[Foto: Bangladesh/ Bryon Lippincott/ Flickr]
O Fundo Verde, criado em 2010, jamais destinou a quantidade de recursos prometida para países pobres e em desenvolvimento; setor privado tem papel crescente na concessão de investimentos
Esta reportagem integra a série Na Rota da COP 27, com a cobertura dos principais temas da Conferência do Clima no Egito
Por Renato Grandelle*
Lidar com a crise climática pressupõe reorientar a economia mundial, promovendo, por exemplo, a transição das fontes de energia fóssil por renováveis, como a solar e a eólica, e combatendo o desmatamento. Envolve também uma agenda de adaptação, adequando a infraestrutura nos mais diversos níveis, desde a construção de barreiras contra o aumento do nível do mar até alterações em sistemas de plantio. São iniciativas que envolvem investimentos vultosos, muito superiores às condições econômicas dos países pobres e em desenvolvimento.
Até agora, a ajuda prometida pelas nações desenvolvidas pouco saiu do papel. E, embora a situação mundial seja cada vez mais urgente, nada indica que o financiamento verde deve avançar significativamente na Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP 27) de Sharm El Sheikh, no Egito, em novembro, segundo especialistas entrevistados pela Página22.
Ainda em 2009, os países ricos comprometeram-se, pelo Acordo de Copenhague, a destinar US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020 para que as nações em desenvolvimento implementassem ações de mitigação e adaptação contra a mudança climática. Em 2010, foi criado o Fundo Verde, principal mecanismo para concentrar as doações e a distribuição de recursos. A movimentação do caixa, porém, jamais chegou perto do valor prometido. As rusgas entre grandes potências e a perspectiva de crise econômica sinalizam que o debate sobre o financiamento climático pode ser mais uma vez adiado para a COP seguinte, como se tornou praxe ao longo das conferências em toda a década passada.
“Havia a expectativa de que a COP 27 criasse um mecanismo de perdas e danos [um suporte técnico e financeiro para regiões vulneráveis]”, lembra o climatologista Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avanços da Universidade de São Paulo (USP). “No entanto, vivemos hoje o nascimento de uma nova Guerra Fria, com o acirramento das tensões políticas entre Estados Unidos e China. É provável que o debate climático perca a relevância, principalmente entre os países ricos, que deveriam financiar a transição rumo a uma economia sustentável”, diz.
Nobre ressalta que o montante já mobilizado pelo Fundo Verde, além de não cumprir as expectativas, também teve sua finalidade desvirtuada, atrasando as reformas necessárias nos países pobres. Na maioria das vezes, ressalta, os recursos foram liberados como empréstimo, e não doações. Também foi direcionado um percentual muito pequeno, cerca de 20%, para iniciativas de adaptação, ações necessárias para aumentar a resiliência aos extremos climáticos.
Embora o momento político não esteja a favor de suas demandas, os países pobres e em desenvolvimento fazem questão de levar a pauta à mesa de negociações, e com reivindicações cada vez mais ambiciosas. Para o grupo, o Fundo Verde, que jamais acumulou US$ 100 bilhões, deve atualizar as suas metas e distribuir até US$ 700 bilhões por ano às nações carentes de investimentos.
O valor do financiamento climático pode até ser contestado pelos países ricos, mas não o seu mérito. Populações em condição de pobreza extrema são as que menos contribuíram para o aumento da temperatura global, mas ao mesmo tempo as mais vulneráveis aos eventos extremos. Bangladesh, por exemplo, não está entre as 30 nações que mais emitem gases de efeito estufa na atmosfera, mas é a sétima que mais sofreu desastres ambientais entre 1999 e 2018, segundo o Índice de Risco Climático do Instituto Germanwatch. Neste período, dezenas de milhares de pessoas morreram no país em decorrência de eventos extremos, como furacões e inundações.
“Surpreende o fato que os extremos climáticos que vivemos atualmente, como a onda de calor no Reino Unido, parecem não gerar uma percepção da necessidade de uma resposta rápida. Trata-se de uma situação muito pior do que a pandemia do coronavírus”, compara Nobre.
“Na COP de Glasgow, em 2021, os países comprometeram-se a reduzir em 45% suas emissões de gases estufa até 2030, em relação aos níveis de 2010. Ainda assim, tudo indica que a liberação de poluentes vai aumentar este ano, comparada a que vimos no ano passado”, diz
Nobre calcula que, para cumprir o acordo de Glasgow, a comunidade internacional precisaria direcionar mais de 50% de sua atual produção energética para fontes renováveis. Este ajuste, portanto, deve ser a ordem do dia para todos os países, e as primeiras medidas podem ser tomadas em âmbito nacional mesmo sem financiamentos estrangeiros.
“As energias renováveis são mais baratas e competitivas do que os combustíveis fósseis. Então, os governos de países em desenvolvimento já podem desenhar seus próprios sistemas para fomentar este setor. Mas é óbvio que a implementação dos projetos será muito mais eficiente se eles puderem contar com apoio financeiro de outras nações”, ressalta o climatologista.
Vice-diretora da Coppe/UFRJ e ex-vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), Suzana Kahn concorda que a mobilização de recursos contra a mudança do clima ficará em segundo plano na COP 27, considerando o cenário político mundial.
Há, no entanto, uma boa notícia, que pode contribuir indiretamente para iniciativas de mitigação e adaptação a eventos extremos. O Senado dos Estados Unidos aprovou, no início de agosto, um projeto de lei que destinará US$ 369 bilhões para políticas climáticas e energéticas, visando o investimento em tecnologias de baixo carbono.
“À medida em que os EUA se engajam nesta causa, uma série de produtos pode se tornar mais acessível e a um custo menor no mercado internacional”, explica Kahn. “A necessidade de investir em setores de baixo carbono também será sentida pelo setor privado, que tende a introduzir cada vez mais barreiras a cadeias produtivas dependentes da emissão de gases de efeito estufa.”
Oficial de operações do International Finance Corporation, Diogo Bardal atenta que grande parte do investimento contra a mudança do clima negociado na COP poderá vir do setor privado. “Todos os países devem perseguir os mesmos propósitos, como a redução das emissões e a promoção da restauração. Mas este debate também tem ganhado sentido para os negócios. O setor privado já percebeu que há ganhos potenciais se investirmos em avanços tecnológicos, como o hidrogênio verde”, explica ele, que também é membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.
Para ele, a justiça climática deve ser um critério para negociação de recursos, o que privilegiaria a concessão de financiamento para projetos realizados em países em desenvolvimento. No entanto, outros fatores também têm sido analisados pelos doadores, como os benefícios sociais oriundos do investimento em conservação ambiental.
Bardal avalia que os recursos de doação são mais escassos, o que aumenta as exigências para seleção das iniciativas que receberão verbas. “Os fundos de investimento estão muito preocupados com o componente social. Querem que os projetos que buscam financiamento climático descrevam como podem contribuir para o ganho de renda da população, sem se restringirem aos benefícios ambientais”, atenta.
“Há, também, o componente diplomático, a demonstração de que os recursos serão gerenciados de forma eficiente. Os países asiáticos têm se estruturado melhor para atender todas essas demandas. Precisamos fazer o mesmo. É mais difícil conseguir dinheiro quando se pede um cheque em branco”, pondera Bardal.
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*Renato Grandelle, jornalista, cobre a COP 27 no Egito para a Página22