Com o retorno ao Acordo de Paris, os Estados Unidos estabelecem novos canais de diálogo com Brasil sobre Amazônia. Além das tradicionais instâncias da diplomacia internacional, a administração Biden está abrindo interlocução com governos subnacionais, sociedade civil e povos indígenas
Ao colocar a questão da mudança climática no centro da nova política econômica, de segurança nacional e de relações exteriores, o governo do democrata Joe Biden inaugura novas possibilidades de interlocução com o Brasil em relação à Amazônia. Além das tradicionais instâncias da diplomacia internacional, a administração Biden está abrindo diálogos com governos subnacionais, sociedade civil e povos indígenas como parte das estratégias de colocar em marcha seu Plano de Proteção para a Amazônia, anunciado no fim de janeiro, que prevê cooperação bilateral em pelo menos quatro eixos: financiamento, comércio, cadeias de fornecimento e diplomacia, com a promessa de US$ 20 bilhões no incentivo a parcerias para a proteção do bioma e redução do desmatamento.
Esses diálogos ganharam ainda mais força ao antecederem a Cúpula de Líderes sobre o Clima, realizada nos dias 22 e 23 de abril com o objetivo de engajar 40 lideranças globais em compromissos climáticos mais ambiciosos. No encontro, os Estados Unidos anunciaram uma nova meta de redução das emissões de gases de efeito estufa para 2030, como parte de seu retorno ao Acordo de Paris – assinado por Biden já em seu primeiro dia de governo, colocando fim à era de negacionismo climático de seu antecessor, Donald Trump.
Na Cúpula, os EUA comprometeram-se com o corte das emissões de carbono entre 50 e 52% abaixo dos níveis de 2005 até o fim desta década. O Brasil, por sua vez anunciou a neutralidade de emissões até 2050, antecipando em 10 anos a meta anterior – mas sem dissipar o ceticismo sobre o efetivo cumprimento da promessa por parte da gestão federal. Isso porque o desmatamento da Amazônia recrudesceu na gestão de Jair Bolsonaro, em meio ao desmonte da fiscalização, e uma das promessas de campanha do presidente brasileiro é não demarcar nem um centímetro de Terras Indígenas. Em 15 de abril, o presidente Bolsonaro havia enviado uma carta a Joe Biden, anunciando a intenção de zerar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030.
Todd Stern, enviado especial dos Estados Unidos para Mudanças Climáticas (2009-2016), e líder das negociações dos EUA no Acordo de Paris, durante o governo de Barack Obama, reconheceu o “elefante na sala” do governo Bolsonaro, mas disse estar confiante em relação a um bom entendimento entre os dois países na questão amazônica.
“Entendemos onde o presidente Bolsonaro se posiciona na questão da mudança climática, alinhado ao seu amigo Donald Trump em falas onde considerava o tema uma farsa. Mas realmente acredito que é possível ter otimismo em relação ao que pode ser feito pela Amazônia”, afirmou Stern, ao participar da primeira plenária de 2021 da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia. O encontro, realizado de forma virtual em 22 de fevereiro, teve como tema central a Amazônia e os novos caminhos de cooperação internacional entre Brasil e EUA.
Entre os convidados, estiveram presentes Tom Shannon, diplomata americano, ex-embaixador dos EUA no Brasil (2009-2013) e co-presidente do Conselho do Brazil Institute do Wilson Center; Nigel Purvis, presidente da Climate Advisers e que dirigiu assuntos diplomáticos dos EUA voltados para a área ambiental durante as administrações de Bill Clinton e George Bush; e os brasileiros Izabella Teixeira, fellow do Instituto Arapyaú e ex-ministra do Meio Ambiente (2010-2016), o governador Flávio Dino, do Maranhão, a deputada federal Joênia Wapichana e Julie Dorrico, especialista em literatura indígena.
O tom da conversa foi reforçado por Shannon: ampliar as interlocuções com a sociedade civil será parte importante da cooperação entre Estados Unidos e Brasil para a questão amazônica. O ex-embaixador reconheceu a importância da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia como um dos fóruns para construir pontes de diálogo entre as duas sociedades.
“Cada vez mais, a agenda bilateral será definida não apenas pelos governos, mas pela sociedade e pela população. A administração Biden é muito clara ao considerar as mudanças climáticas uma de suas cinco prioridades e no centro da diplomacia americana, o que vai representar oportunidades para o Brasil”, disse Shannon, hoje à frente do Conselho do Brazil Institute do Wilson Center, instituição que pretende intermediar o fórum bilateral entre as sociedades brasileira e americana, com o objetivo de discutir processos de desenvolvimento centrados na Amazônia.
