Startups apoiadas pelo programa Aceleradora 100+ mostram como a gestão de resíduos pode mudar vidas enquanto gera benefícios ambientais
Por Amália Safatle
Nas primeiras visitas a algumas cooperativas de reciclagem, enquanto trabalhava como executivo na Johnson & Johnson, o americano Michael Maggio deparou-se com um quadro desolador: pessoas pegando restos de comidas e bebidas da esteira de separação de materiais, crianças em ambiente de trabalho, uso de álcool e drogas e falta de segurança mínima para manusear materiais perigosos, entre outros problemas. Quando uma mulher que trabalhava numa cooperativa de recicláveis tomou ácido de uma embalagem, supondo que era um resto de bebida, Maggio teve a real dimensão do desafio da gestão de resíduos no Brasil. Pensou consigo mesmo: a empresa não pode aceitar uma situação dessas se quiser dar destinação correta aos resíduos. Juntamente com outras empresas, deu início um projeto para tornar as cooperativas um local mais seguro e, por conseguinte, peças fundamentais na economia circular.
Essa experiência marcante serviria futuramente como um embrião da iWrc (pronuncia-se “I work”, “eu trabalho”, em inglês), startup criada por Maggio ao sair da J&J. A empresa, em fase de piloto no programa Aceleradora 100+, oferece treinamento e capacitação para cooperativas, habilitando-as a se tornarem parceiras de empresas que desejam implementar programas de circularidade das embalagens, com responsabilidade social e em conformidade com as leis trabalhistas e todas as exigências de uma atividade formal.
A iWrc define-se como uma plataforma digital habilitada para compra e venda de material reciclado, conectando as empresas que precisam desses materiais com as cooperativas de reciclagem socialmente responsáveis. O objetivo é prezar por saúde, segurança e bem-estar de todas as pessoas envolvidas nesse processo.
Aprovada para a segunda fase do programa de aceleração, a empresa, que integra a 4a turma da Aceleradora 100+, prepara-se para apresentar seu projeto piloto no Demoday. O evento será realizado em 21 de março, em São Paulo, com transmissão online pelo canal YouTube da Ambev.
O piloto oferece soluções tanto às cooperativas quanto às empresas compradoras, que precisam atender aos compromissos firmados na Política Nacional de Resíduos Sólidos. Nesta fase do projeto, a ideia é testar a soluções oferecidas de maneira prática. No caso da iWrc, o teste envolve um material especialmente desafiador que é o plástico flexível, que apresenta baixo valor comercial e possui menor viabilidade econômica na reciclagem. Por isso, muitas vezes nem sequer é separado e comercializado, acabando em aterros ou lixões. Sendo um material bastante abundante, requer soluções ambientais contra a poluição plástica e uma melhor estruturação desta cadeia para viabilizar sua reciclagem.
Um dos grandes obstáculos encontrados é a dispersão desses materiais, dispostos em poucas quantidades em várias cooperativas, o que aumenta o custo logístico e derruba o preço. Maggio explica que as cooperativas, por não conseguirem agregar valor ao material, acabam vendendo-o por um valor mais baixo a um atravessador. A cooperativa, que precisa do dinheiro para pagar as contas do dia a dia, fica refém da oferta e acaba aceitando preços inferiores.
Diante disso, a iWrc propõe a criação de hubs a fim de acumular mais material em um só espaço. Assim, é possível reduzir o custo logístico e agregar valor ao material, remunerando as cooperativas com preço justo, conforme explica a gestora da empresa, Maria Eduarda Gervazoni. Para demonstrar como isso funciona, o piloto atua no início desta cadeia através da correta separação dos plásticos flexíveis, como o shrink e o strecht, usados para embalar engradados e fardos de bebidas. Este teste tem sido realizado com cooperativas de Campinas (SP) e Capão Bonito (SP), que fazem parte da rede da iWrc.
Para garantir a circularidade deste material, o piloto conta ainda com a parceria de duas empresas: a Deink e a Valgroup. O intuito é fechar a cadeia e transformar o resíduo gerado e separado pelas cooperativas novamente em uma embalagem. A Deink oferece um processo inovador de retirada da tinta de impressão dos filmes plásticos pós-consumo, o que possibilita a transformação em pellets incolores, que têm maior valor agregado. A partir da resina gerada, a Valgroup produz um novo filme plástico reciclado para a Ambev, retornando como uma nova embalagem, com conteúdo reciclado em sua composição. Isso reduz a quantidade de resina virgem utilizada e dá a correta destinação ao resíduo gerado no início da cadeia, fechando o ciclo. A Valgroup é uma das maiores produtoras, transformadoras e recicladoras de plástico do mundo.
