A agenda da água puxa o aumento da escala da restauração florestal, reforçada pela urgência da mitigação climática. Iniciativas pioneiras, como a de Extrema (MG), são replicadas com apoio de políticas públicas e capital privado
Quando comprou a terra em busca de uma vida mais tranquila longe da capital, na década de 1980, o funcionário público paulistano Rubens Carbone olhava para a destruição ao redor e já previa a necessidade de recuperar a beira do rio desmatada para pastagem, em Extrema (MG). O que ele não sabia era que, quatro décadas depois, substituiria vacas por árvores em troca de dinheiro.
Tudo porque, em razão da mudança climática e dos riscos ao abastecimento de água das cidades, o trabalho de regenerar a Mata Atlântica começava a ganhar valor. Da área total, 44% teve a vegetação nativa de volta: “Comecei a plantar mudas sozinho, quando não havia ONGs para ajudar”, conta o proprietário, com a proposta de que a prática seja ensinada desde cedo nas escolas.
De pé, a mata do sítio virou um ativo que compensa emissões de carbono do Banco Itaú, em parceria com a The Nature Conservancy (TNC), o que rende um valor adicional aos R$ 500 por mês pagos pela prefeitura local devido aos benefícios à qualidade dos recursos hídricos. O que parece pequeno ganha uma dimensão macro, à medida do movimento que colocou o município no mapa como referência de política pública no mecanismo de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).
“Começamos com um fusca velho, uma mula e R$ 20 mil”, conta o biólogo Paulo Henrique Pereira – o Paulinho, como é mais conhecido –, secretário de meio ambiente de Extrema.
Criado em 2005, o Programa Conservador das Águas inovou ao recompensar financeiramente produtores rurais pela conservação e restauração de floresta, com auxílio técnico à proteção de nascentes e uso sustentável da terra. O benefício vai além das porteiras e das divisas do território municipal, pois as microbacias hidrográficas da região, impactadas por pastagens degradadas, nutrem mananciais que abastecem São Paulo e Rio de Janeiro.
“A iniciativa teve amplo apoio da população e alavancou o desenvolvimento econômico e social, com geração de empregos”, destaca Paulinho. De 1995 para cá, o número de habitantes de Extrema triplicou e o orçamento municipal pulou de R$ 8 milhões para R$ 320 milhões ao ano.
Estruturada como lei municipal, o mecanismo atraiu parcerias de organizações ambientais e empresas, e tomou impulso em 2018, com a criação da Política Municipal de Mudança Climática. A nova lei regulamentou a receita com a neutralização de carbono, por meio da restauração florestal, junto a empreendimentos privados que operam no município – em alguns casos, também alvo de adequações em função de Termos de Ajustamento de Conduta e licenciamento ambiental.
Com base no inventário municipal de gases de efeito estufa, também a população, via tributos, paga pelo plantio de árvores. Os 20 mil veículos da cidade, por exemplo, geram R$ 4 milhões em IPVA, dos quais 20% vão para a restauração florestal como forma de neutralizar emissões – R$ 800 mil por ano, o suficiente para recuperar 53 hectares. O dinheiro vem também de 25% do IPTU pago pelas residências e um percentual do ISS, demonstrando que o modelo de restaurar o ambiente natural consolidou-se na cidade como um projeto da sociedade.
Em 2021, o Conservador das Águas receberá R$ 6,5 milhões para repasse às propriedades rurais, sendo R$ 1,5 milhão da iniciativa privada e R$ 5 milhões do município. Além das propriedades rurais, são beneficiadas áreas prioritárias para restauração adquiridas pela prefeitura, no plano de neutralizar carbono e conectar parques municipais por corredores biológicos. “O êxito vem da continuidade político-administrativa, da construção de confiança e do fortalecimento da gestão”, aponta Paulinho, ao enfatizar que o desafio atual é levar a experiência aos municípios vizinhos, no programa Conservador da Mantiqueira, que pretende recuperar 1 mil hectares em 2021.
As estratégias de repor árvores avançam nos biomas brasileiros como fio condutor de duas agendas que se combinam: a da água e a da mudança climática, conforme demonstra a demanda por ações na plataforma Restaura Brasil. Mantida pela TNC, tem como propósito conectar investidores e doadores ao esforço, com meta de recuperar 1 bilhão de árvores, o equivalente a 400 mil hectares, até 2030.
Mudança de rota entre São Paulo e Rio
Em Salesópolis (SP), na Serra do Mar, o produtor familiar Roberto de Morais, 48 anos, protege nascentes e planta árvores como forma de manter a criação de abelhas nativas sem ferrão e a produção de mel. Os córregos da propriedade desaguam no Rio Paraitinga, afluente do Rio Tietê, que nasce não muito longe dali, naquele município. “A crise hídrica de 2014 assustou todo mundo, porque aqui nunca tinha faltado água”, revela Morais, hoje dedicado a recuperar a área, degradada desde o tempo dos avós pelos ciclos econômicos de café, carvão, pecuária e, mais recentemente, do eucalipto.
