Encontro realizado durante a Climate Week mostra que, além de reduzir riscos, a rastreabilidade é fundamental para gerar oportunidades estratégicas no País. Proposta que cruza CAR e GTA dá respostas para o curto prazo e ganha adesão crescente
Por Coalizão Brasil e Abiec, em colaboração com Science Panel for the Amazon
Grande produtor de commodities agrícolas, maior exportador de carne bovina do mundo e detentor de biomas megabiodiversos, entre os quais a maior floresta tropical do planeta, cabe ao Brasil agir como protagonista na agenda global que busca a segurança alimentar e nutricional, o combate às desigualdades e o enfrentamento da emergência climática e ambiental. Neste contexto, o debate sobre rastreabilidade na cadeia produtiva da pecuária da Amazônia torna-se fundamental, seja para reduzir riscos, seja para gerar oportunidades estratégicas para o País.
Propostas nesse sentido têm sido debatidas no Brasil e já alcançam fóruns internacionais. No dia 22 de setembro, durante a Climate Week, em Nova York, foi realizada a reunião Rethinking the cattle ranching supply chain in the Amazon (ou “Reavaliando a cadeia de suprimentos da pecuária na Amazônia”). Foi realizado pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura e pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), com participação do Science Panel for the Amazon (SPA) que, por sua vez, é uma iniciativa de Jeffrey Sachs, professor na Columbia University e presidente da Sustainable Development Solutions Network (SDSN). O encontro debateu a relação entre indústria de proteína e desmatamento, tendo como foco a rastreabilidade do gado.
Com a mediação de Isabella Leite, gerente sênior do SPA, a reunião contou com as exposições de Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente; de Kevin Karl, pesquisador da Columbia University; de Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Abiec e colíder da Força-Tarefa de Rastreabilidade e Transparência da Coalizão; de Marcello Brito, secretário-executivo do Consórcio da Amazônia Legal; e de Leila Harfuch, sócia-gerente e pesquisadora sênior da Agroicone e colíder da Força-Tarefa de Finanças Verdes da Coalizão. A síntese coube a Roberto S. Waack, presidente do conselho do Instituto Arapyaú e um dos fundadores e integrante do Grupo Estratégico da Coalizão.
Com participação presencial e remota de 68 pessoas, o evento mostrou crescente adesão de diversos setores da sociedade a um movimento que vem sendo gestado no âmbito da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, com participação ativa de empresas como a Marfrig e representantes do setor pecuário, a exemplo da Abiec.
Além dessas e de outras organizações relevantes, participaram da reunião empresas (Minerva, Carrefour, re.green), bancos (Itaú, Itaú BBA), fundos (JBS, Bezos Earth Fund), academia (USP, Insper, CPI/PUC-Rio), consultorias (Agrotools), organizações da sociedade civil (TNC, CI, WWF, iCS, NWF, Proforest, Instituto Talanoa, Uma Concertação pela Amazônia, Imazon, Imaflora), a agência de cooperação internacional GIZ, a rede de investidores FAIRR e a Embaixada da Noruega.
Este documento traz uma síntese do debate, que se inicia com uma breve apresentação do Science Panel for the Amazon, seguida por exposições sobre o contexto geopolítico e as implicações para o Brasil; os impactos causados pelos sistemas de produção de proteína no mundo; a realidade enfrentada pela pecuária brasileira; a necessidade de inclusão social dos pequenos produtores e de um arranjo nacional de governança; e a apresentação de uma solução concreta para a rastreabilidade bovina no Brasil, com implementação viável no curto prazo.
Isabella Leite, do SPA, lembra que, além de uma biodiversidade notável, a Amazônia guarda enormes estoques de carbono que precisam ser conservados. E que, apesar dos esforços de grandes empresas, a produção agropecuária respondeu por 95,7% dos hectares desmatados no Brasil, segundo o Relatório Anual de Desmatamento (RAD2022) do MapBiomas. Grande parte das emissões de gases de efeito estufa do Brasil vem da mudança no uso da terra. Portanto, a descarbonização da economia brasileira precisa envolver o campo, sem o que será impossível alcançar as contribuições determinadas nacionalmente (NDC). O desmatamento é um problema não só para o clima, mas também para a biodiversidade e a água, com redução das chuvas em áreas importantes para a agricultura no País. No caso da Amazônia, as alterações climáticas globais, combinadas com o desmatamento e a degradação, devem levar o sistema a pontos de ruptura irreversíveis em um futuro próximo.
