As empresas são convocadas a chegar com força na COP 26 em Glasgow, juntamente com os non state actors (atores não estatais) e mostrar que estão alinhadas à agenda climática global – por mais que a cúpula do governo federal brasileiro diga que não. Esta é também uma boa oportunidade para as organizações reverem seu papel no “sistema patriarcal, capitalista e colonialista” denunciado na Carta Climática dos povos indígenas
A sete meses da 26ª Conferência das Partes sobre Mudança Climática, a realizar-se em Glasgow, na Escócia, vale resgatar uma mensagem divulgada COP 25, em Madri, quando foi lançada a Carta Climática, um manifesto assinado por autoridades de diferentes povos indígenas do mundo. Quem convida a esse resgate é Gustavo Caboco, artista Wapichana nascido em Curitiba. Ele relembra o item 4 da Carta: “Que a Mãe Terra seja reconhecida e declarada como um sujeito de direitos, porque, para nós, a mudança climática nada mais é que um grito de socorro da Terra”.
Os povos indígenas proporcionam aos debates sobre clima, por vezes tão burocráticos, uma dimensão cósmica e existencial. Não se trata apenas de reduzir emissões de carbono e criar instrumentos de mercado. O que está em jogo é uma discussão mais profunda sobre os modos de vida, os caminhos de desenvolvimento escolhidos pela civilização ocidental e os impactos desse modelo sobre o bem-estar das pessoas e o equilíbrio dos sistemas vivos.
Caboco, entre tantos representantes indígenas, contribui para alargar a visão sobre as crises ambientais globais que a humanidade enfrenta. Ele coloca o dedo na ferida ao trazer para a discussão o espírito da Carta Climática, segundo a qual:
“O sistema patriarcal, capitalista e colonialista nos trouxe para esta crise climática. Se o petróleo, o gás, os minerais e o carvão estão nas profundezas da terra, é porque a Mãe Natureza os deixou lá enterrados, trazê-los para o nosso ambiente é contradizer a sua sabedoria”.
A provocação indígena, que Caboco traduz em suas expressões artísticas, abre o debate promovido pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, em sua segunda plenária de 2021. Realizada em 22 de março, o encontro de 152 participantes de 114 organizações tem como tema central os Caminhos para a COP 26 e o papel da Amazônia. Para isso, conta com os convidados internacionais Nigel Topping e Gonzalo Muñoz, ambos High Level Climate Action Champion da COP 26, e Liz Davidson, chefe adjunta da Missão da Embaixada Britânica em Brasília.
Muñoz, cofundador da empresa Triciclos e do Sistema B, enfatiza a perspectiva de piora social causada por efeitos da mudança climática, tais como inundações, secas e quebras de safra que inflacionam os alimentos. “Muitas coisas que a gente considera certas serão tiradas de nós”, afirma.
Partilha da mesma preocupação Virgilio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), para quem é extremamente importante a agenda de adaptação nas negociações do clima – geralmente um “patinho feio”, possivelmente porque os mais afetados são os mais pobres, que estão mais distantes do centro de tomada de decisão. “A agenda social deve fazer parte da agenda do clima. Os que menos contribuíram para a crise climática são os que mais sofrem os seus impactos”, diz, antevendo as chuvas torrenciais que alagariam cidades e comunidades ribeirinhas.
O Brasil, país de imensa população vulnerável que necessita de políticas de adaptação, chegará à COP 26 com a reputação abalada pela condução desastrosa das agendas ambiental e climática pela esfera federal. Essa condução pôs a perder o protagonismo brasileiro desenvolvido em meio a comunidade climática internacional ao longo de décadas.
Ainda que o governo, em pronunciamento oficial na Cúpula de Líderes, tenha amenizado o tom negacionista e antecipado metas de neutralidade climática de 2060 pra 2050, além de desmatamento ilegal zero até 2030, em uma carta endereçada ao presidente americano Joe Biden, o que prevalece é o ceticismo. O sentimento é de “ver para crer”.
Mesmo antes de antecipar as metas de neutralidade, Liz Davidson já havia declarado não ter visto um plano concreto e transparente de como o Brasil planejava zerar suas emissões. “Temos tido conversas intensas com o governo federal sobre desmatamento, que tem tendências muito preocupantes. Queremos ver uma reversão dessa curva”, diz a vice-embaixadora do Reino Unido.
Davidson qualifica a mudança climática como o maior desafio da atualidade, ao mesmo tempo em que a transição para uma economia descarbonizada cria oportunidades econômicas significativas. “Nesse contexto, estamos trabalhando com grandes democracias que apoiam o Estado de Direito, a liberdade, os direitos humanos e o meio ambiente”, afirma ela, para quem o Reino Unido pode apoiar o tema ambiental por meio de compras sustentáveis de locais que evitam o desmatamento.
“O ambiente externo mudou muito com a pressão de consumidores e investidores, e também vimos a mudança no governo dos Estados Unidos”, diz Davidson (leia mais sobre o reingresso dos EUA no Acordo de Paris e o aumento da ambição dos compromissos climáticos nesta reportagem sobre a plenária anterior).
O secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, chama atenção para este momento infeliz em que o Brasil se encontra, justamente agora que o debate climático mundial se avoluma e ganha ressonância com a entrada de um governante americano sem meias palavras, que se compromete em público, além de movimentos importantes da China e da União Europeia.
“É uma perda de oportunidade para o Brasil porque o cenário internacional é muito vantajoso para o debate climático. Nós nos perguntamos qual a próxima vergonha vamos passar na agenda de clima. Chegaremos à COP 26 tendo registrado aumento de desmatamento, de queimadas, de emissões e descontrole da pandemia. O mundo não vai esperar pelo Brasil. Esse momento, que culmina em Glasgow, está sendo construído há muito tempo”, avalia.
Muñoz reitera o peso que a COP 26 deve assumir. “O mundo fará um pit stop do Acordo de Paris [celebrado em 2020], e a COP 26 será um teste real. Não podemos nos permitir fracassar”, afirma.
Internamente, o Brasil precisa consolidar uma agenda robusta para apresentar à comunidade climática internacional. Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), vê ainda um ambiente de dispersão e alerta: “Precisamos convergir para uma pauta mínima, para podermos caminhar e fazer maior pressão”, diz.
Durante o encontro, a senadora Kátia Abreu (Progressistas-TO), que preside a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, mostrou que o Senado está aberto para essa discussão.
“Queremos abrir uma consulta pública e tirar uma posição do Congresso Nacional sobre a COP 26. Queremos discutir o dever de casa. Minha ideia é trabalhar com governadores, com o consórcio presidido pelo [governador do Maranhão] Flávio Dino. Queremos participação do governo central, mas que subnacionais também possam assumir metas ambiciosas”, diz a senadora.
Kátia Abreu defende que o Brasil sedie uma COP [o país teria sido o anfitrião da COP 25, até o cancelamento pelo presidente Jair Bolsonaro], uma Bolsa de Carbono e que também se posicione de forma mais favorável no comércio internacional, do ponto de vista do meio ambiente. Como se sabe, o Acordo UE-Mercosul não deve avançar por conta da atuação ambiental brasileira.
“A questão ambiental, especialmente o desmatamento, tem sido um entrave para que o Brasil possa crescer nas relações comerciais”, diz a ex-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e ex-ministra da Agricultura. Ela pontua, entretanto, que a postura do Brasil é episódica, não é um pensamento cristalizado de todo o povo brasileiro e nem do governo como um todo.
Diante dessa abertura para o diálogo com o Senado Federal, os participantes da Concertação devem apresentar uma agenda com pautas objetivas à Comissão de Relações Exteriores. Essa agenda tem como objetivo construir soluções e envolver questões relativas não apenas à COP 26, mas também aos interesses estratégicos da Amazônia, da agricultura brasileira, do comércio internacional e das relações bilaterais com Estados Unidos, Reino Unido e China.
Como afirma Eduardo Viola, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a COP é uma motivação para essa agenda, mas a questão de fundo é entender a relação do Brasil com esses países e também com os amazônicos, fortalecendo uma rede de relacionamento pan-amazônica.
“Precisamos entrar no Senado e sair do Congresso com um novo processo de engajamento da sociedade civil, de diálogo, construção de soluções e visão estratégica da Amazônia”, afirma a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira.
Para o economista Arminio Fraga, sócio-fundador da Gávea Investimentos e membro do Group of Thirty e do Council on Foreign Relations, hoje o Brasil é visto como um pária na cena global. “Isso atrapalha o nosso comércio, os planos de investimento e ameaça a biodiversidade, que é um tremendo ativo que temos”.
Segundo ele, quando a Amazônia aparece na conversa hoje em dia, aparece negativamente. “O Marcio Astrini traz aqui um comentário muito eloquente sobre isso. Mas não era assim e não será assim para sempre. Existe aqui no Brasil muita energia para mudança, dentro do governo e do Congresso, dos governos locais, o mundo empresarial, que está vivo e acordado, a academia e o Terceiro Setor”, afirma Fraga.
Fraga registra alguns apontamentos: é de interesse do Brasil é preservar a Amazônia, inclusive para evitar a catástrofe do tipping point; não é preciso cortar uma única árvore para se manter a pujança do agronegócio; é preciso ir além do desmatamento e ter metas claras de reflorestamento; a área destruída equivale a toda área de lavoura do Brasil; o Banco Central criou um bureau verde, cuja proposta está em audiência pública, destinado a monitorar a sustentabilidade de empresas e negócios e premiar empresas que tiverem padrão adequado na capacidade de tomar empréstimo.
