[Grafite do arteativista Raiz Campos]
Em ano de grande importância política, integrantes de Uma Concertação pela Amazônia debatem estratégias para posicionar a região na pauta eleitoral
Por Amália Safatle
Pontilhado por datas significativas, como os 30 anos da Rio-92 e os 50 anos da Conferência de Estocolmo, este ano ganha contornos ainda mais relevantes no Brasil por conta das eleições para a presidência da República, governos estaduais, Congresso Nacional e assembleias legislativas. A escolha dos novos incumbentes será definidora dos rumos de um dos elementos mais estratégicos para o desenvolvimento do País: seu ativo socioambiental, em especial a Amazônia.
A Amazônia encontra-se à margem das decisões políticas de conservação e desenvolvimento, embora ocupe dois terços do território e exerça papel fundamental para regular o regime de chuvas no Brasil e o clima em todo o mundo, sem falar em sua riqueza biodiversa e sociocultural e a oportunidade de dar as bases para o florescimento da bioeconomia.
Persiste ainda um desconhecimento, inclusive entre atores públicos, sobre quão estratégico para o País é o seu uso sustentável. Prevalece uma visão de curto prazo que resulta em índices crescentes de destruição. O mais recente estudo sobre a Amazônia publicado na revista Nature mostra que 75% da floresta está perdendo resiliência desde o começo dos anos 2000, ou seja, possui menor capacidade de se recuperar após agressões como desmatamento, incêndios e períodos de seca – o que tem acontecido notadamente próximo a áreas urbanas e cultivadas.
Esse quadro é agravado pela intensificação do desmatamento no bioma nos últimos três anos: 56,6% maior entre agosto de 2018 e julho de 2021 que no mesmo período de 2015 a 2018, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Conservar a região amazônica exige, obviamente, uma estratégia de ação ampla e duradoura que não se esgota neste ano. Mas, a depender dos resultados eleitorais, a floresta continuará sob ataque por mais quatro anos, período longo demais para um bioma à beira do ponto de inflexão. Se ultrapassado o tipping point, perderá suas características de floresta tropical úmida, transformando-se em savana. As perdas, irreversíveis, vão se estender a todos – populações locais, a sociedade brasileira e o mundo.
Diante desse cenário nacional e global, o que fazer para envolver a classe política e os eleitores nos meses tão decisivos que antecedem as eleições? De que forma engajar a população? “Como posicionar a Amazônia no debate eleitoral de 2022” foi o tema em foco na primeira plenária da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, que reuniu 180 participantes virtualmente em 14 de fevereiro, com mediação do jornalista Fernando Gabeira.
“Pela sua importância, a Amazônia deveria ser central no debate eleitoral”, afirma Roberto S. Waack, membro fundador da Concertação e presidente do conselho do Instituto Arapyaú. Diversas vozes vão na direção que a floresta será foco das preocupações internacionais e, por isso, deveria estar no centro da política externa brasileira. Gabeira, por exemplo, avalia que o tema mais importante visto pelo mundo nas eleições brasileiras é a Amazônia. Em fala especial direcionada ao grupo da Concertação, o fotógrafo Sebastião Salgado, reconhecido, internacionalmente, faz um apelo para que se vote somente em candidatos com programa de proteção da biodiversidade e de comunidades indígenas.
“A sociedade brasileira quer estar de pé com a sua floresta de pé”, afirma a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira. Estancar o desmatamento, segundo ela, é o passo necessário para realinhar o Brasil com a contemporaneidade. A ex-ministra ainda lembra que o desmatamento na Amazônia não é só crime ambiental, mas está fortemente associado à corrupção, uma vez que envolve uma série de ilegalidades, violências e práticas criminosas. “Esse é um valor que a classe média brasileira precisa entender: desmatar a Amazônia é praticar a corrupção”, diz. Sua proposta é aproveitar o espaço inovador de gestão multistakeholder da Concertação para que a sociedade civil ofereça ao próximo governo democraticamente eleito uma estratégia de combate e enfrentamento do desmatamento, incluindo o Cerrado.
