O triângulo formado por cobiça, riqueza e (des)ocupação, que está na raiz dos problemas na Amazônia, precisa ser engolido pela Tripla Revolução da produção, do conhecimento e da governança – abordagem necessária para lidar com a complexidade da região
A iniciativa Uma Concertação pela Amazônia tem tido o privilégio de conectar experiências de longa imersão no mundo amazônico com abordagens talvez disruptivas, no mínimo inovadoras. Este artigo mistura um pouco desses “instrumentos”, fundamentais para um concerto tão inédito quanto necessário para se pensar o que é efetivamente a Amazônia para os brasileiros, para o mundo e para os próprios amazônidas.
Aparentemente simples, tais questões exigem respostas com um elevado grau de complexidade e qualidade, as quais têm sérias consequências. Assim, as próximas linhas se fundamentam, articulam e apresentam quatro triângulos e suas diferentes formas e possibilidades, em seus equilíbrios. Certamente não se tratam de triângulos equiláteros – são escalenos, com seus vértices bastante desequilibrados do ponto de vista de amplitude dos ângulos e, por consequência, do tamanho de seus lados.
Grande parte dos desafios da Amazônia tem raiz em uma visão que estreita a percepção do espaço sob uma tríplice ótica – um território rico, desocupado e fortemente cobiçado –, desprezando as seguintes perguntas:
O que esta por trás dessa cobiça? Quem cobiça? De que forma essa cobiça se distribui de acordo com a ambição daquele que a cobiça? Da mesma maneira, quanto à ocupação: parece ser uma corrente e absurda percepção a de que a Amazônia é uma região desocupada, vazia. O que, obviamente, não corresponde a realidade. Entretanto, é ocupada por quem? Como essa ocupação se dá? Onde é mais ou menos intensa? João Moreira Salles nos instiga com o conceito de arrabalde, indicando a forma desordenada e a grande trilha a percorrer. Por fim, quanto à riqueza. Rica? O que é essa riqueza? Riqueza de quê? De minério? De terra? De espaço? E a riqueza da biodiversidade, a riqueza cultural? Qual é essa riqueza? Quem se apropria de qual riqueza? Para que serve, a quem se destina? E aqui se configura o primeiro triângulo: cobiça, ocupação e riqueza.
A forma como esses três elementos se organizam gera um espectro que vai da ilegalidade e desmando total, até a preservação, e no centro disso, como se dão as relações com a cultura, com a natureza, enfim, as relações com a vida. Dependendo de como os ângulos desse triângulo se definem, a cobiça pode levar à hiper ilegalidade, como o que parece prevalecer no momento. Hiper ilegalidade esta que reforça e é reforçada pelo entendimento de riqueza como posse da terra. Terra vazia, desmatada, desocupada, de onde brota garimpo ilegal.
Por outro lado, o mesmo triângulo pode ter uma forma diferente, fundamentada na preservação e conservação. Neste caso, a cobiça é pela manutenção do capital natural da região, da valorização desse capital e do capital cultural. E então fica óbvio que a Amazônia não é um vazio, é ocupada. Ocupada, inclusive, por elementos e valores universalmente estratégicos para humanidade, que contribuem para a reprodução da vida no planeta: biodiversidade, floresta, águas, cultura. Então, dependendo de como esse equilíbrio se organiza, é possível desenhar a ocupação de uma maneira ou de outra. É a opção pela forma desse triângulo que parece ser o grande desafio, o debate relevante sobre esse espaço tão importante para o Brasil e para o mundo.
Navegando entre ilegalidade/destruição e modernidade/preservação, tendo o elemento vital no centro, a forma desse triângulo, originada da cobiça, (des)ocupação e riqueza, desdobra-se em um espectro de dimensões continentais, reforçando a histórica vocação regional para produção de mitos, verdades e mentiras, exigindo ações de comando e controle que, embora absolutamente necessárias, são insuficientes para a superação do reino da violência, impunidade e desigualdade. É preciso mergulhar na complexidade da região, fugindo das dicotomias que tanto nos são apresentadas: inferno verde versus celeiro do mundo; almoxarifado inesgotável versus santuário intocável, e a discussão ainda tão presente hoje: produzir versus preservar.
A forma e a maneira como esse triângulo se organiza desdobra-se nesses mitos que são simplisticamente apresentados como dicotomias, como ambiguidades, esquecendo que existe uma complexidade muito maior do que isso. Há uma sofisticação, uma sutileza, que nos remete a um convite para uma reflexão que relacione essa dura realidade com a abstração de uma visão futura, mais equilibrada, inovadora, e que passa por uma tripla revolução.
Trata-se de revolução que começa pelo conhecimento. É preciso conhecer muito melhor qual é o valor e o potencial destes elementos ligados à riqueza da região, cultural e natural. Conhecimento que traga novas perguntas e rompa com velhas respostas, remetendo ao seu lugar no passado, a visão de que desenvolver é desflorestar. Também é preciso uma revolução pela produção, que atualize o próprio conceito de produção. Produção significa apenas a retirada do patrimônio natural que esta lá e sua substituição por outro tipo de atividade? A produção mais comumente entendida por nós, a produção de manufaturas? Mas, e a produção de chuva? E a produção de uma melhor condição climática para o planeta? E a produção de uma riqueza de biodiversidade imensa? E as condições de reprodução da própria vida no planeta?
Assim, surge um segundo triângulo na nossa frente. Ele se assenta em novos conceitos de produção, fundados nos avanços do conhecimento e sobre como eles são governados. Sim, é necessária também uma nova abordagem sobre como esses novos conceitos são governados, como são apresentados e incorporados pela sociedade do ponto e vista social e do ponto de vista econômico. Mais uma vez, um triângulo que pode ter ângulos e lados diferentemente organizados, sobre o que pesam nossas escolhas.
Mais dois triângulos completam o que quase se aproxima agora de um dos famosos quadros de Kandinsky. O próximo – o terceiro – é um triângulo que serve de base para a chamada abordagem da paisagem, que fundamenta os pensamentos acima nas relações entre as pessoas, o espaço e o tempo: como esse espaço foi sendo transformado, ocupado e moldado pelas pessoas ao longo do tempo. Dentro do componente conhecimento do triângulo anterior, é necessário considerar esses elementos de uma maneira integrada, relacionando as pessoas com a ocupação, com a cobiça e com as riquezas. Como a ocupação se deu no tempo, como o entendimento da riqueza evoluiu no tempo, como esse espaço foi sendo mudado pela cobiça, pela ocupação e pelo conceito da riqueza.
E finalmente, temos o quarto triângulo, que concretiza mais uma vez, nessa forma geométrica, um caminho para lidar com esses complexos desafios. De um lado, os componentes técnicos e científicos, que obviamente são extremamente importantes, a dita racionalidade, que é fundamental. Fundamental, mas não suficiente, visto que limitada. Ao lado dela, juntando um vértice do triangulo, deve estar a sensibilidade. Como as pessoas se posicionam diante desse espaço? Quais são seus sonhos, suas memórias, suas vontades, seus desejos, suas ambições? Quais são suas visões diante dessa paisagem? E, finalmente, a arte, conectando os dois lados desse quarto triângulo. Como a arte traduz tudo isso? Como ela consegue de alguma maneira refletir esses elementos emocionais, sensíveis? Como ela atua na fusão de componentes tão importantes dessa ocupação? Como ela sensibiliza de forma delicada e duradoura visões de mundo?
O triângulo da raiz do problema – cobiça, riqueza e (des)ocupação – precisa ser engolido pelo triângulo da Tripla Revolução: produção, conhecimento e governança, que é uma nova abordagem para lidar com a complexidade. O triângulo das pessoas, do espaço e do tempo sustenta essa revolução e é provocado, traduzido e refletido pelos componentes racionais, sensíveis e artísticos da paisagem. Esse conjunto de quatro triângulos se transforma em um prisma onde os diferentes espaços e povos da Amazônia dão sinais e informações para a construção de um novo paradigma de como a humanidade pode lidar com regiões com um capital natural e cultural tão intenso.
*Simão Jatene, professor e economista, foi governador do Pará (2003 a 2007 e de 2011 a 2019).
**Fernanda Rennó, PhD em Planejamento Territorial – Meio Ambiente e Paisagem pela Université de Toulouse/UFMG, é consultora do Instituto Arapyaú, onde é responsável pelos eixos de Educação e Cultura da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia.
***Roberto Silva Waack é empresário, presidente do conselho do Instituto Arapyaú e integrante da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia