O futuro aponta para o desejo de uma Amazônia conservada, avançada tecnologicamente, com cidades inteligentes, e capaz de agregar valor a recursos naturais e serviços ecossistêmicos, ao mesmo tempo em que combate as desigualdades e as ilegalidades. Os super-heróis encarregados dessa missão salvadora somos nós mesmos
Ninguém duvida que “a Amazônia é nossa”. Os brasileiros, com uma imensa floresta tropical para chamar de sua, têm, portanto, muita responsabilidade com este lugar. Mas, com tamanha diversidade social, cultural e biológica, a Amazônia produz representações as mais diversas para as pessoas. É o que canta em verso o poeta e compositor Eliakin Rufino em Amazonália, canção em coautoria com Charles Filgueiras (ouça aqui). Na música, os dois artistas conseguem reunir a multiplicidade de visões e expectativas que o mundo e os próprios brasileiros nutrem sobre a região – expondo também os conflitos e as divergências, como mostram alguns dos versos da canção:
Dizem que o pulmão do mundo é aqui. Que a garganta do mundo é aqui. Que o hospital do mundo é aqui. Que o celeiro do mundo é aqui e o grito das bocas famintas é aqui. Que o eldorado é aqui e o grito dos índios que tombam é aqui. Que o curral do boi é aqui. Que a terra do fogo é aqui. Que a dança da chuva é aqui e o grito da fera ferida é aqui.
“Quando a gente nasce, torna-se responsável pelo mundo, mas especialmente pelo lugar de origem”, disse Rufino na sétima plenária virtual da rede Uma Concertação pela Amazônia, realizada em 14 de dezembro de 2020, onde teve a oportunidade de mostrar um pouco da sua arte. Natural de Boa Vista, ele também é escritor, professor de filosofia, produtor cultural e jornalista, além de integrante do movimento Rorameira, expressão cultural relevante na construção da identidade roraimense. “Além do lugar de fala, tenho a fala do lugar”, disse o poeta, que vê uma tentativa contínua de colonizar a Amazônia, ou seja, impor uma exploração que nem sempre é benéfica para os territórios locais e seus povos.
Como reunir identidades diferentes e visões tantas vezes divergentes entre si em busca de objetivos em comum – o desenvolvimento sustentável e o bem estar dos diferentes atores – é o grande desafio da Amazônia, sobre o qual a Concertação tem se debruçado desde os primeiros trabalhos iniciados no começo de 2020. Essa rede, que se propõe um espaço orgânico, aberto, acolhedor e plural, agrega hoje cerca de 200 lideranças do campo da sustentabilidade.
Ao fazer uma retrospectiva do ano, os participantes lançaram olhares para o horizonte, a contar de 2021. Um dos pontos de partida é desconstruir modelos ainda vigentes na Amazônia que não fazem sentido sob o ponto de vista ambiental, social e nem mesmo econômico. O futuro aponta para o desejo uma Amazônia conservada, avançada tecnologicamente, com cidades inteligentes, e capaz de agregar valor a recursos naturais e serviços ecossistêmicos, ao mesmo tempo em que combate as desigualdades e as ilegalidades.
Eliakin Rufino contou uma história fictícia que ilustra bem a necessidade de virar essa chave. A narrativa se dá em um país parecido com o Brasil, em que a população se alimentava de carne crua, de porcos que viviam na floresta. Até que, acidentalmente, a floresta pega fogo e “assa” os porcos. Quando as pessoas descobriram que a carne assada era mais saborosa que a crua, uma política foi instituída para queimar a floresta – ministérios, empregos, equipamentos, estratégias. Uma pessoa avisou que bastava uma pequena fogueira para assar porcos, mas foi presa e deportada, pois atentava contra os interesses do país.
“Pessoas assim são ainda vistas como entrave ao crescimento”, disse Rufino, traçando uma analogia com o Brasil. “A Amazônia passa por uma situação como essa há muito tempo. E há muito tempo se avisa que não precisa tocar fogo na floresta para comer um porco assado”.