Entre as estratégias debatidas pelos membros da Concertação para posicionar a Amazônia no debate eleitoral, estão focar em temas prioritários de acordo com urgência e relevância; formar alianças com atores-chave; trabalhar continuamente a informação e formação dos políticos sobre temas da Amazônia; engajar os eleitores por meio de ações efetivas de comunicação; e apresentar a Amazônia como uma fonte de soluções. Além disso, será preciso mostrar à classe política e à população em geral que assuntos ligados a educação, segurança, economia, saúde, clima e desmatamento se relacionam de forma profunda. Ou seja, não se trata apenas de proteger uma floresta milhares de quilômetros distante da porção centro-sul do País.
Dois assuntos já se mostram prementes. Um deles é a chamada Lei da Grilagem, que tramita no Congresso e, se aprovada, pode anistiar invasões de terra. “Se passar, transfere a grileiros uma área equivalente ao estado de Minas Gerais, e serão necessários de 20 a 30 anos para corrigir os danos”, alerta Adalberto Veríssimo, coordenador do projeto Amazônia 2030. O outro assunto diz respeito à segurança de ativistas que estão na linha de frente e já relatam uma intensificação de ataques neste ano.
Veríssimo vê neste momento a necessidade de uma grande aliança de empresas dos setores de mineração, pecuária, agricultura e energia que estejam fazendo as coisas certas. “Temos de criar uma clivagem entre os ilegais e aqueles que operam dentro do marco legal e estão a fim de desenvolver a Amazônia. Há divergências nesse grupo também, mas hoje são menores diante da gravidade que estamos enfrentando”, diz.
Além de envolver os candidatos e coordenadores de campanha para o debate, Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS) ressalta a importância de se atingir os eleitores. “Precisamos fazer uma grande onda comunicacional”, conclama. Segundo ela, essa onda já está sendo montada com a participação de aproximadamente 100 organizações, das quais fazem parte o próprio iCS e a Concertação. Uma das estratégias é trabalhar junto a audiências específicas, por exemplo, evangélicos, católicos, jovens, para que votem pela Amazônia.
“Os bons precisam se unir”, diz o arteativista Raiz Campos, que busca sensibilizar o grande público por meio de seu grafite. Criado em uma área de mineração dentro de uma reserva indígena, e atualmente vivendo em Manaus, o artista conta, emocionado, que já viu um morro de floresta inteiro desaparecer. Hoje, além de propagar a mensagem ambiental por meio tão democrático e acessível como o grafite, promove painéis e oficinas com crianças.
Mas a necessidade de alfabetização ambiental vai muito além das crianças. “É impressionante a dificuldade de compreensão mínima, entre os quadros políticos, sobre a Amazônia e a sua importância”, avalia Veríssimo. “Claro que, após conversas repetidas, percebemos uma melhora, mas o que fazemos é quase uma alfabetização básica sobre a Amazônia.”
Atuação do Legislativo
Há muito trabalho pela frente, considerando também a atuação do Legislativo. “O Congresso tem sido conivente com uma série de retrocessos”, avalia Mônica Sodré, diretora executiva da Raps, uma rede pluripartidária de políticos no Brasil. Além da questão da grilagem e regularização fundiária, há tentativas de enfraquecimento do licenciamento ambiental, de liberação de mineração, e potencial mudança na demarcação de Terras Indígenas.
Segundo ela, estudos da Raps mostram que não há na Amazônia Legal deputados federais olhando para a dimensão nacional que a região possui. “Tratam a Amazônia segundo seus interesses territoriais e eleitorais. Além disso, falta ocupar o debate público, inclusive nas redes sociais. “Fomos ver quem está falando da Amazônia no Twitter, por exemplo. No top 10, por alcance, vimos apenas dois políticos: [o vice-presidente] Hamilton Mourão e [o ex-ministro do Meio Ambiente] Ricardo Salles”, diz Sodré.
