Embora economicamente bem-sucedido, modelo da ZFM precisa passar por reformulação para se conectar com a bioeconomia da floresta e as tecnologias da indústria 4.0
De um lado, a Floresta Amazônica. Do outro, um dos maiores polos industriais da América Latina, com mais de 500 empresas dos segmentos de eletroeletrônicos, duas rodas e metalurgia, entre outros. A separação entre os dois mundos fica explícita em Manaus, mas o futuro do modelo da Zona Franca de Manaus (ZFM), neste momento de transformação das estruturas industriais, requer uma nova abordagem, conforme debate em painel no Fórum de Inovação em Investimento na Bioeconomia Amazônica (F2iBAM).
A bioeconomia com base nos ativos amazônicos traz respostas pertinentes, ao propor uma diversificação da matriz econômica do Amazonas fundamentada nas vocações regionais e no conhecimento tradicional acumulado – o que não foi pensado em 1967, quando a ZFM foi estabelecida. Mais do que uma oportunidade de negócios, trata-se de um momento de reparação e de conectar as expertises do polo industrial de Manaus com as novas tecnologias da indústria 4.0 e com a riqueza da biodiversidade da floresta.
“Precisamos traçar novos rumos para a indústria amazonense e bioeconomia é uma alternativa relevante, uma revolução na forma de se pensar e de aplicar inovação e tecnologia ao aproveitamento sustentável dos recursos naturais, que se relacionam a vários segmentos industriais, como a agroindústria, a farmacêutica, a de cosméticos”, diz Renée Veiga, assessora técnica da presidência da Federação das Indústrias do Estado do Amazonas (Fieam).
Segundo ela, a federação tem o papel de fomentar políticas públicas, incentivar novas tecnologias e a elaboração de normatizações para que esse redirecionamento do polo industrial de Manaus saia do discurso para a ação, atraindo investimentos nessa seara.
Isso ganha novos contornos com a aprovação, no início do ano, da resolução nº 205/21 do Conselho de Administração da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) que amplia as possibilidades de industrialização de matéria-prima regional para toda a Amazônia ocidental. A normativa deve abrir caminho para complementar o atual modelo da ZFM, de modo que os recursos gerados no polo vão dar fomento a novas atividades produtivas na região, baseadas em pesquisa e desenvolvimento na área de bioeconomia. Outro objetivo é dar suporte a um processo de descentralização da economia do estado, com maior interiorização das atividades, para que não fiquem concentradas apenas na capital manauara.
Segundo Carlos Koury, diretor técnico do Instituto de Desenvolvimento da Amazônia (Idesam), o papel das indústrias do polo de Manaus no fomento a novas atividades já começa a dar os primeiros resultados por meio do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio), cuja coordenação é do Idesam. Por meio da iniciativa, R$ 11 milhões foram investidos na bioeconomia da Amazônia com incentivos de sete empresas da ZFM, com o desenvolvimento cinco novos produtos cosméticos que utilizam insumos de comunidades extrativistas e projetos na área de piscicultura e produção agrícola de baixo impacto.
Promover uma mudança de rumo na indústria amazônica requer ainda superar desafios de ordem econômica e burocrática para quem já está produzindo na região, na visão de Yaniv Amaral, diretor operacional da Magama Industrial, empresa que desde 1993 transforma matérias-primas florestais, como cascas, folhas, frutos e resinas, em ingredientes para indústrias dos segmentos de fitoterápicos, alimentício e cosméticos. A empresa utiliza tecnologias inovadoras para beneficiar essas matérias-primas, como a secagem por spray dryer e membranas de nanofiltração, o que garante um padrão de qualidade para exportação.
Mas dar novos passos nos processos produtivos da bioeconomia implica, segundo Amaral, em destravar três pontos: o desenvolvimento de técnicas mais avançadas de coleta de matérias-primas da floresta; o manuseio e pré-processamento desses materiais nas cidades do interior e a logística para transportar os produtos semiacabados para a capital. Há espaço para crescer na inclusão de tecnologias para coleta, aumentando o número de matérias-primas ofertadas ao mercado e gerando maior valor para as comunidades. “Destravar esses pontos da cadeia produtiva é fundamental para que as empresas da Amazônia sejam economicamente competitivas em comparação com outros fornecedores de insumos e nutrientes do Brasil e do mundo”, diz Amaral.
