A abordagem da paisagem observa, interpreta e revela o mundo integrando dados técnicos, percepções, desejos e anseios da comunidade local e a arte. Não se trata de algo intangível ou teórico, mas de uma visão estruturada que tem como ponto de partida a interação entre espaço, tempo e pessoas. Esse olhar ajuda a lidar com as ambiguidades de um território como o amazônico
Toda iniciativa que busca um alinhamento com o mundo contemporâneo precisa definir uma visão capaz de lidar com a relação indissociável entre homem natureza. A complexidade que nos cerca impõe limites para a racionalidade, exigindo a operação também de componentes sensíveis, como os sentimentos, a memória e a percepção das pessoas que vivem ou usam determinado espaço. A abordagem da paisagem faz isso, observa, interpreta e revela o mundo integrando dados técnicos, percepções, desejos e anseios da comunidade local e a arte. Não se trata de algo intangível ou teórico, mas de uma visão estruturada que tem como ponto de partida a interação entre espaço, tempo e pessoas.
As pessoas são agentes e testemunhas das transformações do espaço ao longo do tempo. Transformamos por necessidade, para obter matérias-primas e alimentos ou para construir nossas casas, por exemplo. Transformamos porque desejamos uma melhor qualidade de vida ou para aumentar nossa renda, ou até mesmo involuntariamente.
Seja como for, essas transformações sofrem reações do meio. Cria-se um processo dinâmico, de uma interação contínua de ação-reação com impactos variados ao longo do tempo (positivos ou negativos). O espaço, palco de encontros e de histórias é o produto dessas inter-relações. As transformações do espaço ao longo do tempo trazem efeitos do passado para o presente e, de alguma forma, indicam (forjam) caminhos para o futuro. E é na paisagem que todas essas dinâmicas ficam registradas.
Na linguagem coloquial o termo está comumente associado a uma imagem bucólica em um quadro, mas é mais do que isso. Abordar um território a partir da paisagem significa trazer à tona não só os fatos ou o que é quantificável e visível, mas as relações que se constroem ali, que são influenciadas e que influenciam, ao longo do tempo, características físicas e culturais. Não se trata de uma forma de gestão, mas de uma abordagem, uma visão de mundo possível a partir de três lentes, um tríptico sustentado por: racionalidade, sensibilidade e representação.
A racionalidade apresenta a paisagem de forma técnica, científica e política. É realizada por especialistas de áreas transdisciplinares que analisam dados sobre as dinâmicas do território. A partir desses dados é possível desenhar uma série de contextualizações compostas por características geográficas, ambientais, históricas, socioeconômicas e político legais (regulamentações e regras tácitas que regem as ações das pessoas no território).
A sensibilidade apresenta a paisagem a partir do olhar local. As pessoas descrevem como se relacionam com o território a partir do que sentem, do seu imaginário, do que existe ali ou não mais, mas que pode ser evocado pela memória em suas falas. Por meio dessas falas, conseguimos entender como viam este ambiente no passado, como o veem no presente e como o projetam no futuro, através de descrições, demandas e desejos. Essa lente retira a paisagem de uma simples imagem em um quadro e passa a visualizá-la como um quadro de vida, fruto da organização socioespacial e do sentido que seus habitantes quiseram e querem dar a um território.
A representação usa manifestações artísticas como fontes de informação sobre as paisagens. A arte é fundamental porque carrega uma delicadeza, é sincera e permanente, seu impacto é inesquecível e compartilhado. Existe uma potência muito grande em pinturas, fotografias, relatos literários, poesias e músicas nas quais as pessoas elaboram representações sobre o espaço nos tempos presente, passado e futuro.
Como um prisma, baseado nas dimensões tempo/espaço/pessoas, e nas lentes racionalidade/sensibilidade/representação, a abordagem da paisagem se baseia numa visão dinâmica e contemporânea que enxerga as pessoas dentro das paisagens, superando divergências entre objetivo e sensível, percebido e vivido, individual e coletivo, rural e urbano. As pessoas dependem de suas paisagens para sua alimentação, sustento, renda, cultura e identidade, e isso precisa ser tratado com cuidado. É possível combinar conservação, desenvolvimento e bem-estar humano, mas para isso é preciso considerar a relação homem-natureza a partir de uma visão sistêmica e indissociável.
Essa abordagem traz um diferencial em estratégias e processos da gestão corporativa. Mas como aterrisar essa discussão? O primeiro passo é a definição do recorte territorial de interesse. Logo em seguida, quase simultaneamente, é preciso ter claro desde quando e até quando esse espaço será analisado. Com essas duas definições em mãos, é possível priorizar cada uma das três lentes da abordagem da paisagem.