Diante disso, o SPA, grupo formado por 250 cientistas, defende quatro mensagens principais. A primeira delas é estabelecer uma moratória imediata em áreas que já se aproximam de pontos de ruptura. A segunda é garantir desmatamento e degradação zero em toda a bacia amazônica até 2030. A terceira, restaurar ecossistemas terrestres e aquáticos. E a quarta, investir em educação, ciência, tecnologia e inovação para fortalecer a economia das florestas e dos rios, incentivando o conhecimento científico e o conhecimento indígena e local.
Uma agenda estratégica: food security e nature security
Diante da crise ambiental e climática e de instabilidades internacionais como a guerra na Ucrânia, são velozes as mudanças globais pelas quais o mundo está passando, em especial as que dizem respeito aos sistemas de produção de alimentos. A transição alimentar está na ordem do dia, o que significa repensar o modo de produção, considerando redução e neutralização da pegada de carbono, controle de desmatamento, enfrentamento das desigualdades e da fome, e inclusão social de pequenos produtores.
O Brasil tem sido condenado pelo passivo relacionado ao desmatamento, mas justamente aqui reside a oportunidade de transformar esse problema em ativo, caso o País passe a liderar uma agenda de produção agropecuária de baixo carbono aliada à proteção de seus ativos naturais. Como frisa Izabella Teixeira, o conceito de food security deve ser acompanhado do conceito de nature security.
Assumir essa liderança e valorizar os ativos da natureza, em vez de destruí-los, são ações capazes de conduzir o Brasil a uma nova posição política na arena global que também está em transformação, com a expansão dos BRICS, com notável inclusão da China, a entrada da União Africana no G20, e o surgimento de novos blocos, inclusive um eventual bloco da Bacia Amazônica.
Segundo a ex-ministra, os bens naturais comuns do planeta tendem a obter maior relevância no comércio internacional e na forma como esses novos esquemas multilaterais têm surgido e se organizado. Países que produzem alimentos de baixo carbono terão vantagens competitivas relevantes, ganhando reconhecimento e importância nas negociações.
Mas, para que isso se efetive, a rastreabilidade será um fator-chave, não somente para zerar o passivo do desmatamento, mas também contabilizar ativos ambientais, estabelecendo um novo equilíbrio na geopolítica de produção de alimentos.
Mesmo que grande parte do valor da natureza – ainda – seja invisível para o setor econômico financeiro, obviamente já não é invisível para a sociedade. E o Brasil é visto como um país que tem alternativas e soluções para oferecer ao mundo, mas a sua produção agropecuária precisará de ajustes.
Esses ajustes devem ser discutidos em fóruns globais, como a COP 30 (30ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança Climática) que o País sediará em 2025, e no G20, cuja presidência o Brasil acaba de assumir. Para isso, a ex-ministra defende que o Brasil estique o horizonte que já está posto na COP 30, apresentando uma agenda de produção de commodities de baixo carbono com vistas a 2035. Essa agenda deve avançar por meio de um tripé formado por sociedade civil, setor privado e governo. O governo deixaria de ser o grande líder, mas sim quem acolhe as demandas da sociedade, crescentemente alicerçadas no papel do setor privado.
Além disso, essa agenda de longo prazo deve contar com ações de aproximação de curto prazo, step by step, em linha com a proposta de rastreabilidade que está sendo apresentada: ações implementadas em curto prazo, com transparência das informações e accountability.
Olhar abrangente sobre sistemas de produção
Kevin Karl, pesquisador que estuda a interseção entre sistemas de produção alimentar e mudança climática na Columbia University e integra o grupo do professor Walter Baethgen, enfatiza a importância de lidar com as emissões de metano no curto prazo – em linha com a abordagem step by step. Segundo o pesquisador, o impacto do aquecimento das emissões no início da década de 2030 será mais proveniente do metano do que do carbono gerado no desmatamento, de acordo com as taxas de 2020.
