Cooperativas e associações de catadores buscam novos espaços e negócios na gestão de resíduos urbanos, em parceria com empresas que precisam avançar nas metas ESG
Por Sérgio Adeodato _ Fotos André Pessoa
No antigo Lixão da Estrutural, no Distrito Federal, a catadora Aline Sousa da Silva garimpava resíduos da capital brasileira e dos órgãos de poder decisório sobre o funcionamento e a vida do País. Em condições precárias, a atividade reunia centenas de famílias na área, desativada há quatro anos para ceder lugar a um aterro sanitário. Depois, chegou o Complexo Integrado de Reciclagem – uma estrutura mecanizada digna do novo perfil econômico, ambiental e social dessa antiga e numerosa força de trabalho que se profissionalizou. A trajetória da catadora é retrato deste momento. Hoje à frente da rede Centcoop, reunindo 21 organizações e mais de mil catadores e catadoras, Silva rompeu estigmas e tornou-se líder de negócios: “A conquista por espaços exige discutir – com propriedade – leis, contratos e demandas de mercado”, afirma.
“O empoderamento vem do desejo de ser um espelho para nossa categoria na busca de respeito pela sociedade”, completa a liderança, durante a live “O Novo Papel dos Catadores na Política Nacional de Resíduos Sólidos”, na série Diálogos Coca-Cola para Sustentabilidade, em parceria com a Página22. Além de um panorama do setor, o objetivo foi debater as atuais perspectivas da inclusão socioprodutiva na reciclagem, diante da necessidade de conexões e ações coletivas frente as crescentes demandas sociais e ambientais (acesse o webinar aqui).
“Os desafios são muitos e estamos preparados”, enfatiza Silva, com planos de novos contratos para ampliar a coleta seletiva nas cidades do Distrito Federal e expandir a produção da central de triagem, que hoje reúne 450 catadores e opera com 20% da capacidade, processando mais de 2 mil toneladas mensais de resíduos. “É preciso ousadia para verticalizar e agregar valor”, diz. Ela representa a terceira geração de uma família de catadores e atualmente faz graduação em Direito para reforçar as ações e dar saltos mais altos, também como liderança feminina.
As mulheres compõem a maioria dos postos de trabalho nas cooperativas, mas há muito a avançar na igualdade de gênero. Além da questão da diversidade, a maior valorização da reciclagem favorece um destino mais adequado para as embalagens e outros produtos que hoje vão parar na natureza ou lotam lixões e aterros após o consumo. “É preciso resgatar a participação dos catadores por meio do empreendedorismo ambiental, desde a gestão e operação de modernas estruturas de triagem até a contratação para a coleta seletiva municipal e a rastreabilidade dos resíduos no contexto das metas de logística reversa das empresas”, destaca Victor Bicca, diretor de políticas e relações governamentais da Coca-Cola Brasil.
Em março deste ano, a companhia firmou acordo de cooperação com a Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat) visando ações para aumento do volume de embalagens recicladas e redução das que hoje possuem baixo índice de recuperação pelas cooperativas e associações. Entre outros pontos, a iniciativa pretende avançar em campanhas de educação ambiental e no modelo para rastrear a origem dos resíduos, diante da meta da empresa de ter 100% das embalagens com destinação adequada até o fim de 2030.
Segundo Bicca, graças principalmente à atividade desses trabalhadores, o Brasil é hoje um dos líderes globais em reciclagem, com retorno de 97,4% das latas de alumínio e 55% das garrafas PET, por exemplo, de acordo com dados das associações setoriais da indústria. Atualmente, os desafios ambientais e de inclusão social, na perspectiva de um melhor cenário econômico com crescimento da produção industrial e maior acesso ao consumo, lançam novos objetivos para a gestão dos resíduos urbanos.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), aprovada em 2010 após quinze anos de debate, já tinha reconhecido o protagonismo dos catadores na gestão do lixo urbano. Além de estabelecer um prazo para o fim dos lixões (o que acabou postergado e até hoje não cumprido), a legislação lançou conceitos inovadores, como o de “responsabilidade compartilhada” entre poder público, sociedade civil e empresas, obrigadas a metas de reciclagem via acordos aprovados pelo governo federal em diferentes setores produtivos.
No entanto, apesar dos avanços, o cenário foi posteriormente marcado por um processo de desarticulação do meio empresarial e pela insegurança jurídica resultante de várias ações na Justiça, em diferentes estados. Após mais de uma década, o momento agora é de reinvenção: “Precisamos investir na valorização da cadeia produtiva da reciclagem com geração de renda, integrada com elementos de sustentabilidade cada vez mais importantes para a sociedade”, enfatiza Bicca, também presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir).
Na análise do executivo, “os catadores e catadoras perderam um espaço que agora precisa ser reconquistado, com a necessidade de assegurar participação efetiva na gestão municipal dos resíduos, sobretudo em cidades menores e lugares onde ainda não há coleta seletiva”.
