“Mudar o mundo” virou expressão fácil e vem sendo utilizada com diferentes significados e por diversos setores. Para organizações do campo socioambiental mais comprometidas com transformações profundas e de base, posicionamentos mais enfáticos nos fazem indagar: afinal, de qual “mudança de mundo” estamos falando? A qual transformação socioambiental nos referimos? Mudar para qual direção?
Proponho a seguir sete pautas que ajudam a posicionar este debate em um lugar mais próximo de aspectos estruturantes do nosso modelo econômico, político, socioambiental e cultural, enfatizando que nem todos os atores que clamam pela “mudança do mundo” convergem em relação a essas questões. Aliás, elas poderiam ser consideradas como um didático divisor de águas de posicionamentos neste campo.
1. Taxação de grandes fortunas
Esta é possivelmente a pauta mais radical e, segundo algumas percepções, a mais inapropriada de ser trazida no bojo da agenda da transformação socioambiental, impacto e ESG, sob o argumento de que, quando se taxa a riqueza, ela reduz seu potencial de gerar valor para a sociedade e migra para outros mercados. Na outra ponta de percepções, encontramos o debate sobre o quanto o capital tem se tornado improdutivo e especulativo (vide: A Era do Capital Improdutivo, de Ladislau Dowbor).
Curiosamente, entre organizações deste amplo campo esta não parece ser uma pauta quente em suas plataformas de discussões. Convém perguntar: por quê? Ao menos, não seria adequado fazer esse debate e construir entendimentos e argumentos (a favor e contra) sobre este tema? Não seria um caminho para a tão falada busca por fontes de financiamento de soluções de impacto e de fomento rumo à Agenda 2030 seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)? Há (muita) controvérsia.
2. Revisão do teto de gastos (EC 95)
Outra pauta polêmica e ausente nas discussões deste campo diz respeito à revisão (revogação?) da Emenda Constitucional 95, aprovada em dezembro de 2016 e que congelou o teto de gastos de políticas públicas por dez anos. Sob o argumento de que o Estado precisa adotar medidas de ajuste fiscal, essa medida contribuiu para colapsar ainda mais diversas políticas sociais (SUS, educação pública, programa de aquisição de alimentos, e inúmeras outras). Em outras palavras, a medida contribuiu para nos distanciar ainda mais da materialização de diversas conquistas sociais que a Constituição de 1988 previu, e também nos colocando algumas casinhas atrás no tabuleiro de implementação dos ODS.
Talvez o cerne da discussão passe menos pelo chavão “menos Estado” e mais por “Estado e o investimento público devem estar a serviço de quem”? Na medida em que o Estado cumpre bem seu papel e injeta recursos em políticas sociais, o que faremos com nossos projetos sociais e campanhas emergenciais? Esse cenário, hoje hipotético, nos leva a redesenhar nossas estratégias de atuação, nos reconectando com a via da complementariedade e da qualificação desta oferta pública.
3. Privilégios da elite
Vivemos num dos países mais desiguais do planeta e, portanto, repleto de privilégios dos mais ricos, de determinadas categoriais profissionais e corporações. Além de não ser nova, esta é uma triste constatação. O ponto crucial nesta pauta é a dificuldade de constatar o óbvio – as elites econômica, política, intelectual brasileiras têm diversos privilégios e isso as coloca em uma posição muito superior à grande massa da população que vive na pele a gritante desigualdade de oportunidades em nosso país. Ações emergenciais, políticas de cotas, ações afirmativas são necessárias e relevantes mas deveriam coexistir com ações estruturantes que visam atacar as causas destas várias desigualdades.
A pergunta que emerge daí é como avançar nessa direção, se uma parcela dos que deveriam liderar essas ações é também parte interessada nesse lugar de privilégios? Parte da elite brasileira é também integrante deste conjunto de organizações socioambientais, de impacto e ESG – o que torna esse desafio ainda mais complicado. Estaríamos mesmo dispostos a cortar nossos próprios privilégios em prol da maioria?
4. Movimentos sociais testando investimento de impacto
Testar instrumentos financeiros pró-impacto positivo está em alta. É blended finance pra cá, é capital paciente pra lá, e novos termos emergem pra basicamente dizer, em suma, a mesma coisa: é preciso combinar vários bolsos – filantropia, doação, não-reembolsável – com o do investimento de impacto (que visa obter retorno financeiro com impacto socioambiental positivo). Até aí tudo bem.