Karl enfatiza que, no mundo em que vivemos agora e viveremos na década de 2030, a experiência será moldada em grande parte pelo metano que é emitido hoje. Obviamente, isso não significa deixar de lado a preocupação com a emissão de dióxido de carbono e nem com o desmatamento. O desmatamento e a mudança no uso da terra continuam importantes – especialmente no Brasil –, mas é preciso manter esse olhar mais amplo a emissões de outros gases, como o metano e o óxido nitroso.
Em grande parte lançado na atmosfera pela pecuária (emissões das quais a fermentação interna dos ruminantes responde por 40%), o metano tem um poder de aquecimento 28 vezes superior ao do dióxido de carbono em um ciclo de vida de 100 anos, de acordo com o AR 5 do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC). Mas, após dez anos, sua permanência na atmosfera declina bem mais rapidamente que o dióxido de carbono. Ou seja, se as emissões de metano forem reduzidas significativamente agora, é possível obter um grande impacto no clima no curto prazo.
Em uma análise inter comparativa dos sistemas agroindustriais, Karl ressalta que 30% das emissões de gases de efeito estufa se originam no sistema alimentar, o que vai além do uso da terra: envolve as cadeias de suprimento, logística, produção de fertilizantes, pesticidas, embalagens – e desperdício. Ou seja, as emissões oriundas do sistema agroalimentar envolvem vários outros elementos que não estão sendo adequadamente analisados e requerem uma visão mais abrangente quando se fala em agenda de baixo carbono. A rastreabilidade, de uma maneira mais ampla, deveria permitir uma observação de todos esses elementos, não se atendo apenas às questões ligadas à mudança climática e ao desmatamento.
Karl propõe um olhar mais abrangente também sobre a função social dos sistemas alimentares, que não devem apenas ser responsáveis por um clima seguro e estável. Precisam ir além da discussão sobre carbono e considerar várias outras dimensões ligadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), como fome zero, o acesso a proteínas, o trabalho digno, o crescimento econômico, a cultura local e os meios de subsistência associados à pecuária.
A pecuária responde por 40% do PIB agrícola global, sustenta economicamente 1 bilhão de pessoas e fornece um terço do consumo mundial de proteínas. Prevê-se que a demanda global de carne duplique entre 1990 e 2050. Nos países com altas taxas de anemia em mulheres, a carne bovina fornece uma fonte muito importante de proteína de alta qualidade, além de nutrientes como ferro e zinco. Isso mostra a importância da produção pecuária especialmente nos países com maior insegurança alimentar.
Ao mesmo tempo em que a produção agropecuária, se mal gerida, impacta negativamente o clima, é verdade que a mudança climática também ameaça os sistemas alimentares por meio de escassez hídrica, inundações, clima severo etc. – tema sobre o qual o pesquisador tem se debruçado. Um exemplo: com a alteração climática, mesmo que a quantidade de soja produzida permaneça relativamente estável, a qualidade dos nutrientes da soja tende a cair, impactando em cheio a ração animal. À medida que a concentração de proteína da soja diminui, mais terras para cultivo são necessárias a fim de atingir a mesma quantidade nutricional – o que impõe desafios no campo da adaptação climática.
Complementando a ideia de que a geopolítica do sistema de alimentos é crítica, o pesquisador mostra, portanto, que essa criticidade passa por um entendimento mais profundo da relação do sistema de produção com mudança e adaptação climática, e com impactos sociais em emprego, geração de renda, saúde, segurança alimentar e nutricional.
No Brasil, uma dualidade a resolver
O Brasil tem condições de oferecer, de forma única e competitiva, sistemas de produção climaticamente equilibrados e socialmente justos, aproveitando as oportunidades de intensificação de tecnologia, ao mesmo tempo em que apresenta altas taxas de desmatamento. Esta, portanto, é uma dualidade a ser resolvida.