Mesmo que inicialmente o triângulo composto por racionalidade, sensibilidade e representação seja um triângulo escaleno, ou seja, com lados de diferentes tamanhos de acordo, por exemplo, com os dados à disposição ou com a estratégia do momento, é importante manter os vértices conectados. A abordagem é capaz de dar mais ênfase em um ou em outro componente em diferentes fases, mas tem como meta a aproximação do tríptico a um triângulo equilátero, com todos os lados iguais.
Uma ampla análise de lacunas, seguida de um esforço de consolidação analítico, é recomendável para indicar o que já existe, o que está disperso e o que falta. Nessa fase é importante estudar, aprofundar e qualificar o que é fundamental para se atingir os objetivos definidos.
E como e o que será feito para preencher essas lacunas? Uma ação em rede ou mais individual? Essa é outra pergunta a ser respondida para, finalmente, definir-se qual tipo de intervenção será realizada.
Amazônia
Como exemplo, a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia vem atuando com um olhar que se aproxima das possibilidades que a abordagem da paisagem oferece para lidar com as complexidades de um território repleto de ambiguidades. A opção foi agir em rede, sendo hoje esse conjunto de pessoas, instituições e empresas, uma das forças da iniciativa. Mais de 200 lideranças engajadas navegam em um espaço democrático para que as dezenas de iniciativas em defesa da Amazônia se encontrem, dialoguem, aumentem o impacto de suas ações e gerem novas propostas e programas em prol da floresta e das populações que vivem na região. Contemplar complexidade significa aceitar que ambiguidades e contradições fazem parte do jogo, colorem as paisagens.
Por tudo o que foi dito aqui, a Amazônia não pode ser pensada apenas de forma racional. Por isso, essa iniciativa dá um grande peso ao esforço referente à lente sensível e artística. A arte e as representações deste e sobre este espaço estão presentes em todas as ações e produtos realizados, desde inserções de falas de artistas locais sobre os temas discutidos, passando pelo cuidado em amarrar os textos produzidos com arte, até a criação de grupos de trabalho que possuem pautas específicas sobre cultura. A arte ultrapassa aqui o aspecto ilustrativo ou de entretenimento, ela é também fonte de informação, informação riquíssima e viva, sensível, que ajuda a materializar as discussões e ações.
Atualmente, os dados racionais são sem dúvida mais encorpados, mas, mesmo assim, encontram-se dispersos e em profundidades diversas. Essas lacunas precisam ser preenchidas, e mais, além de gerado o conhecimento precisa ser disseminado. Conectar, integrar, criar sinergias e consequentes alavancagens é fundamental. A iniciativa Uma Concertação pela Amazônia procura fazer isso acontecer.
Junto com todas essas informações que são continuamente atualizadas, o componente sensível, seja através de manifestações artísticas ou da aproximação de visões locais de habitantes do território, sempre fez parte da identidade da Concertação. E isso tem a ver com a aplicação da abordagem da paisagem.
A cultura, entendida como modos de vida, e as manifestações artísticas não podem ser tratadas e utilizadas somente para ilustrar ou entreter, esses elementos sensíveis são fundamentais para se pensar o futuro dessa região, e estão sendo cada vez mais reconhecidos como um valor e inovação da rede, como uma grande contribuição para várias frentes da iniciativa, desde movimentos de natureza econômica, bioeconomia, até narrativas, construção de agenda política etc.
Abordar a Amazônia com o prisma da paisagem aumenta as possibilidades de se tratar com o devido respeito esse território, de subsidiar o desenho de políticas públicas e aproximar a Amazônia dos brasileiros que não vivem lá, dos habitantes do mundo que se interessam pela região, da geopolítica global associada aos bens naturais e culturais crescentemente discutidos no âmbito da mudança climática.
A construção de uma visão para a Amazônia deve levar em conta aspectos racionais, sensíveis e a arte. Para consolidar um imaginário complexo, que dê aos brasileiros orgulho de pertencer ao país que abriga essa região tão rica, é preciso uma abordagem que vá além do racional, que seja sensível, com o olhar permanente de quem vive na região e que valorize as múltiplas leituras que a arte proporciona.
*Fernanda Rennó, PhD em Planejamento Territorial – Meio Ambiente e Paisagem pela Université de Toulouse/UFMG, é consultora do Instituto Arapyaú, onde é responsável pelos eixos de Educação e Cultura da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia.
**Roberto Silva Waack é empresário, presidente do conselho do Instituto Arapyaú e integrante da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia