Cenário da pandemia e da mudança climática reacende o debate sobre o poder das aquisições governamentais para um novo paradigma em produção e consumo, com ênfase na equidade social
A crise da Covid-19 expôs o poder das compras públicas para garantia à saúde, em especial no tocante às vacinas, evidenciado pelas investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado brasileiro sobre a gestão federal, estadual e municipal no tema. Das redes sociais e horário nobre na TV, a fumaça se espalha pelos gabinetes de quem bate o martelo na escolha dos mais diversos produtos e serviços fornecidos ao governo, e chega a demandas sob os holofotes de uma outra emergência humanitária: a mudança climática e a degradação do planeta. Qual o papel das aquisições governamentais para maior escala de práticas sustentáveis, com inclusão social e econômica?
No Brasil, onde o mercado de compras e contratações públicas representa cerca de R$ 900 bilhões por ano (12% do PIB), o desafio encontra avanços na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (nº 14.133/21), sancionada em abril, com pontos inovadores de sustentabilidade, alvos do atual processo de regulamentação, no Ministério da Economia. Questões como igualdade de gênero e inclusão social povoam as normas que precisam sair do papel para subsidiar a tomada de decisão de gestores públicos em compras desde alimentos e materiais de escritório até produtos eletrônicos e contratação de obras de infraestrutura, com critérios para além do menor preço.
“Em resposta a incertezas, riscos e crises globais, como o colapso climático e a pandemia de Covid-19, os governos estão embarcando em um período de demanda sem paralelo por ações e gastos públicos”, afirma Thiago Uehara, pesquisador em energia, ambiente e recursos da Chatham House, no Reino Unido. Ele reforça: “Princípios robustos de sustentabilidade e desenvolvimento precisam estar no centro desse movimento ou o mundo perderá uma oportunidade criticamente importante – que é, talvez, a chance de uma geração”.
A questão movimentou o debate em encontro virtual “Equidade em Compras Públicas Sustentáveis: Um novo modelo para o Brasil?”, realizado para convidados pela instituição em parceria com a Página22, e que reuniu especialistas com objetivo de gerar recomendações ao aprimoramento de políticas no contexto da nova lei de licitações.
Segundo Uehara, muitas organizações internacionais e empresas têm clamado por “redução de impactos negativos” em compras sustentáveis, mas, em sua análise, essas ideias enviam a mensagem errada. “Os governos devem ir além da mitigação, olhar para a prevenção de danos e, mais importante, para a promoção e criação de benefícios líquidos em relação ao desenvolvimento sustentável”, diz.
No estudo Public Procurement for Sustainable Development, o pesquisador propõe que o conceito de aquisição sustentável no plano dos governos supere a temática ambiental, considerando princípios de equidade como pilares. São elementos que asseguram justiça para acesso a oportunidades sem distinção de gênero, idade ou condição social, e para o bem-estar das atuais e futuras gerações; participação na tomada de decisões e tratamento diferenciado e inclusivo para pequenos produtores e grupos menos favorecidos; equilíbrio na relação entre o homem e as demais na natureza; e a igualdade de benefícios independentemente da localização geográfica, com promoção da solidariedade entre as regiões.
Incentivos econômicos, proteção social e garantias de transparência, entre outros pontos, devem sustentar a estratégia pública nas compras. “Soluções e tecnologias mudarão constantemente, mas os princípios de sustentabilidade são conceitualmente robustos e permanecerão relevantes no longo prazo”, sustenta o pesquisador. Ele defende a criação de uma força-tarefa multissetorial permanente para a temática no País: “O desenvolvimento sustentável é uma questão complexa, assim como as compras públicas, e as inovações nessa seara terão mais chances de sucesso por meio da experiência coletiva”.
Mudança de padrão
“Equidade”, “rastreabilidade”, “diversidade”, “boas práticas produtivas”, “economia circular” e “ciclo de vida dos produtos” são expressões que se incorporam, por força de lei, ao mundo das licitações. “Passou da hora de pensarmos compras sustentáveis já no padrão 2.0, com viés social, adaptadas às necessidades de desenvolvimento do País”, avalia Uehara. Ele lembra a importância de recomendações para aprimoramento dessas políticas, tendo em vista o debate político do ano eleitoral, em 2022.
O desafio não é só brasileiro. O mundo movimenta hoje US$ 13 trilhões ao ano em compras públicas e o governo do Reino Unido, na década de 1990, foi o primeiro a associar o potencial desse poder financeiro à sustentabilidade. Posteriormente, a ONU replicou a política. “Mas o conceito nasceu desvirtuado e capenga, baseado na prioridade ao desenvolvimento econômico, com a lente empresarial”, questiona o pesquisador, segundo o qual “essa visão é insuficiente para o domínio público, sendo necessário falar não de lucros, mas de benefícios para a sociedade”. Ele adverte: “Sem uma reforma nas aquisições públicas, não atingiremos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”.
Apesar de a Europa ser conhecida pelas compras verdes, é comumente questionada pela negligência aos impactos socioambientais negativos nos países fornecedores. “Precisamos sair dos paradigmas do passado e inovar, e o Brasil tem histórico e força para isso”, observa Uehara, que no paper destaca como referência os casos do Equador e Papua-Nova Guiné. Entre os exemplos mais emblemáticos no mundo, segundo ele, está o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado pelo governo brasileiro em 2003 visando inclusão social, distribuição de renda e segurança alimentar – política pública que comprovadamente produziu impactos positivos, mas hoje está em processo de enfraquecimento.
Cotas para mulheres
Essas e outras questões rondam o atual momento do País, sob o risco de criar normas socioambientais nas compras públicas e, ao mesmo tempo, inviabilizá-las devido à desconstrução de políticas já existentes. A expectativa de inteligência nessas demandas está na regulamentação da nova lei de licitações, que trouxe como grande diferencial a clareza e o destaque para o princípio do “desenvolvimento nacional sustentável”. O conceito já constava na antiga Lei de Licitações, a nº 8.666/93, mas de forma remendada por atualizações, e agora – fortalecido – torna as práticas de compras sustentáveis imunes aos recorrentes questionamentos e insegurança jurídica que atrasavam a agenda na administração pública.
Na fase de transição, até 2023, os órgãos governamentais poderão optar pela antiga ou pela nova legislação, que tem 57 pontos em processo de regulamentação, sendo seis diretamente ligados a critérios de sustentabilidade. Entre eles, figuram as cotas em contratos de terceirização para mulheres em situação de violência doméstica, equidade de gênero como critério de desempate em licitações e decisão de compra baseada nos impactos ambientais ao longo do ciclo de vida de vida dos produtos, por meio de metodologia a ser definida provavelmente com apoio da academia. A regulamentação de algumas normas, como a prevista no Artigo 25 da lei envolvendo licenciamento ambiental, dependem de outras áreas técnicas do governo.
A primeira a sair do papel, com anúncio estimado para as próximas semanas, terá como base o Plano de Logística Sustentável, no âmbito da portaria de governança em contratação, prevista no Artigo 11 da lei, trazendo diretrizes gerais para o tema. No caso das demais normas com viés de sustentabilidade, não há previsão de início da consulta pública. “O plano é acelerar o processo para finalizá-lo até meados de 2022”, revela Renato Felini, secretário adjunto de gestão do Ministério da Economia. “Queremos transparência, com participação dos diferentes atores”, completa.
Segundo ele, além de tornar a lei operacional, a ambição do trabalho é inspirar políticas de desenvolvimento sustentável via mecanismos infralegais. “A lei faz um recorte; não resolve os problemas”, diz.
O objetivo é assegurar soluções mais vantajosas para o órgão contratante, indo além de critérios convencionais envolvendo preço, isonomia e efetividade, com uma ressignificação do que vem a ser “desempenho”. “Espero que as inovações em curso amadureçam e se perpetuem no contexto das compras públicas”, destaca Felini, lembrando que é necessário aprofundar o debate sobre o conceito de “sustentável”.
Necessidade de transparência
Luciana Betiol, professora e pesquisadora no tema de compras públicas sustentáveis na Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP), reforça: “O Ministério da Economia não é o dono da lei, mas tem o papel histórico de garantir sua aplicabilidade, com direito à manifestação pública”. Em sua análise, clareza e transparência são desafios no atual cenário político, que resvalam na regulamentação da nova lei de licitações – “um momento sensível de adequação que não pode ter retrocessos”.
“No caso das compras de micro e pequenas empresas com critérios de sustentabilidade, por exemplo, precisamos atenção porque houve passos para trás com a inclusão de valor máximo de transação com esses segmentos, o que antes não existia”, ilustra a pesquisadora. “Havia espaço para mais inovações na nova lei mas, no processo de construção, os tomadores de decisão que aplicam as normas na ponta não foram ouvidos”.