Como aprofundar o conhecimento
Na visão de desenvolvimento em bases sustentáveis que se pretende construir para a Amazônia, a produção de conhecimento aprofundado e a sistematização de dados são basilares. A partir disso, redes como a Concertação ficam mais aptas a trocar ideias entre os participantes, buscar sinergias, valorizar a cooperação e compartilhar experiências positivas que possam ser replicadas, ampliando o impacto. Uma decorrência desse processo é o fortalecimento do próprio campo da sustentabilidade, inclusive sob o ponto de vista do advocacy, para promover políticas públicas alinhadas à agenda verde e socialmente inclusiva.
No caso da Concertação, três estudos aprofundados (Correntes do Desenvolvimento, Orçamento Público e Sociedade e Cultura) e 30 documentos sintéticos, no formato de radiografias ou retratos temáticos, já foram produzidos e estão disponíveis ao público na plataforma. Além disso, foi lançada a versão beta da plataforma Amazônia Legal em Dados, que oferece uma visão integrada da região a partir de 113 indicadores econômicos e sociais no território como um todo e para cada estado, permitindo comparação entre as Unidades da Federação e cruzamento de diversas variáveis. São abordados 11 temas: demografia, economia, desenvolvimento social, infraestrutura, saneamento, educação, saúde, segurança, meio ambiente, ciência e tecnologia e institucional.
Ao mesmo tempo, grupos de trabalho (GTs) têm se aprofundado nos temas de regularização fundiária e ordenamento territorial, engajamento do setor privado, bioeconomia e advocacy. Neste último tema, o grupo reúne a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, e os institutos Humanize, Galo da Manhã e Arapyaú. De acordo com Monica Sodré, diretora da Raps, a ação dentro do GT é complementar pois, enquanto algumas organizações dominam a parte técnica de determinados assuntos, a Raps tem mais acesso ao mundo político.
A Raps lida com o desenvolvimento de lideranças políticas há oito anos, preparando candidatos e apoiando também quem já faz parte da política institucional. Da rede de 600 membros, cerca de 200 estão no exercício de mandato. No Congresso Nacional são 40, ou 7% do total de deputados e senadores, pertencentes a diferentes partidos. O objetivo em comum é atuar por um país mais justo, com oportunidades para todos e respeito pelos recursos naturais.
Nas últimas semanas de 2020, o grupo de trabalho de advocacy estruturou o piloto de uma Sala de Acompanhamento do Legislativo, para monitorar como o Poder se comporta sobre a agenda verde (temas como títulos verdes, regularização fundiária etc.), e também para acompanhar o Executivo, em especial as questões regulatórias, e a reverberação desses temas nas redes sociais e no mundo digital.
Segundo Sodré, o objetivo é que esse monitoramento de cenário possa auxiliar não só as pautas das cinco organizações envolvidas no GT, mas beneficiar o campo socioambiental como um todo, emitindo “alarmes e inputs”. O piloto da Sala de Acompanhamento, informou ela, deve rodar já no início deste ano de 2021.
“Percebemos que há uma fragilidade no campo socioambiental: cada vez que aparecem temas socioambientais nas agendas legislativa ou executiva, ocorre correria para ações de advocacy, sem que haja uma efetiva coordenação entre atores”, disse Sodré. Para ela, o primeiro passo é reconhecer essa fragilidade e encontrar caminhos de fortalecimento.
Ao longo do debate, foi exposta também a percepção de que o campo da sustentabilidade acaba refém de um modelo excessivamente baseado em projetos, ou seja, com atuação de forma fragmentada – possivelmente atendendo às agendas específicas de cada financiador. E que é preciso “desprojetizar” a atuação na Amazônia, para que as ações se deem de forma mais integrada na região.
