 mil quilômetros. Até o momento, foram instalados 1,2 mil quilômetros de cabos, sendo 330 neste ano, conectando Novo Airão a Barcelos (AM) por meio de R$ 29,5 milhões recuperados pela Operação Lava-Jato.
“Com mais Internet há mais informação, visibilidade e empoderamento”, destaca Quilvilene Figueiredo da Cunha, presidente da Associação de Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá, responsável por projetos que estão mudando a realidade para um maior equilíbrio de gênero na região e têm a inclusão digital como aliada. Além de mentoria em gestão visando a entrega de novos modelos de negócios, o grupo participa de atividades para acesso a um fundo de repartição de benefícios pelo uso da biodiversidade, apoiado pela Natura.
Na comunidade São Raimundo, onde vive Quilvilene, em área remota do rio Juruá, a antena foi erguida no alto de uma outra estrutura essencial para a vida local: a caixa d’água que abastece as moradias. “A internet aqui é melhor do que na cidade”, garante a moradora, para quem a qualidade é superior, mesmo com o risco da falta de energia, pois o sistema é alimentado por gerador à diesel e placas solares, e nas condições climáticas de nuvens e chuvas persistentes é necessário ficar de olho porque as baterias podem descarregar.
Ter internet, reconhece Quilvilene, é hoje um motivo de status e poder. Que o diga Raimunda da Cunha, a dona Dica, guardiã e operadora do antigo o sistema de radiocomunicação, hoje mais utilizado para falar com comunidades que não têm conexão por internet, com desvantagens. No velho método, o tempo de acesso pelos moradores é limitado e as conversas são escutadas por todos, quando não interrompidas em caso de algo urgente. Aos 70 anos, com a chegada da conectividade digital, dona Dica não se importou pela velha comunicação ter caído em desuso. Seus poderes sobre as notícias e informações sobre a vida na calha do Juruá foram transferidos para as redes sociais.