O trabalho reduz os impactos a mananciais, traz de volta a fauna, como o cachorro-do-mato, e aumenta a renda da produção, incluindo o valor recebido da prefeitura como recompensa pela floresta. O plano agora é abrir a porteira para o turismo rural baseado na ecologia das abelhas e no Sistema Agroflorestal (SAF), com previsão de compor a futura Rota Turística das Frutas Nativas da Mata Atlântica, em planejamento na região.
Uma nova lógica acontece no uso da terra entre as duas mais populosas capitais do País, com impacto no cenário hídrico. “Neste ano, intensificaremos estudos para entender e avançar no reconhecimento pelos serviços ecossistêmicos que prestamos”, revela Paulo Groke, diretor superintendente do Instituto Ecofuturo, responsável pela manutenção do Parque das Neblinas, de propriedade da Suzano, em Mogi das Cruzes (SP).
Com 7 mil hectares entre a Serra do Mar e a Região Metropolitana de São Paulo, a área foi quase totalmente derrubada para transformação da Mata Atlântica em carvão, nas décadas de 1940 e 1950. Depois, recebeu plantio de eucalipto para abastecer uma siderúrgica da região e, em 1966, acabou adquirida pela indústria de papel e celulose.
Em pouco mais de duas décadas, veio a virada de chave. “Ao adotar padrões ambientais na produção, a empresa definiu que a área se mostrava mais competitiva para a conservação do que para o eucalipto”, conta Groke. A regeneração natural da floresta foi reforçada pelo plantio de palmeiras do palmito-juçara, nativas da região, essenciais como alimento da fauna dispersora de sementes para crescimento de novas árvores, ativando a cadeia da restauração e as atrações para os cerca de 3 mil visitantes do parque, por ano.
“Temos a natureza totalmente a nosso favor”, explica o engenheiro florestal, ao contar que a população do entorno é engajada no processo. Os cachos da palmeira são utilizados para produção de polpa, com uso na alimentação. As sementes, plantadas para conservação – 8 milhões, desde 2003. Junto a outras medidas, a iniciativa permite a proteção de 470 nascentes formadoras do Rio Itatinga, responsável pela geração da energia hidrelétrica que move as operações do Porto Santos, o maior do País, além de nutrir a bacia do Alto-Tietê, essencial ao abastecimento da capital paulista.
Escudo contra o avanço urbano
“A área serve de anteparo à contínua expansão urbana, ilegal e desordenada, hoje maior risco aos recursos hídricos na região”, adverte Groke.
O problema se repete na Serra da Cantareira, outra importante região de mananciais que abastecem São Paulo, onde a ameaça da especulação imobiliária se soma à das pastagens degradadas. “Diante da baixa produtividade, os sítios são loteados clandestinamente, como um ciclo vicioso, com tendência de piorar”, ressalta Alexandre Uezu, coordenador do Projeto Semeando Água, do Instituto Ipê. Mapeamento abrangendo 230 mil hectares, em 12 municípios, revelou que a Mata Atlântica está conservada em cerca de um terço da área, porém a maior parte desses remanescentes (60%) está longe dos cursos hídricos.
Os dados subsidiam ações junto a produtores locais visando práticas sustentáveis, aumento da renda com frutos e madeiras nativas, e conservação de recursos hídricos. “Concluímos que só a pastagem convencional não se mostra viável economicamente”, revela Uezu. Ele lembra que a degradação prejudica o abastecimento de nascentes pelas chuvas: sem árvores, a água não infiltra no solo e corre junto com o barro diretamente para os rios, causando dano ambiental e perda de fertilidade da terra.
Que o diga o paulistano Miguel Uchoa, administrador da Fazenda Cravorana, em Piracaia (SP): “A cada enxurrada descia grande quantidade de terra para o riacho”. Em região montanhosa, onde o café cedeu lugar ao eucalipto, depois substituído pelo gado, as dificuldades com antigas pastagens degradadas só aumentavam e a saída foi procurar auxílio no projeto do Ipê. Além de cercar as nascentes, até então acessadas pelos animais, Uchoa recebeu assistência técnica para restaurar mata e fazer piquetes para o manejo mais sustentável do gado no pasto.
Atualmente, uma área de 5 hectares da propriedade funciona como projeto demonstrativo para inspiração de outros produtores. “Queremos reduzir impactos, mas dependemos de políticas públicas”, reclama Uchoa.
Afastar riscos em relação à demanda para abastecimento público exige sair dos projetos pontuais e alcançar escala na restauração florestal, entre outras Soluções baseadas na Natureza (SbN). “O desafio está no arranjo institucional em torno de um planejamento estratégico, baseado em áreas prioritárias e mecanismos financeiros”, observa Samuel Barreto, gerente nacional de água da TNC.
A Coalizão Cidades pela Água, criada em 2015, envolve seis regiões metropolitanas, com apoio do poder público e empresas, no objetivo de repor árvores em 2 milhões de hectares, até 2030. Até o momento, foram conservados e restaurados 124 mil hectares – investimento total de R$ 288 milhões, a maior parte proveniente de compensações ambientais de empresas e recursos de comitês da bacia.