Um primeiro passo é entender a realidade da pecuária brasileira. Fernando Sampaio, da Abiec, mostra como a dinâmica do uso da terra se desenrola no Brasil e expõe um paradoxo: nos últimos 20 anos, enquanto o desmatamento cresceu, diminuiu a área de produção de carne bovina. Muitas áreas antigas de pastagens estão sendo substituídas pela agricultura, especialmente soja, eucalipto e outros produtos. Ainda assim, as pastagens ocupam muito espaço, não propriamente para produzir carne, e sim como uma estratégia fundiária, para ocupar terras recém-desmatadas usando o boi. Cerca de 76% desta área de pastagem é ocupada por produção pecuária de baixa tecnologia e baixa eficiência.
Ao mesmo tempo em que é um problema, tal situação abre uma oportunidade econômica, ambiental, climática e social: todo esse espaço pode ser usado para aumentar a produção de carne bovina, com intensificação tecnológica, satisfazendo a crescente demanda global, especialmente na Ásia, e ao mesmo tempo reduzir a pegada ecológica da produção com o emprego de técnicas agrícolas de baixo carbono e com restauração de pastagens degradadas. Isso pode ser feito por meio da inclusão de pequenos produtores e adesão às boas práticas.
O diretor da Abiec, que representa 39 empresas, responsáveis por 80% dos abates com inspeção federal no Brasil e 98% das exportações de carne bovina do País, frisa que o futuro do setor pecuário está ligado ao futuro da floresta, à conservação da biodiversidade e também à mitigação da mudança climática.
Segundo ele, há espaço suficiente para aumentar a produção sem desmatamento, apenas intensificando a produção de gado e garantindo que a agricultura continuará a crescer nesta área de pastagens subutilizadas e degradadas.
Tal transição, no entanto, precisa encontrar financiamento e assistência técnica aos produtores. Além disso, é preciso olhar para o que está acontecendo na fronteira agrícola, onde o desmatamento continua ocorrendo e o gado é usado para ocupar terras públicas, no que Sampaio chama de “economia da pilhagem”. Segundo ele, a indústria exportadora de carne não precisa desse gado – e não o quer.
Mas o setor privado que atua com seriedade e rejeita o desmatamento ilegal não será capaz de resolver essa questão sozinho. Até o momento, os governos vêm falhando na gestão do território, principalmente na Amazônia. Por isso, Sampaio propõe que os setores privado e público trabalhem juntos. Cabe unicamente aos governos, entretanto, controlar o desmatamento ilegal, dar destinação a essas terras públicas invadidas, implementar o Código Florestal, e proteger as Terras Indígenas e as Unidades de Conservação. Nesse sentido, são reconhecidos os avanços com a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), promovida pela nova gestão do governo federal.
Ao setor privado, cabe controlar as cadeias de abastecimento e apoiar os produtores. O monitoramento da origem do gado, principalmente na Amazônia, tem sido feito desde 2009 pela Abiec, em parceria com a Wisconsin University, nos Estados Unidos.
Duas conclusões surgem desse trabalho de monitoramento. A primeira é que o monitoramento da cadeia feito pelas empresas associadas, mesmo que relativa apenas aos fornecedores diretos, reduziu em 15% o desmatamento provocado na Amazônia. A segunda é que a área de influência dos frigoríficos permanece relativamente estável desde 2013. Isso significa que o gado tem sido adquirido nos mesmos lugares, condição importante para consolidar áreas de produção, em vez de se abrir outras, gerando desmatamento.
Existe hoje uma infraestrutura industrial de frigoríficos de carne bovina que está implantada na Amazônia, e é preciso consolidar clusters sustentáveis em torno dessa infraestrutura, com rastreabilidade da cadeia de fornecedores diretos e indiretos. Há convicção de que o Brasil precisa de uma política de rastreabilidade para os produtos agrícolas, mas principalmente para o gado, que é mais complexa. A cadeia produtiva da pecuária é composta por vários elos e o gado é deslocado de uma fazenda para outra nos processos de cria, recria e engorda.
Historicamente, houve muita resistência em se implantar sistemas de rastreabilidade devido ao custo e à complexidade da cadeia de fornecedores. Existe um plano de se trabalhar com a rastreabilidade individual, por cabeça de gado, o que aumentará o controle sobre as garantias ambientais e de segurança alimentar. Mas, por ser custoso e de difícil implantação, este é um projeto de médio a longo prazo, enquanto o Brasil precisa de respostas imediatas.