De toda forma, explica Betiol, “com o atual marco legal de licitações, não precisaremos mais digladiar juridicamente como antes para convencer gestores sobre opções de compra mais sustentáveis”. Na visão da pesquisadora, “não há mais como fugir da questão; o ponto agora é como fazer”.
Além disso, para muitos analistas, a legalidade sozinha já não é suficiente para orientar compras públicas, diante do tamanho dos problemas socioambientais, sendo necessário mais que isso. A maior visibilidade do tema pode potencializar ações na administração pública para ir além do previsto no portal ComprasNet do governo federal. “Como ponto positivo, a legislação sugere um espaço virtual único de aquisições para todas as esferas de governo, o que vai facilitar o cadastro de fornecedores e a referência de valores, além de fixar o tema da sustentabilidade no radar”, avalia Betiol.
História em evolução
A pesquisadora explica que o momento atual das compras públicas sustentáveis é fruto de um processo histórico, uma agenda que veio de baixo para cima, desde os debates liderados em 2004 pela FGV e o Iclei – rede global de governos locais que já trabalhava o tema no exterior, sobretudo na Europa. No Brasil, a onda tomou impulso dois anos depois, quando o estado de São Paulo emitiu os primeiros pareceres jurídicos a favor de critérios sustentáveis nas compras com base na Constituição Federal.
Desde lápis produzido com madeira de reflorestamento até torneiras com controle de vazão para economizar água, iniciou-se um amplo movimento de especificações técnicas que subsidiou o selo de sustentabilidade criado na Bolsa Eletrônica de Compras de São Paulo. Desta forma, o maior estado comprador brasileiro representou o País na Força Tarefa de Marrakech, organizada pela ONU, em 2011, visando promover os primeiros mecanismos globais de compras governamentais sustentáveis.
Uso de papel reciclado, copos que geram menos resíduos, refrigeradores mais econômicos em energia e com menor geração de gases nocivos à camada de ozônio, enfim, o mundo da gestão pública passava a conviver com preocupações até então restritas a ambientalistas. No nível federal, surgiu a Agenda A3P com critérios de boas práticas, em 2007, além de iniciativas isoladas de sustentabilidade em diferentes órgãos. O tema foi reforçado mais tarde pela Política Nacional de Mudança do Clima (2009) e pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010), mesmo ano em que a Lei nº 8.666 foi alterada no artigo 3º para inclusão do termo “desenvolvimento nacional sustentável” como objetivo das compras e contratações.
A mudança inspirou diversas instruções normativas e o guia nacional da Advocacia Geral da União, com diretrizes para maior segurança do gestor na temática das compras sustentáveis, que também marcou a Lei de Regime Diferenciado de Contratação, voltada para as demandas das Olimpíadas e Copa do Mundo, entre outras iniciativas.
“A nova lei atualiza e sistematiza o que já existia de jurisprudência prática”, afirma Marcos Bliacheris, advogado da União especializado na temática. Ele reforça que a novidade está em incorporar a sustentabilidade com uma dimensão institucionalizada, não mais com emendas e vários critérios de interpretação. “A lei é um ponto de partida; um instrumento jurídico e, também, uma política pública que precisa de vontade para ser implantada”, diz o advogado.
Adaptação às realidades regionais
Para ele, o maior desafio é incorporar as dimensões culturais, para além das ambientais, conectando-se às formas locais de produção e consumo, o que exige mais do que somente priorizar a compra de microempresa. “A realidade produtiva do pirarucu do Amazonas é diferente da tainha no Rio grande do Sul, e não adianta copiar e colar normas para todo o País”, ilustra Bliacheris. Ele propõe maior esforço de diálogo com o mercado na busca de soluções, trazendo equidade como elemento de análise das compras.
Deimison Santos, secretário adjunto de registro de preços do Maranhão, concorda: “Temos legislação própria para beneficiar cadeias produtivas locais”. Há necessidade de capacitar gestores públicos e avançar no planejamento das contratações, ponto de atenção na atual gestão estadual, que redesenhou e digitalizou a central de compras, incluindo o treinamento de usuários sobre como vender para o estado com foco no desenvolvimento regional.
Entre os exemplos, após análise de mercado, concluiu-se que a aquisição de mobiliário para administração pública e de uniformes escolares seria mais vantajosa – em preço e impacto social positivo – se realizada em parceria com o sistema penitenciário para produção pelos internos via oficinas de ressocialização. “Não devemos saber somente o que adquirir, mas como adquirir e qual o destino dos produtos, de modo a agregar valor à compra no sentido do melhor uso”, diz Santos. “O caminho é árduo e não há uma receita pronta, diante das particularidades regionais.
