Grandes empreendimentos na Amazônia atropelam etapas e geram impactos socioambientais que não são devidamente considerados. É preciso escuta, visão territorial e planejamento para não se repetir continuamente os mesmos erros
Enquanto o lago da usina de Tucuruí enchia, a fotógrafa Paula Sampaio registrava sons e imagens de um dos maiores exemplos de desastre socioambiental do Brasil, localizado no Pará. No vídeo Lago do Esquecimento, pode-se ouvir ao fundo a trilha sonora da água e frases de quem habitava um lugar que se vê inundado. Nas imagens, um resto de floresta prestes a submergir parece erguer seus corpos na forma de troncos retorcidos. Alguns formatos lembram uma boca pedindo socorro, braços estendidos, colunas curvadas. Outra forma se parece com um pássaro preparando voo, mas sem poder subir ao céu. E um outro remete a um ponto de interrogação: desenvolvimento para quem?
Ao abrir as participações na plenária “As Dimensões nas Infraestruturas na Amazônia”, realizada por Uma Concertação pela Amazônia em 12 de julho, Sampaio pontua que o corpo de cada um de nós é uma espécie de infraestrutura, sensível ao que ocorre em volta. Ela mostra, assim, a dimensão humana do desenvolvimento. Quem vive na Amazônia, mais do que ninguém, sabe o que é existir e resistir nesse lugar. Sente na pele o que é abrir caminhos, usar recursos, ocupar os espaços, transitar.
“Essa ciência existe no cotidiano das pessoas. Elas estão atentas à infraestrutura, porque conhecem a sua própria história. Por isso, podem nos ajudar a entender esse processo”, diz a fotógrafa.
Embora a escuta seja tão necessária, o que prevalece é a falta de diálogo entre quem toma decisões de investimento na região e quem é localmente afetado por elas. O desastre de Tucuruí repetiu-se em Belo Monte, também no Pará, e não há sinais de que não vá se replicar em novas grandes obras na Amazônia – hidrelétricas, rodovias, portos, linhões, ferrovias (leia mais sobre a participação social nas obras de Belo Monte e BR-319).
Não se trata de impedir as obras – ao contrário, muitas vezes são necessárias e desejáveis. Mas, antes de executá-las, é preciso inseri-las em um contexto maior: a concepção de um modelo de desenvolvimento de longo prazo para a Amazônia, considerando as peculiaridades regionais e o amplo debate entre os diversos atores envolvidos. Somente depois disso se deve planejar as obras de modo que estas evitem os riscos socioambientais e aproveitem as oportunidades da chamada infraestrutura verde (saiba mais aqui). O passo seguinte é buscar os licenciamentos e executar as medidas compensatórias dos impactos negativos que não puderam ser evitados.
O que ocorre no Brasil, entretanto, é um atropelo de etapas. Começa-se praticamente pelo fim e, no lugar de debate, predomina o embate. A consultora Ana Cristina Barros, da Climate Policy Initiative (CPI), explica que a fase de planejamento de uma grande obra teria que se dar de oito a dez anos antes do licenciamento (a especialista explora esta questão no retrato temático sobre Infraestrutura elaborado para Uma Concertação pela Amazônia).
Esse processo, segundo Barros, deveria seguir uma linha reta: planeja-se, faz-se o estudo de viabilidade e depois se encaminha para o projeto básico. Uma decisão deveria levar à outra, todas demarcadas por atos públicos, referendados e com documentação técnica na internet. Mas, na prática, as etapas se embolam. “Tem estudo de viabilidade acontecendo ao mesmo tempo do licenciamento e do edital do leilão. Essa confusão é propícia à discricionariedade – para não falar corrupção”, diz.
Segundo José Carlos Carvalho, que foi ministro do Meio Ambiente na gestão Fernando Henrique Cardoso, analisa-se no Brasil a viabilidade técnica, tributária, financeira e econômica de um projeto. Mas, na fase durante a qual se está decidindo fazer o empreendimento, a questão ambiental é solenemente ignorada.
“Com isso, o custo ambiental vai aparecer no ‘balcão’ do licenciamento ambiental, o que leva às famosas condicionantes. Um projeto com 100, 180 condicionantes em uma licença prévia é algo que temos de repensar. Isso não podia ocorrer nessa fase, e sim no projeto executivo do empreendimento”, defende o ex-ministro.
Carvalho propõe uma autocrítica, no sentido de criar um novo ciclo de política ambiental com foco na sustentabilidade. “Isso passa pela avaliação de impacto ex-ante“, afirma. Para ele, o Brasil tem uma gestão ambiental muito apoiada em políticas de comando e controle e sem vínculo forte com a sustentabilidade.