Ao mesmo tempo, é preciso entender que a região é formada por territórios com características muito distintas entre si, demandando agendas diferenciadas para políticas públicas, como a do fomento da bioeconomia. Tatiana Schor, secretária executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado do Amazonas, integra o grupo de trabalho da Concertação sobre bioeconomia, que desenhou um framework segundo o qual essa atividade pode ser dividida em tradicional, florestal ou de commodities (saiba mais sobre o framework aqui). Para ela, esse enquadramento já traz resultados práticos, pois ajuda a direcionar tipos de investimento, de financiamento, formas de participação do setor privado e programas de proteção dos povos da floresta.
“Esse framework é muito importante para se aplicar a política pública mais adequada para cada território, considerando as suas dinâmicas econômicas”, afirmou a secretária. Como financiar a bioeconomia nessas três escalas será justamente um dos assuntos em fórum estadual sobre o tema a ser realizado neste ano.
O entendimento de que há diferentes Amazônias – a conservada, a do Arco do Desmatamento, a antropizada/convertida e a urbana – leva à necessidade de aprofundar estudos sobre o ordenamento territorial, tema de largo escopo que inclui as discussões sobre regularização fundiária que estão no Congresso Nacional. Esse GT, que está no início dos trabalhos, tem como integrante Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Segundo ela, o esforço de regularização fundiária ainda está muito voltado ao setor privado, por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), mas o ordenamento territorial requer um olhar abrangente também para as áreas públicas e os Territórios Indígenas.
Essas são áreas vulneráveis diante da expansão do desmatamento ilegal, em grande parte impulsionado pela atividade pecuária. Desafio que é bem conhecido por grandes frigoríficos que atuam na região como a Marfrig, que em 2020 assumiu compromissos não só com o combate ao desmatamento, mas também com a inclusão social de pequenos produtores, para que integrem uma cadeia de valor livre de desmatamento em todos os seus elos.
Segundo Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade e comunicação da empresa, e integrante do grupo de trabalho sobre engajamento do setor privado, é preciso passar da lógica que excluía da rede de fornecedores os desmatadores, para uma lógica de inclusão desse produtores e conversão às melhores práticas. Isso porque a exclusão acaba levando à criação de um mercado paralelo de boi, calcado na ilegalidade, e não resolve o problema na região.
O desafios da Marfrig na Amazônia são compartilhados, dentro do grupo de trabalho, com outras empresas de grande porte que atuam na região: a Natura, com intenso relacionamento com as comunidades locais, e a Vale, que vem acumulando experiência em restauração florestal. Segundo Pianez, essa é uma troca importante, do ponto de vista da Marfrig, diante da preocupação da empresa de ir além do combate ao desmatamento e regenerar áreas degradadas.
Patinando no básico
Enquanto a pecuária busca desatar seus nós, a fim de conciliar produção com conservação, o florescimento de uma economia baseada em produtos não-madeireiros e agroflorestais patina nas áreas conservadas e sob pressão de desmatamento. É o que mostra um dos cerca de 30 estudos que estão em andamento pela Amazônia 2030, iniciativa conjunta do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do Centro de Empreendedorismo da Amazônia com a Climate Policy Initiative e o Departamento de Economia da PUC-Rio.
O estudo em questão investiga o tamanho do mercado global dos produtos não-madeireiros e agroflorestais. Segundo Adalberto (Beto) Veríssimo, coordenador da Amazônia 2030, esse mercado se concentra na região da Linha do Equador, em uma faixa 2 a 3 graus de latitude norte-sul, estimado em US$ 60 bilhões por ano. O Brasil compete com países como Burundi, Vietnã, Birmânia, Malawi, Camboja, Peru, Bolívia.