A importância do bioma para o atingimento das metas do Acordo de Paris ficou explícita na apresentação de Todd Stern, que forneceu mais detalhes sobre o Plano de Proteção para a Amazônia. “É virtualmente impossível alcançar as metas do Acordo de Paris que nós, EUA, o Brasil e demais países endossamos, sem manter a Amazônia intacta”, disse Stern, ao reforçar que a ciência está dizendo claramente que é preciso interromper o desmatamento descontrolado ainda nesta década, antes que o acordo do clima fique comprometido.
Segundo ele, o presidente Joe Biden está estruturando uma equipe de especialistas para cumprir alguns dos objetivos anunciados logo nos primeiros dias de sua posse, que incluem a neutralidade das emissões líquidas de carbono até 2050 e o uso de 100% de energia limpa até 2035 – ações que estão sendo analisadas de perto por diversas instâncias do governo americano, sob coordenação da Secretaria Americana do Tesouro.
Muito do que será discutido na cúpula dos líderes em abril visa levar medidas concretas para a COP-26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática a ser realizada em novembro em Glasgow, Escócia. Os próximos nove anos serão decisivos para se alcançar a velocidade e a escala necessárias para uma redução de emissões de gases de efeito estufa de 45%, o recomendado para evitar que a temperatura global se eleve acima de 2°C.
Entretanto, no período entre 2014 e 2019 as emissões globais subiram em média 1,3% por ano e só caíram 7% em 2020 devida à pandemia de covid-19. Como a manutenção das florestas tropicais e a recuperação de áreas que já foram desmatadas é parte crucial nesse esforço, o governo Biden prometeu mobilizar US$ 20 bilhões em recursos públicos e privados para viabilizar a conservação. Mas não só: Stern frisou que a recomendação do plano americano para a Amazônia é de que essas parcerias sejam feitas em quatro frentes – financiamento, comércio internacional, cadeias de fornecimento e diplomacia.
Garantir salvaguardas contra o desmatamento nos acordos comerciais entre Brasil e Estados Unidos deverá ser um ponto importante nas relações com a América nos próximos anos, tal qual como ocorre hoje com o bloco europeu. De acordo com Stern, hoje não existem barreiras nos EUA para produtos agropecuários cultivados em áreas desmatadas da Amazônia.
Ele afirmou que será necessário “limpar” as cadeias de fornecimento de commodities, como soja e carne, e sugeriu procedimentos como ‘due diligences’ ambientais para assegurar que esses produtos não estão vindo de áreas de desmatamento ilegal, o que pode ser fruto de um esforço conjunto que envolva os demais países amazônicos, e também Europa e Japão. “Via de regra, governos brasileiros têm boas relações com os EUA, pois são dois grandes players do mundo ocidental. Acreditamos que, sob a administração Biden, os Estados Unidos serão parte de uma solução para a Amazônia”, reafirmou o negociador.
Mais do que um elemento retórico, a construção de um canal de interlocução entre o governo americano e a sociedade civil brasileira é vista como necessária no momento em que há posições controversas do governo brasileiro em relação à Amazônia – o desmatamento e as queimadas no bioma atingiram patamares recordes nestes dois anos do governo Bolsonaro e o presidente não hesitou em culpabilizar ONGs. Além disso, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, tem sido acusado sucessivamente de promover o desmonte das estruturas de fiscalização ambiental e quis mudar as regras do Fundo Amazônia, o que afugentou seus principais doadores, a Alemanha e a Noruega.
“A vulnerabilidade aumentou bastante na Amazônia, com invasões a Terras Indígenas por garimpeiros, empreendimentos que não consideram os povos indígenas, autorização de mercúrio em garimpos, em total retrocesso a todo o avanço que tivemos até então, em termos de legislação e de compromissos internacionais”, afirma Joênia Wapichana, deputada federal (Rede Sustentabilidade-RR).
Segundo ela, hoje o Brasil vive uma “paralisia”, que se traduz na falta de uma política de proteção efetiva para áreas de interesse para conservação e para a questão climática, a falta de demarcações de Terras Indígenas e no aumento das proposições legislativas que regularizam grileiros de terras.
Com o retorno dos EUA ao Acordo de Paris, a congressista defende que os povos indígenas não fiquem sub-representados no debate sobre as soluções para a Amazônia e sugere, entre outras iniciativas, a retomada do Fundo Amazônia; a transformação do pagamento de dívida externa em investimentos de conservação; a mitigação de emissões dos EUA por algum mecanismo de mercado que envolva a Amazônia; e, no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), a votação de normas que tornem obrigatória a certificação socioambiental das comunidades agrícolas e madeireiras da Amazônia, de modo a criar um incentivo de mercado global para eliminação do desmatamento e da violação de direitos humanos indígenas.