Uma saída para atender o curto prazo, que será detalhada mais adiante neste texto, propõe combinar as informações de dois sistemas que já estão disponíveis e operantes. Um deles é a Guia de Trânsito de Animal (GTA), desenvolvida para controlar problemas de saúde animal, mas que não foi concebida para controle ambiental. Graças a esse sistema de controle sanitário, o Brasil conquistou a confiança dos mercados internacionais e pode vender carne bovina para mais de 158 países ao redor do mundo. O outro sistema é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que indica os limites físicos das propriedades e sua conformidade ambiental. Combiná-los pode promover um sistema de rastreabilidade de baixo custo e implementação mais fácil no curto prazo e em grande escala. Esta é a proposta que está sendo levada para o governo pela Abiec.
Um bom sistema de rastreabilidade será muito importante para que pequenos produtores sejam incluídos em uma cadeia de valor sustentável, diferenciando-se daqueles que são ilegais e que utilizam o boi, como já dito, para fins fundiários. Estes, ilegais, devem ser definitivamente excluídos, não só do sistema da indústria, mas também do sistema financeiro. Mas os demais devem ser incluídos. Existem hoje mais de 10 mil produtores que não podem vender gado nos frigoríficos porque não cumprem os critérios exigidos pela indústria. Vários deles, apenas por estarem localizados em zonas de risco, onde existe alto índice de desmatamento, são automaticamente excluídos.
Mas a maioria tem a opção de voltar a ser regularizar, podendo, inclusive, trabalhar na restauração da floresta que foi derrubada. Portanto, é preciso pensar em como trazer esses produtores de volta à cadeia de abastecimento. Essa pegada inclusiva pode valorizar a cadeia de suprimentos, em uma combinação de ações privadas com um programa governamental de cunho social.
Políticas públicas para inclusão
Assim como a agricultura regenerativa, a adaptação e mitigação climática hoje fazem sentido para as indústrias, do ponto de vista dos negócios e da reputação, a rastreabilidade também passou a fazer muito sentido. Há questões reputacionais, comerciais, econômicas e financeiras envolvidas no tema, de acordo com a visão de Marcello Brito, do Consórcio da Amazônia Legal.
Entretanto, do total de 1,8 bilhão de pessoas que vivem em um sistema de produção de alimentos em fazendas em todo o mundo, 95% são pequenos produtores. Esses produtores não têm acesso a toda esta discussão sobre rastreabilidade, sustentabilidade e tecnologia. A estratégia de blame and shame, ou seja, de culpabilizá-los para obter mudanças no sistema de produção na direção da sustentabilidade, não tem efetividade no mundo dos pequenos produtores.
A maioria dos pequenos produtores no Brasil, que constitui uma parte importantíssima do sistema de produção, também está alheia a essa discussão, simplesmente porque não faz sentido para sua realidade. Essa informação não chegou até eles.
Daí a importância de que essa camada de produtores seja alcançada por meio de políticas públicas, em ações de larga escala, e de uma forma orquestrada e coordenada entre os diversos entes governamentais.
Ações de esclarecimento, inclusão, requalificação, assistência técnica e desenvolvimento local, feitas em parceria com o setor privado, são necessárias para que esse grande contingente de pequenos produtores passe a fazer parte de todo esse processo – e passe a enxergar sentido nisso. Sem essas políticas, não adiantará colocar toda a responsabilidade sobre desmatamento e mudança climática nos ombros do setor privado.
No âmbito internacional, as políticas públicas estão relacionadas à geopolítica, basicamente por meio de acordos bilaterais e de conferências das Nações Unidas sobre clima e biodiversidade (COPs). Mas, no âmbito nacional, há necessidade de desenho e implementação de políticas públicas, tais como a da rastreabilidade. A medida que propõe o cruzamento entre CAR e GTA requer efetiva implementação do Código Florestal brasileiro e do próprio CAR, o que cabe aos governos.