Já o desafio burocrático a ser transposto diz respeito a pontos da Lei nº 13.123/15, conhecida como Lei da Biodiversidde, que regra o acesso ao patrimônio genético e à repartição de benefícios com as comunidades que detêm conhecimento sobre seu uso. Ao trabalhar com a matéria-prima amazônica, o fabricante do produto final precisa realocar 1% do faturamento para a repartição de benefícios, sendo obrigado às condições de contrato e obrigações de curto, médio e longo prazo com os detentores do conhecimento tradicional associado. De acordo com o diretor da Magama, isso contribui para a perda de competividade de insumos produzidos com matéria-prima amazônica, pois a empresa final não quer se ver obrigada a compartilhar desses custos.
Apesar de serem necessários ajustes na aplicação da Lei da Biodiversidade, a regra faz parte de um avanço no ambiente institucional do Brasil que está viabilizando a biotecnologia industrial, junto com outros regramentos como a lei de biossegurança, as políticas nacionais de fomento e modernização da propriedade intelectual, além da criação da Frente Parlamentar Mista pela Inovação na Bioeconomia no Congresso Nacional, que tem o objetivo de atualizar o arcabouço legal sobre o tema.
Com normas mais modernas, abre-se também o caminho para que o país dê os passos necessários para fazer avançar a bioeconomia: escalar as soluções de laboratório para plantas piloto de demonstração e industriais, baratear equipamentos, aumentar a previsibilidade de matérias primas e atrair capital diversificado, não apenas o venture capital. “O risco hoje está nas costas dos empreendedores, mas o Estado pode ajudar a desenvolver modelos de negócios com financiamentos públicos de fomento que olhem para as especificidades da bioeconomia. Já em termos de mercado, é preciso que os produtos sejam diversificados”, analisa Bernardo Silva, sócio-diretor da ThinkBrasil, consultoria da área de relações institucionais.
Segundo ele, o Brasil dará um salto ao combinar as tecnologias da indústria 4.0 com as oportunidades da chamada bioeconomia avançada, que inclui biocombustíveis de segunda geração, polímeros de origem renovável, proteínas cultivadas em células-tronco, biofertilizantes e biodefensivos agrícolas, além do mapeamento do genoma da biodiversidade dos biomas brasileiros.
“A Amazônia brasileira possui hoje 340 milhões de hectares de floresta ainda intacta que podem render R$ 7 trilhões/ano se mantida em pé, com uma estratégia de bioeconomia avançada de longo prazo”, diz Silva.
A união da bioeconomia com as TIC (tecnologias da informação e comunicação) é um dos pleitos da Associação Polo Digital de Manaus (APDM), organização que busca fomentar o ecossistema de TIC em Manaus e transformá-lo na segunda maior matriz econômica do Amazonas. De acordo com Vânia Thaumaturgo, presidente da APDM, a indústria local já auxilia no desenvolvimento do polo digital, mas é preciso estar aberto às oportunidades da bioeconomia. “A ZFM tem contribuído para a formação do polo digital, mas essa é uma indústria eletroeletrônica, essencialmente, sem insumos da floresta. É preciso passar do discurso para a ação”, diz.
Para Karla Giovanna Braga, fellow do Youth Climate Leaders, o futuro da ZFM depende também de correlacionar a perspectiva de inovação da indústria com as mudanças climáticas, uma vez que a região já sofre com seus os efeitos – neste ano, Manaus vem enfrentando a pior cheia do Rio Negro desde 1902, que subiu 30 metros e deixou milhares de pessoas desabrigadas.
Embora seja considerado um exemplo de política de desenvolvimento local e responsável por mais de 90% do ICMS arrecadado no estado do Amazonas, o modelo da ZFM não dizimou a aguda desigualdade social no Estado, que tem o quarto maior índice de Gini do Brasil, com pontuação de 0,56 (quanto mais alta, maior a desigualdade), e onde há disparidades no acesso a água potável (81% da população tem acesso) e tratamento de esgotos (apenas 10%). “Esse modelo de desenvolvimento afeta as próprias indústrias e o trabalhador, em um cenário que vem sendo agravado pela pandemia e pela crise climática”, diz Braga.
Segundo ela, reduzir o fosso social e garantir maior resiliência climática passa por cooperação multissetorial para que a região continue a produzir bens e serviços, mas com reduzida pegada de carbono, cabendo ao Estado estabelecer limites de emissão de carbono e subsidiar indústrias que reduzem a pegada ambiental em todos os territórios amazônicos.
A seguir as sistematizações gráficas do painel:
Acompanhe a programação dos próximos painéis e reveja os anteriores no canal do YouTube da Página22.