“Nós conectamos a iWork ao início desse ciclo, com o objetivo de orientar como deve ser feito o processo de separação do material pós-consumo junto às cooperativas. Com isso, conseguimos aumentar o volume de captação desse material e por meio da parceria com a Deink e Valgroup fazemos com que ele retorne em nossas embalagens”, explica Karina Fernandes Turci, gerente de sustentabilidade em Embalagens na Ambev, que atua na área de Suprimentos.
Turci, afirma que a Ambev possui compromissos voltados tanto aumento de conteúdo reciclado quanto a neutralização da poluição plástica das embalagens até 2025 e para isso uma frente importante é a de estruturação da cadeia de reciclagem, garantindo disponibilidade do material.
Enquanto o alumínio e o PET possuem cadeias mais bem estruturadas – em média, a taxa de reciclagem desses materiais encontra-se em 98% para as latas e 56% para as garrafas PET –, plásticos flexíveis como o shrink e o stretch apresentam percentuais menores, em torno de 20%. “Foi aí que nos deparamos com a iWrc, empresa que está trazendo soluções e nos ajudando bastante nesse processo de estruturação da cadeia”, diz. A meta da Ambev é de que, até 2025, todas as embalagens colocadas no mercado sejam retornáveis ou feitas majoritariamente de conteúdo reciclado.
Duplo propósito
Enquanto a iWrc tem apontado caminhos na cadeia de fornecimento envolvendo as cooperativas, a growPack oferece inovações nas embalagens em si. Esta startup, que fez parte de uma turma anterior da Aceleradora 100+, desenvolveu uma solução capaz de substituir o plástico por um biomaterial compostável.
“Tendo em vista o nosso compromisso de acabar com a poluição plástica de nossas embalagens até 2025, estávamos buscando alternativas para substituição do shrink, e a growPack nos trouxe uma solução inovadora, desenvolvida em parceria conosco”, conta Turci. Trata-se de um material composto de rejeitos agrícolas e biodegradável, para segurar as latinhas. Em dezembro de 2021, o biomaterial foi colocado no mercado junto a uma das marcas Ambev, a cerveja Colorado. Outra linha de produto da growPack são as embalagens termomoldadas para food service, que substituem embalagens de isopor e de papel, em parceria com a iFood.
Foi em março de 2018, durante um passeio com os cachorros em um parque em Buenos Aires, que os amigos Exequiel Bunge Berg e Sean Tenorio tiveram o insight de criar produtos 100% de origem vegetal, com base na fibra da celulose, dando origem à growPack. Ambos mudaram-se para o Brasil, onde o que não falta é matéria-prima, como palha de milho, de arroz e de cevada. “O importante é que não haja competição com o alimento. Chamamos isso de colheita com duplo propósito, em que se colhe o grão, mas também se aproveitam os resíduos da biomassa”, diz Berg.
Se matéria-prima não é problema, o desafio está no desenvolvimento da inovação para ganho de escala. “O trabalho que temos pela frente é justamente essa curva de inovação que toda nova tecnologia enfrenta até chegar a um platô de desenvolvimento. Hoje nós representamos uma tecnologia emergente versus tecnologias já estabelecidas há mais de 50 anos. Então este é o grande desafio”, avalia Berg.
Ao fazer duas avaliações gerais dessa nova embalagem, a Ambev entendeu que o consumidor gostou da novidade, mas ficou intrigado. “O nosso grande desafio é comunicar esses atributos ambientais através da embalagem para que o consumidor consiga entender o propósito fazendo com que fique engajado com essa inciativa. É preciso contar um pouco a história daquela embalagem para que fique claro que é uma proposta mais sustentável e feita de biomateriais”, diz Karina Turci.
Até porque o consumidor pode achar interessante o atributo ambiental e dar preferência a esse tipo de embalagem que, além de não gerar resíduos, em seu processo de produção gasta menos água e emite menos carbono em relação ao papelão, de acordo com estudo de Avaliação de Ciclo de Vida realizado pela empresa. Além disso, é uma cadeia rastreável, em que se conhece a origem do produto, podendo atestar que não há passivos sociais e ambientais envolvidos.