Importância para a bioeconomia
“Para sermos inclusivos, não podemos tratar o pequeno produtor como empresário especializado em pregão”, adverte Leonardo de Moura, especialista do Instituto Socioambiental (ISA) em acesso a políticas públicas pelos povos da floresta. Para ele, as compras governamentais precisam considerar que adquirir produtos das comunidades é um modo de melhorar a qualidade de vida e manter a floresta em pé.
Na região da Terra do Meio, na Transamazônica, no Pará, o engenheiro florestal dá assistência à rede de cantinas – entrepostos comerciais comunitários que vendem produtos básicos para os ribeirinhos e ecoam a produção extrativista para o mercado institucional, público e privado, com apoio de capital de giro para esse fornecimento.
“É necessário um ator local para fazer a ponte, pois as instituições públicas não têm capacidade de acesso direto aos povos tradicionais e estes não sabem lidar com as formalidades das transações com governos e muitas vezes nem têm internet para verificar editais de chamadas públicas”, explica Moura. “Sem diálogo para convencimento sobre os produtos de interesse social e ambiental, as compras não acontecem, mesmo que estejam na lei”, diz.
A mediação da ONG ajuda, por exemplo, no cumprimento da norma que obriga os quartéis a comprarem 30% dos alimentos junto à agricultura familiar, na região. Além disso, merendeiras são treinadas para uso de produtos da floresta na alimentação escolar, por meio das compras municipais em Vitória do Xingu (PA) e Altamira (PA). Neste ano, comunidades da região conseguiram acessar edital do PAA para fornecimento de farinha de babaçu, castanha e outros produtos ao governo federal, no valor de R$ 215 mil. “Hoje, no entanto, essa importante política pública não é mais contínua, mas eventual”, lamenta Moura. “Precisaria fazer parte da política ambiental, em complemento à fiscalização do desmatamento”.
Na análise de Paula Bernasconi, coordenadora de incentivos econômicos para conservação no Instituto Centro de Vida (ICV) e pesquisadora associada na Chatham House, a questão vai além: “Políticas como o PAA permitem, por meio de investimento único, perseguir diversos objetivos econômicos, ambientais e sociais, com ganho na educação, saúde e até na redução de custos de logística e emissões de carbono, ao comprar de fornecedores locais”.
Dessa forma, explica a pesquisadora, as compras sustentáveis são estratégicas na atual dificuldade de estabelecer planos e políticas dentro de cada uma dessas áreas, em cenário de baixo orçamento e crise econômica. “É necessária a conexão de políticas”, reforça Bernasconi.
A complexidade da madeira
“Um desafio é criar oferta sustentável e isso não se faz excluindo fornecedores, mas formando redes confiáveis”, destaca a economista brasileira Thais Juvenal, à frente do programa Madeira Sustentável para um Mundo Sustentável, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). A iniciativa visa fortalecer as cadeias de valor do produto, aumentando benefícios sociais, econômicos e ambientais, desde a produção até o consumo, por meio de atividades colaborativas.
De acordo com a economista, se o mundo quiser atingir a sustentabilidade climática, na transição para o baixo carbono, a madeira faz parte da solução – e o principal usuário é o setor da construção civil. “Já demos provas de boas práticas para romper o estigma do produto como vilão do desmatamento”, afirma Juvenal. Ela enfatiza o impacto do manejo florestal sustentável na melhoria dos meios de subsistência como item a ser considerado nas compras públicas, além dos aspectos ambientais do material como fonte renovável.
No plano do comércio internacional, a FAO mobiliza governos para a adoção de marcos legais e assistência técnica, no sentido de criar barreiras à ilegalidade na compra, principalmente de países da África e Ásia. “O mercado vive um momento de transformação, com alto valor da madeira nativa, cada vez menos disponível diante da inexistência de florestas capazes de fornecer ao mercado sustentável”, analisa Juvenal.
Segundo a economista, até bem pouco tempo atrás o Brasil era visto como lição aprendida pelos avanços de governança e no controle da madeira. Hoje, porém, a imagem é prejudicada pelos recordes de desmatamento e pela falta de fiscalização: “É preciso despolitizar questões técnicas e se apropriar das conquistas que alcançamos”.