A diretora da Raps diz que é necessário, sim, trazer os partidos políticos para essa discussão. Ela explica que os partidos são importantes para organizar a eleição e também a forma de distribuição do poder na Câmara dos Deputados. Além de levar a agenda para os candidatos, Sodré afirma que é necessário apoiar lideranças políticas que vão surgir daqui a dois, quatro ou oito anos. “Trata-se de identificar no território amazônico quem pode despontar no futuro, e fazer um investimento de longo prazo nessas pessoas”, complementa.
Nessa “concertação política”, o empresário Pedro Passos, defende uma nova governança específica para a Amazônia. Ele vê o meio ambiente sendo tratado de forma fragmentada por diversos órgãos de diferentes ministérios, enquanto no Reino Unido e em outros países, o assunto ambiental está ligado diretamente à alta instância decisória, responsável por coordenar as ações.
Passos também enfatiza o aspecto da Amazônia como solução para o desenvolvimento brasileiro na direção da economia de baixo carbono. “A Amazônia é uma parte fundamental dessa estratégia, por exemplo, por meio da restauração de áreas degradadas, para gerar créditos de carbono. O Amazônia 2030, inclusive, acaba de publicar relatório que mostra oportunidades de restauração em larga escala.
Mas para que o Brasil avance na geração de créditos de carbono, o Brasil precisará desenvolver de forma mais robusta o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), como forma de remunerar produtores que viviam da ilegalidade. É o que pensa o professor da UnB Eduardo Viola. “O pagamento tem que vir dos governos federal e estadual, na forma de taxpayer money, ou seja, com a contribuição de todos nós via pagamento de impostos”, diz. Mas o uso de um instrumento econômico como PSA, em sua visão, deve ser acompanhado de políticas efetivas de comando e controle, com repressão à ilegalidade, para que as atividades legais consigam prosperar. Viola vê hoje na Amazônia uma situação mais difícil do que em 2005 a 2012, período em que o Brasil experimentou um maior controle de desmatamento.
Criminalidade
De fato, o Instituto Igarapé mostra que o chamado crime ambiental organizado na Amazônia se tornou poderoso, enquanto a presença do Estado é baixa. Para Denis Minev, diretor-presidente do Grupo Bemol, o problema amazônico é sistêmico e leva a região a andar para trás: a pobreza puxa danos sociais e ambientais que se retroalimentam e levam a problemas de criminalidade.
Na última década, a taxa de mortes a cada 100 mil pessoas na região Norte cresceu 47%, atingindo especialmente as mulheres, como mostra a Plataforma Eva, do Igarapé. O Acre é o estado com maior violência sexual em 2019, enquanto Roraima apresenta o maior índice de homicídio de mulheres em 2018. Dados do Exército Brasileiro mostram um número quase três vezes maior de registro de armas de CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) nos estados de Rondônia, Roraima, Acre e Amazonas, enquanto o número de operações com flagrantes de violência mais que duplicou entre 2016 e 2021, segundo recente estudo lançado pelo instituto.
“Buscamos tornar visível o nexo entre insegurança e destruição da floresta’, diz Laura Waisbich, pesquisadora sênior do Igarapé, instituto que entende a segurança como multidimensional, ou seja, pressupõe interligação da segurança climática, humana, pública, climática. “Pensar em segurança na Amazônia é pensar em proteger pessoas, meio ambiente e habitantes do planeta”, diz Waisbich.
Segundo a pesquisadora, as economias ilícitas (extração ilegal de recursos naturais, como madeira, ouro, grilagem de terras e atividades agropecuárias com passivo de desmatamento) movimentam ecossistemas de criminalidade, que vão além do crime ambiental e envolvem dimensões financeiras, administrativas, tributárias, tráfico de drogas e de pessoas.