Mas, o desafio continua em como conseguir comunicar ao consumidor, considerando o formato da embalagem. “Para nós, é um tipo de desafio esperado, que faz parte do processo de inovações, pois se trata do desenvolvimento de uma embalagem que até então não existia. É o que chamamos de ciclo ágil: testar, aprender, testar novamente, até chegar a um protótipo escalável e, em seguida, aumentar a produção para efetivamente atender mais consumidores”, diz a gerente da Ambev.
Em relação ao preço para o consumidor, Berg afirma que conseguiu uma paridade de preço em relação à fibra moldada importada, que é feita na China e possui impacto ambiental muito maior, devido às emissões no transporte. Ele planeja triplicar a capacidade de produção até a metade do ano, quando o preço deverá ser de 15% a 20% acima do plástico PP (polipropileno).
“O grande desafio é a tração comercial, buscando paridade de preços e funcionalidade diante de indústrias que funcionam com estrutura e maturidade de tecnológica já consolidadas”, afirma Berg. Mas o que oferece dificuldade também abre oportunidades. “O plástico já não vai avançar muito mais tecnologicamente, o isopor também não. Já a nossa tecnologia é muito emergente.”
O passo seguinte será desenvolver, para empresas, produtos que utilizem as matérias-primas de suas próprias cadeias produtivas. “Estamos, por exemplo, estudando fibras da cadeia produtiva da própria Ambev, uma vez que o mote da empresa é ‘do campo ao copo’. Então, temos uma grande oportunidade de avaliar as matérias-primas dos próprios parceiros para fazer embalagens cada vez mais circulares com seus próprios materiais.”
Berg concorda que um impulso a seu negócio deve vir da agenda ESG, segundo a qual as empresas terão cada vez mais de responder a questionamentos sobre pegada de carbono e energia, rastreabilidade e economia circular, especialmente dos plásticos de uso único. “Gostamos de dizer que hoje não há melhor negócio do que salvar o mundo. Colocar as mãos na massa e produzir com mais eficiência. Os compromissos feitos pelas empresas com que trabalhamos abrem uma grande oportunidade de levar soluções ágeis e tangíveis para um mundo melhor”, diz.
A melhoria do mundo começa essencialmente pelas pessoas, no entendimento da iWrc. Maria Gervazoni, gerente da startup, comenta a emoção que tomou conta de todos ao ouvir os depoimentos de cooperados, especialmente das mulheres. Há diversos casos de mulheres que chefiam famílias e cuidam sozinhas de seus filhos. “Uma das delas disse que não dava valor para a sua vida, vivia para trabalhar e pagar as contas. Mas, ao perceber que o resíduo tinha valor, conseguiu enxergar valor no seu trabalho, percebeu sua importância e resgatou o valor na própria vida”, conta. “Isso é muito profundo.”
Sobre a Aceleradora 100+
O programa Aceleradora 100+ surgiu em 2018, alinhado à iniciativa global da Ambev e aos seus compromissos de sustentabilidade para 2025 (mais informações: aceleradora.ambev.com.br). A partir disso, são mais de 60 startups aceleradas e R$ 15 milhões investidos nos negócios parceiros. Em 2021, a Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) e o Quintessa uniram-se a essa jornada e, agora, PepsiCo, Valgroup, Ball Corporation e Machado Meyer chegaram para integrar a quarta edição e ampliar a escalabilidade dos projetos apresentados.
As startups implementam as soluções de impacto por um período e mensuram os resultados gerados. A implementação pode ser de uma solução pronta, mas também é possível adaptar uma solução existente e até cocriar algo novo entre executivos e empreendedores. O foco do programa é garantir o êxito dessa implementação, corrigir a rota, se necessário, e orientar as duas partes a partir de boas práticas.
Destinado a negócios que estão em fase inicial no mercado, com clientes e vendas iniciais já realizadas, o programa está dividido em duas etapas, incluindo aulas teóricas sobre gestão de negócios; workshops realizados pelo Quintessa para desenvolvimento do piloto, implementação de piloto durante um processo de quatro meses; e apresentação no evento de encerramento, com premiação em dinheiro. Algumas startups se beneficiam pela contratação de serviços pela Ambev e por parceiros posteriormente, além disso, podem apresentar propostas de investimentos para a empresa e parceiros do programa.
Esta reportagem encerra a série realizada em parceria com a Aceleradora 100+. Leia aqui a quinta matéria.