A deputada, da etnia Wapichana, também ressaltou a necessidade de cooperação internacional no âmbito da pesquisa e do conhecimento, com a possibilidade de realização de parcerias entre as universidades da Amazônia e instituições de ensino e pesquisa dos EUA.
Para além da conservação ambiental, os Estados amazônicos travam uma luta emergencial contra as diferentes crises humanitárias que vieram no bojo da pandemia de Covid-19, entre elas a crise sanitária, o colapso nos sistemas de saúde e o agravamento da crise socioeconômica em decorrência de medidas de restrição da circulação de pessoas. Somadas, as crises afetam em cheio a região que, embora rica em recursos naturais, tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil.
Para o governador Flávio Dino, que preside o Consórcio dos Governadores da Amazônia Legal, a agenda ambiental deve sublinhar também a soberania dos povos da Amazônia. “A questão central é fazer com que a agenda ambiental seja apropriada, usufruída, tenha uma relação de pertencimento com a população amazônica. Isso é vetor estratégico para qualquer agenda de desenvolvimento sustentável para a região”, afirmou Dino. Segundo o governador, é preciso romper com o ideário dos projetos de colonização da Amazônia do passado e com a visão de que era um “território sem povo”.
Na esfera da cooperação internacional, Dino vê oportunidades com a Lei nº 14.119/2021, aprovada em janeiro, que instaura a política nacional de pagamento por serviços ambientais e indica um caminho para parcerias voluntárias envolvendo organizações da sociedade civil, setor privado, governos e instituições internacionais na Amazônia brasileira. A lei pode ser implementada em nível nacional e também nos estados e municípios, e complementa o debate sobre REDD+ e créditos de carbono, gerando trabalho e renda nas frentes da agroecologia, reflorestamento e restauração ambiental para as populações ribeirinhas e tradicionais.
Ex-governador do Acre, Jorge Viana concorda com Dino em relação à necessidade de políticas públicas para a floresta que possam estender a mão para populações tradicionais. “A pecuária avançou e se consolidou na Amazônia, mas não conseguimos avançar em políticas públicas para a floresta que tivessem como foco a inserção de mercado dos ribeirinhos e extrativistas”, afirmou, no debate que se seguiu à plenária da Concertação.
Colocar os seres humanos, a natureza e o imaginário da Amazônia no centro da política de conservação e de desenvolvimento para a região também passa por valorizar a produção cultural dos povos indígenas. Com 305 povos e 274 línguas indígenas, a diversidade cultural dos povos originários é pouco conhecida da maioria dos brasileiros, mas existem movimentos em curso que utilizam as mídias sociais com o objetivo de disseminar e valorizar essa produção.
Descendente do povo macuxi, a escritora e pesquisadora Julie Dorrico dedica-se a difundir a literatura de autoria indígena no Brasil, por meio do canal Literatura Indígena Contemporânea, no Youtube, onde entrevista autores indígenas, e da página @leiamulheresindigenas, no Instagram.
Segundo Dorrico, a literatura indígena contemporânea surge na década de 1990, com duas vertentes: a autoria coletiva e a autoria individual. A primeira fica circunscrita à educação escolar indígena; já a autoria individual está chegando às estantes de todo o Brasil com a ajuda de editoras independentes e concursos literários. Por meio dela, se conhece os territórios da Amazônia; as cosmovisões dos povos para temas como a origem da noite e dos animais, os seres encantados e os seres não-humanos. Alguns autores que vêm se destacando são Daniel Munduruku, Márcia Kambeba, Ely Macuxi, Cristino Wapichana, Márcia Mura, Lia Minapóty, Yaguaré Yamã, Davi Kopenawa, entre outros.
Dorrico é doutora em Letras na PUC-RS e lançou, em 2019, o livro Eu sou macuxi e outras histórias, pela Editora Caos e Letras. A obra é um resgate de sua identidade indígena, pois durante muitos anos, não se via como tal. “As histórias podem nos ferir ou nos curar: eu vejo a literatura indígena como um remédio; ela nos traz histórias ancestrais com seres humanos e não humanos que nos propõem um novo tipo de relacionamento: bom com a terra, de respeito, com os ancestrais, uns com os outros e com a gente mesmo.” São muitos os ensinamentos necessários à civilização ocidental.