A polêmica ou o silêncio começa quando movimentos sociais também passam a utilizar esses instrumentos. Por exemplo, o MST tem criado iniciativas interessantes nesse sentido – como o Financiamento Popular (Finapop) – mas recebe pouca atenção do campo do impacto, ESG e afins. Essas iniciativas ficam meio marginais, tal como o próprio movimento social. Já que se fala tanto em hackear o sistema, esse não seria um belo exemplo?
O argumento que mais se escuta no campo do impacto sobre movimentos sociais, ONGs com braços de negócios, cooperativas e negócios comunitários é que, em geral, não possuem escala e, portanto, tendem a receber menor atenção por parte de fundos e do próprio mercado. Ouso acrescentar mais um argumento, neste caso velado, de que este mesmo mercado evita se associar (com raras exceções) a essas organizações, em especial aos movimentos sociais com atuação mais militante e política, por óbvias razões ideológicas e repercussões de imagem.
5. Investimento público a serviço de quem?
Paira no ar entre atores deste amplo campo socioambiental certa visão de que o Estado gasta mal e muito, e portanto, precisa ser reduzido. Logo, espera-se que sua capacidade de investimento em políticas púbicas, em especial naquelas voltadas aos grupos sociais em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica, se torne mais limitada do que historicamente é. Na prática, o que temos é o famoso ”quem pode demais, chora menos”, com grupos de interesse com maior poder de influência obtendo sua parte neste latifúndio do orçamento público para seus interesses.
6. Política como mediação de quais interesses?
Vivemos tempos em que diversos esforços de demonização da política vem sendo feitos. Tem-se vendido uma narrativa para a população de que a política é sinônimo de corrupção e, portanto, é melhor nos afastarmos dela. Afastarmos da política significa o nosso distanciamento da esfera pública – dos espaços públicos, do direito à cidade, da cidadania, do controle e da participação social – o que alimenta a narrativa do individualismo de mercado (em vez de cidadãos, consumidores), da meritocracia (a balela do “depende apenas do esforço de cada um”) e do empreendedorismo (para a maioria, uma forma de sobrevivência).
Além disso, nosso afastamento da política a entrega de bandeja nas mãos de supostos atores “não-políticos”: empresários, militares, pastores, entre outros. No final do dia, a política segue sendo crucial para definir rumos do País (nossos próprios rumos) e para priorizar o que o Estado fará e o que não fará. Se de fato buscamos transformações socioambientais e impacto em escala, nossa reconexão com a esfera pública e com a política é chave. Alguém em sã consciência crê que os ODS serão atingidos até 2030 sem nos engajarmos com essas esferas?
7. Papel da mídia
Fala-se tanto em autocrítica mas, cá entre nós, a mídia não teria também sua parcela de contribuição neste contexto conturbado em que estamos? A demonização da política, a falsa ideia de um Estado “malvado”, o sonho dourado da meritocracia, são algumas das muitas teses questionáveis que mobilizam mentes e corações em nossa sociedade. O recente episódio da “caçada ao Lázaro” é emblemático nesse sentido. Rendeu pontos na audiência, cliques e “engajamento” escancarando que desinformação, distração e espetacularização da nossa tragédia social alimenta um modelo de receita absolutamente obtuso.
As mídias, as redes sociais e plataformas afins têm bastante implicação nesta agenda pró-impacto positivo, pró agenda socioambiental, pró ESG. Seu papel vai muito além jogar luz em “cases de sucesso”, “prêmios de boas práticas” ou oferecer botões de doação, pois ainda que essas medidas sejam necessárias, são gotas neste oceano de desafios civilizatórios. Não há neutralidade neste tabuleiro. Há lados, há preferências e interesses comerciais e políticos. O fenômeno das fake news e suas implicações na questão das vacinas é outro exemplo emblemático desta discussão.
Sim, eu sei, leitor(a), que são pautas duras e pouco triviais nas narrativas (em alta) sobre impacto socioambiental, ESG e temas correlatos. Como vimos no início, há muitas maneiras de “mudar o mundo”. Parte delas parece contentar em “mudá-lo” para manter as coisas como estão, com pequenos remendos. Mudar as estruturas que constituem os vários mundos parece supor que pautas indigestas, reflexões não óbvias e uma boa dose de desconforto sejam gerados. Se elas nos levarão a mundos mais justos, não sabemos. Por outro lado, se nem sequer levantarmos essas questões, seguiremos “mudando o mundo” a partir de nossos próprios umbigos, telas e sofás.
*Fábio Deboni é diretor do Programa CAL-PSE / Aliança Bioversity/CIAT, membro do Conselho do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (Funbea). Engenheiro agrônomo e mestre em recursos florestais pela ESALQ/USP. Lançou seu quarto livro em 2020: A Epidemia do Impacto. Escreve diariamente neste blog.
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