Como a madeira tropical brasileira se destina principalmente ao mercado interno, as compras públicas fazem toda a diferença. “Mas a lei de licitações, com pontos de sustentabilidade, não basta. O impacto depende do grau de comprometimento na sua implantação e da capacidade de disseminar boas práticas”, enfatiza Juvenal, ao participar do encontro virtual da Chatham House. Como caminho, a economista sugere a realização de “acordos de cooperação entre os estados, para que o valor da sustentabilidade esteja mais enraizado, provendo maior equidade dos benefícios com as compras públicas de madeira”.
A perspectiva é o poder de compra contribuir efetivamente para gerar empregos e promover o desenvolvimento das regiões fornecedoras de madeira, incorporando pequenos produtores, no conceito de solidariedade geográfica. A questão, porém, é complexa, porque a dificuldade na aquisição sustentável do material tem sido superior às barreiras encontradas pela ilegalidade e atividade predatória na floresta.
Controle em São Paulo
O estado de São Paulo, que gasta R$ 40 bilhões ao ano em compras, contração de serviços e obras públicas, é o principal consumidor da madeira extraída na Amazônia, aproximadamente 20% da produção. Mas o controle aprofundado da legalidade do produto a ser comprado foi interrompido devido a mudanças na atual gestão estadual. “É necessário aumentar o rigor e ir além de comprovações rotineiras, como o Documento de Origem Florestal (DOF), alvo de fraudes nas regiões onde é emitido”, afirma Gerd Sparovek, presidente do Instituto Florestal e coordenador do GeoLab, na Universidade de São Paulo.
A proposta é a aplicação de tecnologias digitais, como lupa acoplada a celulares na tarefa de identificar de forma segura as espécies nativas estocadas nas madeireiras e confirmar com as informadas nos documentos, reativando o CadMadeira – o cadastro que orienta licitações estaduais na Bolsa Eletrônica de Compras do governo paulista. Como vantagem adicional, após vistorias de produtos nos pátios, coleta de amostras para checagem em laboratório e fiscalização da carga no transporte, as empresas madeireiras podem receber um selo de qualidade que as diferenciam no mercado.
Além de convênios com estados fornecedores para melhorar o rastreio entre origem e destino, a estratégia inclui como principal ferramenta o uso de inteligência artificial, com o cruzamento de dados visando flagrar suspeitas de ilegalidade, em parceria com o Imaflora. Na plataforma Timberflow, desenvolvida pela ONG, os dados do DOF são processados em big data para destrinchar os fluxos de produtos florestais, analisar mercados e subsidiar políticas e decisões de compras.
Estima-se que 38% da produção de madeira do Pará e 37% do Mato Grosso, entre 2018 e 2019, foram ilegais – sem autorização do órgão ambiental, com risco de extração em terras indígenas e outras áreas protegidas. “Ao mesmo tempo, o Brasil tem um déficit de 24 milhões de moradias que pretende zerar até 2050, incorporando compromissos climáticos”, destaca Marco Lentini, coordenador da iniciativa.
Segundo Lentini, o País precisa aumentar em dez vezes a atual área de manejo de madeira, com critérios ambientais, atingindo 25 milhões de hectares em 10 anos, de forma a atender à própria demanda e fazer frente à ilegalidade. “Um boicote internacional só aumentaria o problema, com estímulo ao desmate para fornecimento ao mercado interno”, observa.
Na visão de Carmen Mesquita, assessora técnica do Serviço de Sustentabilidade-EcoCâmara, “precisamos fortalecer o que já existe, utilizando melhores roupagens, como sistemas de compras que trazem especificações técnicas e selos governamentais, a exemplo do modelo paulista”. A medida ajudaria na referência a gestores do interior e regiões de maior dificuldade para a adoção de critérios sustentáveis, além de ajudar no diálogo construtivo para a oferta de soluções pelo mercado. “Devemos mostrar o que queremos para ter alguém que resolva”, diz.
“O processo das compras públicas sustentáveis está muito mais amadurecido”, avalia Mesquita, que há uma década busca desenvolver a agenda na Câmara dos Deputados, desde o marco da Instrução Normativa sobre o tema, publicada pelo Ministério do Planejamento em 2010. Hoje, segundo ela, 79% das aquisições da casa parlamentar têm critérios de sustentabilidade. “Sempre me perguntava por que leis trabalhistas tinham maior valor que as ambientais”, recorda-se a bióloga, agora preocupada com a necessidade de avanços do poder de compra no campo social.
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