Segundo projeções do Anuário da Reciclagem 2021, com dados levantados pelo Instituto Pragma e pela Ancat, as organizações de catadores reciclaram 1 milhão de toneladas de resíduos em 2020, com faturamento de cerca de R$ 800 milhões. No Brasil, a renda média mensal foi de R$ 1.098.
Em tempos de desemprego, é crescente a procura por trabalho na coleta e separação de resíduos, mas, segundo lideranças do setor, faltam ações mais efetivas dos governos no sentido de aumentar a estrutura para absorver mão de obra. Além disso, outros entraves, como a questão tributária, com bitributação dos materiais recicláveis e incidência de 20% de INSS para as cooperativas, dificultam mais conquistas.
Disputa pela rastreabilidade
O marco regulatório do saneamento (Lei nº 14.026/2020) obriga a gestão de resíduos, inclusive com cobrança dos usuários, mas não prioriza a inclusão de cooperativas ou associações de catadores. Posteriormente, no início deste ano, um novo decreto federal (Nº 10.936/2022) que regulamenta a PNRS instituiu o Programa Nacional de Logística Reversa, no propósito de otimizar ganhos de escala e sinergias entre os sistemas.
Além disso, lançou o Manifesto de Transporte de Resíduos (MTR) – documento autodeclaratório que se soma às notas fiscais como mecanismo de rastreabilidade para fiscalização do fluxo dos recicláveis e aferição das metas empresariais de recuperação de embalagens e outros materiais pós-consumo, com dados integrados ao Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (Sinir). Atualmente, está em regulamentação o sistema de concessão de créditos de reciclagem pela destinação adequada dos resíduos.
“Para avanços estruturantes na nova agenda, há necessidade de reconstruir o papel dos catadores”, destaca Bicca. Serviços voltados à certificação e comprovação do caminho das embalagens na cadeia produtiva, desde a origem até a reciclagem, representam uma fonte de negócios para as cooperativas no atendimento à demanda das empresas. Mas a concorrência com intermediários de olho no filão já se impõe como um desafio, até porque o cenário pós-pandemia se evidencia pela maior competição por resíduos. “O momento é rico e a nossa nova luta como categoria é a disputa pela rastreabilidade mais justa e limpa”, afirma Roberto Rocha, presidente da Ancat, durante o encontro.
Ele veio da catação de recicláveis nas ruas, sofreu discriminação como negro e pobre, e hoje se senta à mesa com o alto escalão de empresas. “No passado, jamais imaginei conversar com fabricantes e diretores de marcas”, revela a liderança, ressaltando a capacidade de dialogar com os demais entes da reciclagem. “Temos autonomia financeira, plano de saúde, qualidade de vida e diploma, e merecemos que o mercado fale diretamente com quem alimenta toda a cadeia”.
Por trás das soluções para o lixo plástico, um dos maiores desafios globais da atualidade, está a inteligência em parcerias e o trabalho em rede que as cooperativas de reciclagem ajudam a viabilizar nas ações empresariais. Nas indústrias, a questão abrange o design de produtos mais recicláveis e, também, de maior conteúdo reciclado, alinhados a estratégias de economia circular e enfrentamento da mudança climática.
Dessa forma, o debate sobre o novo papel desempenhado pelos catadores reforça a agenda ESG – em especial o “S” da inclusão social e produtiva, com redução de desigualdades, junto à busca pela diversidade de gênero. “A premissa está na valorização da cadeia por meio de preços mais justos e investimentos na formalização e produtividade das cooperativas”, diz Camila Amaral, vice-presidente jurídico e de assuntos corporativos da Coca-Cola FEMSA.
A empresa SustentaPET, criada pela fabricante de bebidas em 2019 para fomentar a cadeia desses resíduos plásticos após o consumo, atingiu 50 mil toneladas recicladas até hoje. Após a compra por preços justos, o material é encaminhado do centro de coleta à produção de resina reciclada, destinada à fabricação de novas embalagens da companhia. Desde agosto de 2019, foram coletadas e recicladas 2,3 bilhões de garrafas – 46% do que foi colocado no mercado pela FEMSA. O projeto atual, segundo Amaral, é expandir as operações com novas unidades no País, em linha com a meta empresarial de coletar todas as embalagens que coloca no mercado até 2030.
O tema mobiliza sinergia inclusive entre concorrentes, como na plataforma colaborativa Reciclar pelo Brasil, que reúne Coca-Cola Brasil, Ambev e outras empresas visando assistência técnica e investimentos diretos em cooperativas de catadores, em parceria com a Ancat. Em quatro anos, a iniciativa recuperou cerca de 290 mil toneladas de resíduos e atendeu quase 12 mil profissionais de catação no País. “Em empresas de grande porte, o contato com fornecedores é chave na replicação de práticas e relação com as cooperativas sem intermediários”, ressalta Rodrigo Figueiredo, vice-presidente de sustentabilidade e suprimentos da Ambev.
Ele destaca a importância da agenda colaborativa inserida nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas. “A pandemia ensinou que a solução para os problemas mais graves e urgentes está na colaboração e não na competição”, aponta o executivo.