“O principal resultado, no entanto, está na sinergia de recursos para novos modelos de política pública”, analisa Barreto, ao citar como exemplo o Programa Nascentes, do governo estadual de São Paulo, que criou um banco de áreas disponíveis para reposição de árvores, hoje com mais de 100 mil hectares, em cerca de 30 mil propriedades. A iniciativa funciona como um “Tinder” da restauração aproximando oferta e demanda.
Mais recentemente, diz Barreto, a Sabesp, companhia de abastecimento de São Paulo, informou em documento que incluirá estratégias de resiliência no plano de adaptação climática para o abastecimento público. “Há intenções do agente regulador paulista de colocar a proteção hídrica na estrutura tarifária”, completa Barreto.
Menor custo no tratamento de água
Novos estudos de avaliação entre custo e benefício, como os realizados em São Paulo e Rio de Janeiro, indicam as vantagens do investimento na chamada “infraestrutura verde” para abastecimento de água. O cenário tem como referência o caso de Nova York, onde três bacias hidrográficas das proximidades são protegidas desde o final dos anos 1990 com a reposição de floresta. Como resultado, a cidade passou a economizar mais de US$ 300 milhões por ano em tratamento de água e custos de manutenção.
Em Balneário Camboriú (SC), a empresa municipal de água e saneamento estima recuperar 80% do investimento feito em SbN após 30 anos, mas tem a expectativa de reduzir o tempo de retorno em função de outros benefícios gerados pelas iniciativas de restauração ao longo do tempo. No programa Produtor de Água, o município, que no verão pula de 200 mil para 1 milhão de habitantes, investe R$ 1 milhão por ano em ações de restauração na região do rio Camboriú, com mecanismo de cobrança na tarifa de água.
A corrida por soluções aumenta diante dos riscos de crise hídrica, como a que atinge a Região Metropolitana de Curitiba, há meses em rodízio de abastecimento. O movimento Viva Água, em São José dos Pinhais, articula vinte organizações, entre empresas, produtores, prefeitura e ONGs, para evitar o pior.
“É preciso convergir estratégias de segurança hídrica entre indústrias que dependem do recurso”, afirma Guilherme Karam, gerente de economia da biodiversidade da Fundação Grupo Boticário – empresa com fábrica instalada na região sob estresse. Foi criado um fundo filantrópico com R$ 2,8 milhões já captados para a gestão das iniciativas, como promoção de negócios sustentáveis e restauração florestal junto aos proprietários rurais da bacia do Rio Miringuava.
“O objetivo é chegar a pelo menos R$ 20 milhões para as mudanças necessárias em dez anos”, informa Karam. No longo prazo, pretende-se recuperar 600 hectares e melhor em até um terço a qualidade de água da região. “Quando chove muito, o tratamento hídrico e abastecimento são interrompidos devido ao grande volume de terra que deixa o rio turvo”, explica o gerente. Entre as medidas financeiras, está a implantação do PSA pela prefeitura de São José dos Pinhais para remunerar produtores que plantam árvores com o repasse de R$ 1,5 milhão pela companhia de abastecimento do Parará, a Sanepar, cujo negócio depende da disponibilidade hídrica.
As ações são urgentes, porque o governo estadual está construindo uma barragem no Rio Miringuava, ao custo de R$ 160 milhões, para armazenar 38 bilhões de litros, dobrar a atual capacidade de captação e garantir o abastecimento da Região Metropolitana de Curitiba. Segundo Karam, sem o efetivo estímulo à conservação e restauração de floresta nas propriedades do entorno, a chance de entupir a nova represa com sedimentos será muito grande.
Relação íntima
Tudo se deve ao ciclo hidrológico da natureza, que envolve – entre outros processos – a transpiração vegetal de vapor para a atmosfera, a precipitação e a infiltração da chuva no solo, variando conforme a região.
“Entender a relação entre água e floresta é um desafio antigo da ciência, presente na narrativa de naturalistas que primeiro descreveram as paisagens brasileiras”, observa Rubens Benini, gerente da estratégia de restauração florestal da TNC na América Latina.
“Uma copa grande de árvore retém mais de seis litros de água por hora”, diz. No entanto, é necessário superar mitos: cultivar mudas não faz a água brotar da noite para o dia. E o plantio, em geral, diminui a vazão média no primeiro momento, pois a planta precisa de água para crescer, levando-a à atmosfera pela transpiração. No longo prazo, a restauração florestal ajuda na infiltração do lençol freático. Isso ajuda a nutrir nas nascentes e a diminuir o transporte de sedimentos pela chuva diretamente para os rios, o que pode refletir na melhor qualidade e até no aumento da disponibilidade.
Árvore e recurso hídrico estão em permanente simbiose na natureza. Por coincidência ou não, figuram lado a lado, também no calendário das datas comemorativas: em 1971, a ONU estabeleceu 21 de março como Dia Internacional das Florestas. Em 1993, escolheu 22 de março como o Dia Mundial da Água. No primeiro ano da atual Década da Restauração de Ecossistemas, ambas merecem um brinde.
[Foto: Felipe Fittipaldi]