Como ainda existem visões muito diferentes entre os governadores e secretários estaduais da Amazônia, a União deve assumir uma ação de convergência entre os estados e a governança federal. Segundo Brito, as diferenças são tão grandes que a tarefa pela frente é muito mais difícil do que se possa imaginar. A primeira pergunta a ser respondida é: quais são os elos existentes entre os estados amazônicos e entre a Amazônia e o restante do País? As soluções serão encontradas quando as agendas da sustentabilidade, enfrentamento à mudança do clima e rastreabilidade fizerem sentido para todos em torno de uma mesma mesa: setor privado, pequenos produtores, governos subnacionais e governo federal.
Rastreabilidade sobre externalidades
Com importância secular no desenvolvimento econômico brasileiro, a pecuária bovina de corte conta com mais de 2,5 milhões de estabelecimentos, ocupando 152 milhões de hectares de pastagens, que abrigam 224 milhões de cabeças de gado (dados de 2021, segundo Abiec). Com isso, o Brasil se tornou o maior exportador de carne do mundo, tendo vendido 2,26 milhões de toneladas para mais de 150 países em 2022.
Mas tanto a forma de ocupação do território como o sistema de produção expõem a atividade a riscos, entre eles o ambiental e o climático. Com uma cadeia produtiva complexa, que se estende entre fornecedores diretos e indiretos, a pecuária brasileira ainda não consegue identificar com precisão a origem do gado. Isso expõe a atividade a riscos de desmatamento, com prejuízos para o clima e para a proteção da biodiversidade em Unidades de Conservação e Terras Indígenas, assim como das populações que ali vivem.
As crescentes pressões do mercado consumidor, especialmente dos países europeus e dos Estados Unidos (e futuramente da China), chamam a atenção para a necessidade de rastrear a origem do gado, de modo a manter laços comerciais com esses países.
Mas, mais do que isso, a rastreabilidade é importante para o Brasil atuar de forma protagonista na arena geopolítica. A rastreabilidade não se presta apenas a coibir o desmatamento e assegurar mercados, o que por si só já é extremamente positivo, mas constitui uma enorme oportunidade para o Brasil.
Poucos países têm condições de oferecer grandes volumes de alimentos de baixo carbono, caso o desmatamento seja equacionado. Ao mesmo tempo em que oferece produtos rastreados e de baixo carbono ao mundo, o Brasil poderá cobrar rastreabilidade do mundo também, no que se refere à pegada de carbono.
Nesse campo, o Brasil deve ser imbatível – por exemplo, em metano, mencionado na apresentação de Kevin Karl, da Columbia University. As condições de pastagem, produção, de energia e logística no Brasil podem ser bem mais eficientes em carbono do que aquelas de produção em confinamento, feita nos países do Hemisfério Norte.
Ou seja, a rastreabilidade em sentido mais amplo, relacionada a externalidades de forma geral, é capaz de colocar o Brasil em uma posição muito estratégica. O mercado brasileiro pode ser altamente beneficiado e ser visivelmente competitivo naquilo que o mundo está cobrando: baixo carbono, bem-estar animal, inclusão social e suprimento de proteínas dentro do contexto da segurança alimentar.
Ação de curto prazo: a proposta CAR+GTA
Para isso, um primeiro passo é implementar a rastreabilidade no curto prazo por meio de uma política pública. Como já mencionado, essa alternativa pode ser construída por meio do cruzamento entre Cadastro Ambiental Rural (CAR) e Guia de Trânsito Animal (GTA). Com assessoramento técnico da Agroicone, a Abiec se debruçou sobre essa proposta, a fim de detalhar como implementá-la.
Criado pela Lei nº 12.651/2012 (Novo Código Florestal), no âmbito do Sistema de Informações sobre Meio Ambiente, o CAR é um sistema eletrônico nacional obrigatório para propriedades e posses rurais. Trata-se de um cadastro autodeclaratório e obrigatório para a conformidade dos imóveis rurais perante a lei ambiental. Comprova os critérios de conservação, permite gerir o uso da terra nas áreas privadas, e serve como requisito central para pleitear o desmatamento legal. Tem como objetivo específico monitorar a manutenção, a recomposição, a regeneração, a compensação e a supressão da vegetação nativa e da cobertura vegetal nas Áreas de Preservação Permanente, Reserva Legal e Áreas de Uso Restrito no interior dos imóveis rurais.