“Não se trata de criminalizar o ‘peixe pequeno’, que atua na ponta da cadeia e operacional. Este precisa de desenvolvimento humano e socioeconômico para sua inclusão social”. Waisbich explica que o foco está nos atores grandes, sobretudo os responsáveis pelo financiamento de crimes e da lavagem de dinheiro, e que nem se encontram no espaço amazônico; estão no Sul, no Sudeste, ou até em outros países. “Por isso, os candidatos devem adotar agendas e planos de metas multidimensionais, com sistemas de prevenção e de ações coordenadas”, afirma.
Ligando os pontos
Quando esteve em Manaus, há quatro anos, a presidente executiva do movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz, avistou uma coluna de fumaça no céu. O secretário estadual de Educação explicou o que a fumaça significava: “Isso é evasão de alunos. Eles deixaram a escola para fazer a venda de terrenos para grilagem”. Ou seja, vendem a madeira e “limpam” o resto da mata com fogo.
Esse exemplo didático ajuda a demonstrar o grau de interdependência entre saúde, ambiente, educação, desmatamento e povos indígenas que existe na Amazônia. “Por isso, temos de trabalhar para além de agendas individuais e buscar as intersecções para não haver cada um levantando a sua bandeirinha. Na verdade, precisamos de uma agenda sistêmica para oferecer uma visão de país que pare em pé”, afirma.
A saúde, por exemplo, é influenciada pelo desmatamento, que causa doenças respiratórias, e aumenta a infecção da população indígena. Tudo isso leva a impactos na aprendizagem. “A saúde não é uma caixinha fechada, e sim codetermina e é codeterminada por diversos fenômenos”, diz Arthur Aguillar, diretor de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps).
Segundo o Ieps, nenhum estado da Amazônia Legal está acima da média brasileira em termos de expectativa de vida. Maranhão, Roraima e Rondônia apresentam quatro anos de defasagem. Além disso, há uma diferença na trajetória, com expectativa de vida crescendo menos que no País. Aguillar aponta três fatores: prevalência de doenças infecciosas na população entre 0 e 4 anos, alta prevalência de homicídios e acidentes de trânsito na população entre 15 e 39 anos, e um salto nas doenças crônicas como diabetes, hipertensão e câncer na população acima de 50 anos. Ele observa que isso não se deve tanto a questões comportamentais, mas sim a um sistema de saúde mais precário, e acesso mais difícil a equipamentos e a médicos.
Indicadores como esses revelam uma atenção menor para com essa imensa parte do território nacional. Há uma desatenção também por parte da juventude brasileira. “Nem sempre a Amazônia é vista como prioridade, especialmente para quem mora distante e tem outras questões urgentes”, diz Karina Penha, mobilizadora na organização de direitos humanos e socioambientais Nossas.
“Quando penso em juventudes periféricas, como fazer com que se importem e queiram participar desse debate sobre a Amazônia?”, questiona. Ela acredita que o olhar interseccional pode contribuir nesse sentido, pois “vai trazer todos os sistemas de opressão para esse discurso”, diz.
Idealizadora do Programa de Ativismo Climático para Juventudes Amazônicas (Muvuca) e integrante do Grupo de Trabalho de Juventudes da Concertação, Penha observa nos últimos três anos o fortalecimento do movimento global da juventude, posicionando o jovem como parte da solução para o mundo. O desafio, no entanto, é aterrissar em ações práticas, a começar pela participação do jovem no processo eleitoral. “Nas últimas eleições, mais de 90% das pessoas de 18 a 24 anos que poderiam votar não votaram”. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, apenas 10% dos jovens de 16 e 17 anos, aptos a votar, tiraram o título até agora, a sete meses da eleição.
É um espaço curto de tempo, mas ainda há uma janela de oportunidades para processos de conscientização e engajamento partindo dos mais diversos atores dessa grande rede.