Nave espacial
Diante desse quadro, Ana Cristina Barros compara os projetos de infraestrutura a uma nave espacial: quem está dentro não conhece o local onde vai aterrissar, e quem está no território não sabe o que é, de onde veio ou o que vai acontecer quando ela chegar. “O Brasil precisa de investimento em infraestrutura. Mas é necessário, antes de tudo, que os projetos sejam bons”, diz. No caso, bons para a sociedade como um todo, e não para atender a interesses de grupos específicos. Mas como conceituar o que é um bom projeto de infraestrutura?
Segundo Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, a visão sobre infraestrutura tem passado por mudanças importantes no contexto global. Os bons projetos são aqueles que se voltam a dois enfrentamentos: o das desigualdades e o da mudança climática. “Entender a infraestrutura como um mero suporte do crescimento econômico é uma visão que está no retrovisor”, diz.
No Brasil, a visão ainda ultrapassada abre espaço para entendimentos distorcidos. Barros cita, por exemplo, o licenciamento de uma estrada: o projeto diz que a redução no custo de transporte trará benefícios para um estado inteiro mas, na hora de calcular os riscos, limita-se a dizer que o impacto restringe-se a uma faixa de 2 quilômetros ao longo do trajeto. Com isso, ela questiona por que os benefícios geralmente são vistos como de amplo alcance e os riscos, como localizados.
Ricardo Abramovay menciona o trabalho que o professor da Universidade Federal de Minas Gerais Raoni Rajão acaba de fazer para o Tribunal de Contas da União, a respeito da corrupção em grandes empreendimentos, no qual sublinha que os responsáveis pelos projetos padecem de um viés otimista. “Eles tendem a subestimar as dificuldades e a superestimar os fatores positivos de ordem econômica e financeira”, diz o professor da USP, lembrando que esse fenômeno é global.
Para Ana Cristina Barros, esse tipo de distorção impede saber quanto de fato a obra custa, pois deixa de considerar todas as externalidades socioambientais. “E também dificulta o entendimento sobre o território, suas vulnerabilidades, potencialidades, a governança que tem e a que poderia ter”, diz.
A distorção leva ainda a uma irracionalidade no processo: após levantar recursos para executar a obra de infraestrutura, é preciso buscar dinheiro da filantropia e da cooperação internacional de modo a mitigar o desmatamento e outros impactos causados por projetos mal planejados. Barros vê como um bom exemplo de escuta do território e de planejamento o que vem ocorrendo no Chile, por meio dos Acuerdos Voluntarios de Preinversión (saiba mais aqui).
Por que não se planeja antes?
Além da falta de uma visão ampla sobre modelo de desenvolvimento territorial e da histórica imposição de decisões no Brasil, sem a devida escuta das partes vulnerabilizadas, há mais uma razão para a falta de planejamento prévio, segundo Barros.
Ela explica que avaliar previamente um projeto onera os custos. “Quando se antecipam os impactos, é preciso investir em prevenção, e isso se transforma em custo do projeto. O G20, em 2019, definiu como primeiro princípio de um projeto de infraestrutura de qualidade fazer a total contabilidade dos custos ao se avaliar um projeto. Se conseguíssemos um capital hoje para garantir que não haverá desmatamento na construção de uma estrada, esse custo poderia ser incluído na hora de desenhar a concessão e, então, recuperar para o Estado o capital investido”, diz. Segundo ela, a Climate Policy Initiative pretende fazer um piloto junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará que permita a antecipação ambiental dos custos.
O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB-PA), reconhece a necessidade de análise da governança, social e ambiental nos projetos de infraestrutura. “Digo isso porque acabamos de assistir a Belo Monte, que continua causando diversos impactos ambientais para região do Xingu, atingindo populações tradicionais e indígenas, e provocando também impacto social na região de Altamira”, diz ele, que foi ministro da Integração Nacional na gestão Michel Temer, e da Pesca e dos Portos na gestão Dilma Rousseff.
Sobre a usina de Belo Monte, Barbalho comenta: “Se naquele momento [da construção da obra] festejamos a criação de 4 mil empregos, hoje temos uma cidade como Altamira que duplicou a população e enfrenta problemas sociais gravíssimos, sendo o município mais violento do Brasil”. Ele ainda pontua que o próprio estado do Pará pouco usufrui do desenvolvimento gerado por Belo Monte. “Nós não nos furtamos de colaborar com o País, mas a região não tem benefícios da oferta energética que pudessem eventualmente agregar valor para a competitividade do estado do Pará”, afirma.
O governador defende que o Pará não fique a reboque de projetos sem debate anterior com a sociedade e preparo prévio do ambiente e da sociedade local. “Temos conversado com a liderança da Secretaria de Meio Ambiente, em parceria com a Climate Policy Initiative, não só para selecionar os 270 projetos na carteira de projetos do estado, mas para saber se estão enquadrados nesse novo conceito”, diz.