Além disso, ele lembra que, em algum momento, o Brasil terá um boom de investimento em infraestrutura, e será fundamental que as avaliações de impacto comecem a ser realizadas nas primeiras etapas do processo de seleção de projetos – essa é uma das mensagens do retrato temático de Infraestrutura, elaborado por Ana Cristina Barros. “Há muito o que fazer, há energia, mas estamos em modo de resistência e sobrevivência. Precisamos de ajuda”, diz o ex-presidente do Banco Central.
Uma das questões que necessitam de apoio é a geração de informações científicas robustas sobre a floresta, na visão de Adalberto Val, pesquisador e professor no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “A floresta é resultado de milhões de anos de evolução, e essa informação que está nela é importante para recuperar áreas degradadas e evitar avançar sobre áreas prístinas, estimulando as cadeias de bioeconomia para viabilizar geração de renda”, afirma.
“Como diz o [ex-governador do Pará] Simão Jatene, nos 60% do território nacional, que correspondem à Amazônia, recebemos menos de 3% do orçamento nacional em ciência e tecnologia. Fica muito difícil gerar as informações de que precisamos, e ficamos dependentes das informações geradas no exterior”, diz o pesquisador.
Val lembra ainda que a Amazônia não é só brasileira, ela se estende em todo o norte da América do Sul, e portanto é preciso fazer uma “concertação” com demais países amazônicos, verificando inclusive a possibilidade de criação de um fundo amazônico para viabilizar a produção das informações científicas necessárias.
Jatene lembra que, desde os anos 1990, os estados do Pará, do Amazonas e do Amapá tiveram queda na renda per capita e no orçamento. Dessa forma, ele questiona a ideia de voltar a um passado mais feliz que o presente pois, em seu entendimento, o País nunca viu a Amazônia como deveria e esta sempre foi considerada como resto – como se 60% do território pudessem assim ser denominados.
Para continuar sendo prestadora de serviços ambientais e ao mesmo tempo gerar condições para o desenvolvimento social de sua população, ele defende uma tripla revolução: pelo conhecimento, pela produção e por novas formas de gestão e de governança. “A Amazônia só tem uma forma de contribuir para o desenvolvimento do País e do mundo: por meio de seu próprio desenvolvimento”, afirma (Leia mais declarações de Jatene nesta reportagem sobre a plataforma Amazônia Legal em Dados, objeto de webinar realizado em fevereiro pela Concertação, em parceria com a Página22.)
Ainda sobre a Amazônia, outros pontos sensíveis a serem debatidos com profundidade são o ordenamento territorial e a regularização fundiária. Para Beto Veríssimo, diretor de Programas do Centro de Empreendedorismo da Amazônia e co-fundador do Imazon, este é um assunto repleto de armadilhas e opiniões fortes. “Precisamos desarmar o debate e aprofundá-lo”, defende.
A votação no Senado do Projeto de Lei nº 510/21, que estabelece novas regras para regularização fundiária de terras da União, foi, inclusive, adiada. Um amplo debate sobre o uso da terra no Brasil e os vários movimentos sociais e interesses envolvidos deve ganhar espaço na Concertação, a fim de construir soluções mais relevantes do ponto de vista estratégico.
Boas notícias sobre sustentabilidade têm vindo do campo empresarial mais progressista em todo o mundo, de acordo com informações de Gonzalo Muñoz. “A Race to Resilience, ou corrida pela resiliência, é campanha-irmã de Race to Zero (pela neutralidade climática). Queremos aumentar a resiliência de 4 bilhões de pessoas em comunidades até 2030, colocando pessoas e natureza em primeiro lugar. Não só para sobreviverem aos choques, mas sim para prosperar”, diz. As maiores empresas entendem isso. Sabem que não existem empresas bem sucedidas em sociedades fracassadas”.
Para Nigel Topping, nessa corrida não há vencedor. “Todos ganhamos ou perdemos, Vamos ganhar juntos”, afirma ele, que foi CEO da We Mean Business, coalizão no setor empresarial para a agenda climática. Ele convida todos a acompanhar a campanha Race to Zero. “Temos cada vez mais empresas, cidades e investidores comprometidos até 2040”, diz. As cidades brasileiras já comprometidas são Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
No caminho até a COP 26, Muñoz convoca as empresas a chegar com força em Glasgow, juntamente com os non state actors (atores não estatais) e mostrar que we are still in (nós ainda estamos dentro) – por mais que a cúpula do governo federal brasileiro diga que não. Está aí também uma boa oportunidade para as empresas reverem seu papel no “sistema patriarcal, capitalista e colonialista” denunciado na Carta Climática dos povos indígenas. É este o legado que as corporações querem deixar para a Mãe Terra?