O glamour em torno da espécie amazônica, manejada de forma sustentável, não tem proporcionado o necessário retorno de renda e qualidade de vida às populações ribeirinhas. Organizações atuam para mudar a lógica exploratória e diferenciar o peixe no mercado a partir de uma relação justa com quem promove a conservação dos territórios
Explorado até a beira da extinção, o pirarucu, um dos maiores peixes de água doce do mundo, recuperou-se na natureza e hoje valoriza cardápios de chefs de cozinha e grifes da indústria da moda. Mas o glamour em torno da espécie amazônica, manejada de maneira sustentável, não tem proporcionado o necessário retorno de renda e qualidade de vida às populações ribeirinhas, na concorrência com a captura ilegal do pescado e atividades econômicas que desmatam. Após duas décadas de trabalho conjunto entre várias instituições da região para viabilizar a produção com critérios ambientais e sociais, os preços permanecem para lá de injustos: em torno de R$ 4 o quilo, contra o mínimo aceitável de R$ 13, necessários para cobrir custos e permitir alguma dignidade a quem protege a natureza para produzir.
Os valores, calculados por pesquisadores do Instituto Mamirauá, no Amazonas, chamam ainda mais atenção quando se vê, na vitrine de marcas famosas, como a carioca Osklen, bolsas feitas com couro de pirarucu vendidas a R$ 3.947 a unidade. É certo que o preço do acessório incorpora design, tecnologia e outros valores indispensáveis para transformar a pele do animal em sofisticado produto final. É também razoável a lógica de dar visibilidade de mercado ao uso não predatório de recursos naturais, para que, assim, sejam protegidos em maior escala. Mas quem conhece a realidade das comunidades extrativistas, e o que recebem em troca pela matéria-prima, se pergunta: Não há algo errado nessa equação?
“É essencial colocar no centro das atenções a figura do manejador e não o recurso consumido pela sociedade. Se permanecermos movidos apenas por este último, estaremos fadados a reproduzir modelos econômicos que sempre marginalizaram as pessoas”, afirma Adevaldo Dias, presidente do Memorial Chico Mendes. Ele integra o coletivo que lançou o selo Gosto da Amazônia, na expectativa de mudar a lógica exploratória e diferenciar o pirarucu no mercado a partir de uma relação justa com quem faz a conservação dos territórios – tema em debate neste painel do Fórum de Inovação em Investimento na Bioeconomia Amazônica (F2iBAM).
Segundo Dias, o mercado precisa reconhecer os atributos de sustentabilidade do produto obtido com cuidados ambientais pelo manejo, para decidir sobre valores e reverter a atual precariedade da cadeia, marcada pela competição desleal com o pescado ilegal, capturado sem qualquer controle, com menor custo de produção. Além dessa barreira, há a insuficiência de dados sobre custos para cálculo de preço e questões tecnológicas, como o acesso limitado a estrutura de refrigeração e transporte. “O cenário convive com baixa escolaridade e reduzido poder de articulação das populações rurais, submetidas à cultura do patronato”, aponta Ana Cláudia Torres, pesquisadora do Instituto Mamirauá.
A organização assessora 13 coletivos de pirarucu, abrangendo 1,6 mil pescadores, dentro de uma rede que abrange associações de base, ONGs e órgãos públicos, fruto de uma trajetória iniciada em 1999 para o desenvolvimento do manejo sustentável da espécie, por meio da união entre conhecimento tradicional e científico. O objetivo foi implantar regras de modo a recuperar os estoques naturais do peixe e, ao mesmo tempo, permitir o uso econômico para aumentar a renda, com um diferencial estratégico: a gestão participativa. “Entre os elementos do manejo, estão o zoneamento ecológico, a vigilância dos lagos e o uso sustentável com base na contagem de peixes, limitando-se a 30% da quantidade total, para que o restante mantenha os estoques”, explica Torres.
O método possibilitou a retomada da pesca do pirarucu, proibida legalmente em 1996. Hoje, a atividade é realizada de 1º de junho a 30 de novembro em sete Unidades de Conservação federais, seis estaduais e uma municipal, além de sete Terras Indígenas e por meio de 10 acordos de pesca, com base em cotas de captura estabelecidas pelo órgão ambiental. Como resultado, após duas décadas, os estoques naturais aumentaram 427%, com aumento da produção legal e receita em torno de R$ 50 milhões no Amazonas, neste período.
Atualmente, a espécie amazônica – com seus dois a três metros de tamanho e até 200 quilos – representa 15% da renda das famílias, com crescente participação feminina, que já superou um terço da força de trabalho, atuando no registro da produção, pré-beneficiamento e limpeza do pescado, reparo dos materiais e coordenação dos grupos de manejo.
Parte da receita é revertida para um fundo destinado a investimentos na melhoria de práticas produtivas. “A experiência com o pirarucu tornou as comunidades mais empoderadas e capacitadas para acesso a políticas públicas e serviços básicos, como educação”, destaca Torres, lembrando que o modelo serviu de referência para expansão da atividade sustentável em estados da região e países amazônicos da América do Sul.
Mas restam algumas questões. Como ser mais rentável? E por meio de quais fontes de financiamento se pode acessar recursos? Para Torres, o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), recentemente regulamentado por lei federal, pode ser uma saída para recompensar financeiramente os manejadores pelos benefícios a toda a sociedade. Mais de 40% do custo de produção sustentável do pirarucu se refere à vigilância e à proteção de rios e lagos. Porém, apesar do interesse público devido à conservação ambiental, a conta não é compartilhada pelos governos.
No Amazonas, a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), coordenada pelo Ministério Público Federal, tem induzido políticas que buscam valorizar o pirarucu de manejo junto aos demais produtos da agricultura familiar e da sociobiodiversidade.
No entanto, políticas federais de compras públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), não têm contribuído na relação comercial mais justa para o produto. Além desses, a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), também federal, esbarra na burocracia e no descompasso com a realidade da cadeia do pirarucu, razão pela qual menos de 10% dos manejadores tiveram acesso ao mecanismo até agora.
“Seria uma forma efetiva de garantir comercialização”, admite Marco Aurélio Pavarino, coordenador de extrativismo da Secretaria de Agricultura Familiar, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “É preciso trazer iniciativa privada para a solução, porque o governo sozinho não resolverá os gargalos”, ressalva.
No programa Bioeconomia Brasil – Sociobiodiversidade, do Mapa, o pirarucu é um dos produtos aptos a receber recursos, em parceria com o governo do Amazonas, para capacitação e gestão de empreendimentos, sistematização de informações do extrativismo e apoio para acesso ao crédito, por exemplo, por meio da linha Pronaf Bioeconomia. Outra demanda a cargo do Mapa é a regulamentação da certificação orgânica para extrativistas, apontada pelas organizações da Amazônia como fundamental na comercialização e há mais de cinco anos sem solução.
“O suporte ao pilar econômico é urgente e precisa ser para hoje, pois os entraves podem desestimular toda a cadeia, com reflexo na conservação do meio ambiente”, adverte Fernanda Alvarenga, consultora da US Forest Service. Ela lembra que o acesso a novos mercados exige infraestrutura que garanta a qualidade do produto na armazenagem e no transporte. “Além da organização social, com fortalecimento para busca de políticas públicas e parcerias, o manejo do pirarucu selvagem é uma das atividades produtivas de benefícios ambientais mais evidentes. Tem forte componente de proteção territorial pelos manejadores, guardiões dos lagos e rios”, completa.
A seguir, as sistematizações gráficas do painel:
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