Já a GTA é um instrumento inerente ao trânsito dos animais, nos termos da Lei 12.097/2009, que trata da rastreabilidade na cadeia produtiva das carnes de bovinos e de búfalos. Este instrumento de controle, também autodeclaratório e obrigatório, é de fundamental importância para evitar a propagação de doenças, permitir a gestão sanitária, favorecer a certificação para exportações e implementar a rastreabilidade.
Cada Unidade da Federação possui suas diretrizes para a emissão da GTA, conforme a Secretaria de Defesa Agropecuária do Estado. O pecuarista que está movimentando os animais deve preencher 21 campos da Guia com informações entre as quais: espécie, quantidade, finalidade do transporte, etapas de vacinação, de procedência e destino, dados de localidade, nome, CPF/CNPJ, código do estabelecimento do produtor e os dados do receptor de destino.
Conforme Leila Harfuch, da Agroicone, se a GTA passar a exigir informações relativas ao CAR, será possível combinar as informações ambientais ao trajeto dos lotes dos animais, do nascimento ao abate, agilizando a rastreabilidade – esta é a proposta encaminhada ao governo. Para que se efetive, será preciso um maior envolvimento do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) no sentido de regular, promover e facilitar esta integração.
Enquanto essa exigência não existe, é possível, desde já, solicitar as informações de identificação contidas nas GTAs, relacionadas à compra de animais ao fornecedor direto, de forma voluntária. E, a partir daí, buscar, por “semelhança”, o CAR do fornecedor indireto, a partir do cruzamento de dados da GTA, do CAR e outras bases. Outro caminho é identificar por “semelhança” o CAR do fornecedor indireto, a partir do cruzamento de dados entre as bases de dados da GTA (via acesso direto à base de dados nos sistemas de defesa agropecuária dos estados), do CAR e outras bases, de forma a identificar onde esses animais passaram.
A conexão compulsória do número de inscrição do CAR na GTA, com vistas a monitorar o desmatamento ilegal de toda a cadeia de fornecedores de gado de corte, conteria duas etapas. Na primeira, a Secretaria de Defesa Agropecuária do Mapa determina a obrigatoriedade de informar o número de inscrição do CAR nos cadastros dos produtores junto aos serviços de defesa estaduais, sendo incorporado às GTAs a serem emitidas. Ou seja, em uma operação entre dois produtores, o número de inscrição do CAR de ambos estaria discriminado na GTA (origem e destino).
Em seguida, os CARs dos fornecedores dos animais comercializados em uma operação também devem ser explicitados na GTA. Por exemplo: em uma operação final entre o fornecedor direto e o frigorífico, a GTA emitida conteria não só o número de inscrição do CAR do fornecedor direto, mas também dos indiretos. Este processo seria encadeado, incorporando todo o histórico de movimentações de animais de determinado produtor e seus fornecedores.
Para evitar medidas unilaterais estado a estado, recomenda-se a aprovação de uma normativa que envolva o MAPA e o Serviço Florestal Brasileiro (e/ou o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos). A normativa deve incluir apenas o número de inscrição do CAR nas GTAs, evitando a exposição de dados privados.
Outro risco a ser evitado é o de exclusão dos produtores. Para isso, será preciso criar uma estrutura de governança capaz de compartilhar responsabilidades, ônus e bônus ao longo dos diferentes ciclos produtivos, frigoríficos, governos, instituições financeiras, varejo e as de apoio à cadeia.
Esta proposta não exclui – ao contrário, complementa – a rastreabilidade individual do boi, que é mais complexa, custosa, e deve ser desenvolvida no médio e curto prazo, por meio um sistema de implantação de chips e brincos. Finalmente, a solução apresentada aqui melhorará a gestão integrada dos riscos relacionados à origem da carne bovina e aumentará a capacidade do Brasil de se comunicar com públicos internacionais e domésticos e enfrentar as pressões relacionadas ao desmatamento associado à indústria.