O espantoso, segundo o pesquisador, é que a Amazônia brasileira participa com míseros 0,7% desse montante. Veríssimo frisa que se trata de um mercado que já existe, do qual o Brasil já detém a tecnologia, a qual nada possui de revolucionária. “Não é ainda a chamada Amazônia 4.0. Então, como essa baixa participação se explica? Concorremos com países que têm os mesmos problemas que os nossos, ligados a logística complicada, Estado de Direito, recursos humanos. Não temos desculpa”, disse no encontro.
Veríssimo, que há 35 anos trabalha com a Amazônia, salientou que este é um momento dramático, pois a região reúne uma “tempestade perfeita” de problemas sociais, subdesenvolvimento econômico e degradação ambiental, com risco de se atingir o ponto de não-retorno. Mas, na tentativa de olhar para o “copo meio cheio”, o projeto Amazônia 2030 procura mapear as oportunidades disponíveis e as experiências bem-sucedidas, para compor uma agenda de desenvolvimento.
Agenda para os diferentes territórios
Nesse esforço de construção da agenda, o framework de bioeconomia sinaliza caminhos para os diferentes territórios. A região conservada, localizada especialmente na porção oeste, e onde predominam a bioeconomia de baixo impacto e os serviços ambientais, deve ter como agenda específica os investimentos em Pesquisa & Desenvolvimento, o debate sobre mineração em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, e parcerias de cooperação internacional.
A região conservada, localizada especialmente na porção oeste, e onde predominam a bioeconomia de baixo impacto e os serviços ambientais, deve ter como agenda específica os investimentos em Pesquisa & Desenvolvimento, o debate sobre mineração em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, e parcerias de cooperação internacional.
Na região do Arco do Desmatamento, onde convivem a bioeconomia de baixo e alto impacto e atividades agrícolas sob restrições ambientais, é preciso criar condições tecnológicas, econômicas, políticas, fiscais e institucionais, com objetivo de fortalecer os Sistemas Agroflorestais (SAFs) e a Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF), assim como as atividades de restauração com plantio de nativas, as áreas de manejo sustentável e o desenvolvimento de novos mercados.
Para a região já antropizada, onde as florestas foram convertidas em áreas para produção de commodities agrícolas e minerais, a agenda proposta é de rastreabilidade total, especialmente do gado e da soja, e reversão incentivos fiscais e financeiros da ocupação e conversão de terras para a conservação da floresta.
Já na Amazônia urbana, com serviços e indústria como atividades preponderantes, a agenda é focada no saneamento básico e na reversão de incentivos fiscais das atividades industriais em prol da conservação florestal.
Existe, contudo, uma agenda em comum a ser trabalhada para a Amazônia como um todo, como fortalecimento das ações de comando e controle, combate à ilegalidade por meio de instrumentos de crédito, proteção aos povos indígenas e populações tradicionais, valorização da diversidade cultural, ordenamento territorial, Pagamentos por Serviços Ambientais, infraestrutura física e digital, licenciamento ambiental, aprimoramento da governança e das instituições, fortalecimento dos governos locais, investimentos em saúde, educação e formação técnica profissionalizante, e promoção do turismo.
Para contribuir com o cumprimento dessa complexa agenda, a rede da Concertação vê com relevância a participação dos atores locais e das novas gerações, compondo um quadro multifacetado, com capacidade formativa, debate qualificado, interlocução com governo, impacto na gestão pública e, sobretudo, atuação cooperativa, inspirada nas características da própria floresta. “A floresta não é contemplativa, ela coopera para viver”, comparou Guilherme Leal, fundador do Arapyaú.
E esse viver, na visão de Eliakin Rufino, confunde-se com a água, “que é a vocação natural da Amazônia”, afirmou. O poeta chegou a escrever sobre a água doce que dá sustentação a todo ambiente biofísico da Amazônia, suas riquezas e seu desenvolvimento. Um trecho do poema inspira os desafiadores trabalhos que há pela frente: O verbo do rio é ir/ Água me faz sonhar/ Igarapé cristalino/ Sou elemento divino/ É doce meu caminhar/ Eu sou água corrente/ Que avança sem cessar.