A seu ver, o Brasil não aprendeu com a experiência de Tucuruí e repetiu os problemas em Belo Monte. “Não queremos ser entrave para grandes projetos, mas precisamos aprender com os erros do passado, e fazer um planejamento que considere os impactos de cada obra, como pressão populacional e ocupação”, afirma. A demanda por infraestrutura no Pará, de acordo com o governador, não se restringe a portos, rodovias, aeroportos, mas também a questões básicas como falta de saneamento e dificuldade na universalização de água de qualidade.
Infraestruturas naturais
Especialmente no que se refere às cidades amazônicas, Abramovay ressalta a importância das infraestruturas naturais associadas à infraestrutura cinza (ligada a obras de engenharia civil) para gerar benefícios sociais. E chama atenção para o valor ético-normativo da natureza que, além de ser a fonte da vida – motivo mais que suficiente para ser protegida – tem utilidade, pois absorve carbono, purifica a água, garante energia, produz alimentos etc.
O professor lembra que a mais importante infraestrutura da própria Amazônia – ou seja, o que faz com ela exista –, são suas florestas e seus rios. “Manter e fortalecer essa infraestrutura requer muita ciência e a base dessa ciência existe na Amazônia, na forma de institutos de pesquisa e universidades”, diz.
Na visão de Abramovay, a infraestrutura verde e as Soluções baseadas na Natureza (SbN) são capazes de trazer importantes soluções. Ao mesmo tempo, ele menciona trabalhos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, segundo os quais os técnicos em geral são avessos a incorporar as SbN em projetos de infraestrutura por falta de conhecimento e formação. Com isso, acabam repetindo velhas fórmulas e usando as planilhas que sabem manejar.
Isso trava a inovação que pode advir do uso sustentável da natureza, necessária para lidar com a infraestrutura na parte urbana da Amazônia, onde vivem quase 30 milhões de pessoas. Ele ressalta que as cidades amazônicas estão sendo impermeabilizadas em grau perigosíssimo, enquanto ainda preferem usar cimento em vez de madeira na construção civil, desperdiçando oportunidades valiosas relacionadas ao plantio de nativas.
Jorge Viana, ex-governador do Acre pelo PT (1999-2007), lembra que grande parte da riqueza gerada historicamente nos estados amazônicos adveio de apenas duas árvores: a castanheira e a seringueira. Imagine-se, então, o potencial de uma floresta inteira.
Segundo Viana, enquanto o mundo está entrando na era 5.0, o Brasil destrói a riqueza da biodiversidade – o maior dos seus ativos –, para explorar terra, minério e insumos básicos. “Se eu fosse governador hoje, minha maior prioridade seria a conectividade, com fibra ótica, para essa juventude se inserir em um processo novo”, diz.
Abramovay concorda que, para uma economia da sociodiversidade vibrante emergir, é necessário haver internet de qualidade, energia renovável descentralizada, aproveitamento inteligente dos rios, mobilidade viária e sistemas de informação. Além disso, como pontua Everton Vargas, embaixador que atualmente assessora o governador do Pará, é preciso haver uma política de infraestrutura voltada para a Amazônia e suas especificidades.
Pacotes prontos, impostos sem esse entendimento, sem diálogo e sem planejamento, são a receita certa para o erro. A fotógrafa Paula Sampaio, mineira que migrou para o Pará e hoje se entende como uma amazônida de coração, tem o mesmo pensamento. “A Amazônia não é um lugar qualquer. Algumas coisas que servem para outros lugares não funcionam aqui. A gente que vive na Amazônia sabe disso”, diz.
De novo, ela conduz este debate para a dimensão humana. “A infraestrutura está na gente e é vida, mas a forma como não se estrutura pode ser a morte”, declara. Sampaio relata a história de uma das tantas personagens que conheceu ao longo dos caminhos que cortam a região. A personagem conta que sua mãe morreu “de morte morrida”: “Eu a levei três vezes para o hospital de Imperatriz [no Maranhão], mas ela foi afinando e secando. A gente não sabe por que nasce e do que morre”. No Lago do Esquecimento, os corpos da floresta também afinaram e secaram para dar lugar a Tucuruí. Por quê? Para quê? Quem se lembra?
“Espero que tudo isso não vire uma savana e que a gente encontre as soluções, para festejar e para lutar!”. Como se tivesse sido combinado, a fala de Paula Sampaio é imediatamente seguida pelo som de um trovão da floresta tropical. A natureza parece ter ouvido e quis registrar também o seu recado estrondoso.