A ciência consegue montar um retrato preciso e detalhado sobre um território a partir de dados. Mas um território vai além de dados, ele é composto por histórias, por percepções, por sonhos, por relações de poder. Para equilibrar a nossa racionalidade limitada precisamos de muita sensibilidade, precisamos da cultura
Por Fernanda Rennó*
“(Re)Conhecer práticas culturais é um caminho indissociável da sustentabilidade”. O artigo “Os Jardins de Veneza e as Amazônias” termina com essa frase, e este começa com ela. De certa forma, as próximas linhas são uma continuidade reflexiva, uma variação sobre o mesmo tema: as Amazônias e o Brasil.
“A Amazônia coloca o Brasil no mundo e a Amazônia de hoje tira o Brasil do mundo. Do ponto de vista político, não se tem segurança climática sem Amazônia protegida” (Izabella Teixeira). Que o Brasil deve estar neste cenário parece óbvio, e, para tanto é necessário a construção de uma ambição para as Amazônias. Uma ambição que consiga conciliar capital natural e justiça social, que possibilite conservar a floresta e melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem nesse território integrando diferentes visões e percepções, considerando a sua imensa diversidade territorial e sociocultural.
A ciência consegue montar um retrato preciso e detalhado sobre um território a partir de dados. Mas um território vai além de dados, ele é composto por histórias, por percepções, por sonhos, por relações de poder. Para equilibrar a nossa racionalidade limitada precisamos de muita sensibilidade, precisamos da cultura.
A cultura desempenha um papel fundamental na relação da sociedade brasileira com as Amazônias, abrangendo aspectos de identidade, conhecimento, conservação e desenvolvimento.
A presença da floresta e sua incorporação diversificada, como objeto ou como sujeito, como antagonista ou como parceira, por exemplo, impõe uma primeira camada de sentidos e de práticas culturais que balizam as atividades socioeconômicas, suas representações e seus valores. A cultura é simultaneamente a capacidade simbólica – costumes, ideias, crenças e representações e as estruturas materiais – instituições, formas de reprodução material, padrões de comportamento e regimes de convivência – transmitidas e reinventadas intergeracionalmente de maneira criativa por grupos sociais para a manutenção de seu ser e de seu estar no mundo.
As culturas estão impregnadas de historicidade que, uma vez assumidas e investigadas, permitem descortinar oposições e conflitos entre grupos e no interior de cada grupo social. A cultura pode ajudar a entender melhor o contexto social, angústias, desejos, conflitos e assim, apoiar a formulação de estratégias e políticas.
A cultura é chave para colocar a Amazônia no centro do Brasil, no centro do universo mental brasileiro. A Amazônia precisa fazer parte da identidade brasileira, o brasileiro tem que ter orgulho de ser o país da Amazônia. É preciso quebrar estereótipos e atualizar imaginários, apresentando uma visão mais complexa e respeitosa sobre esse território.
Reconhecer a Amazônia como um patrimônio compartilhado de todos os brasileiros reforça a responsabilidade coletiva pela sua preservação e respeito. A promoção da cultura amazônica no cenário internacional pode fortalecer a imagem do Brasil como um país diverso e comprometido com a preservação de suas culturas e meio ambiente.
Existem diferentes caminhos possiveis para aproximar cultura e ciência mas, sem dúvida, a arte é uma porta de entrada muito eficiente para isso. Abrindo essa porta, dois movimentos são essenciais: aproximar a ciência da arte e aproximar a arte da ciência. São movimentos inversos mas complementares, de tolerância e porosidade de saberes, visões e cosmovisões.
Aproximar a ciência da arte
A arte pode ser pensada e absorvida para além da estética e do deleite, como informação capaz de sensibilizar, potencializar e engajar. O que a arte fala sobre temáticas contemporaneas e urgentes? O que ela provoca sobre diferentes visões? Como ela apresenta as relações entre pessoas espaço e tempo? De que forma tudo isso consegue recompor junto com dados científicos uma paisagem, uma narrativa mais aterrissada, capaz de mostrar e engajar mais pessoas sobre tematicas contemporaneas e urgentes?
O primeiro passo para aproximar a ciência da arte é (re)conhecer. Este é um esforço complexo, que requer uma abordagem multidisciplinar, colaborativa e contínua. A produção uma plataforma arrojada e contemporânea, uma ferramenta de aproximação capaz de dar visibilidade à densidade, à complexidade e às riquezas socioculturais desse território, algo que funcionar como uma espécie de atlas.
A criação de um Atlas Cultural das Amazônias consegue levar as Amazônias para o Brasil e trazer o Brasil para as Amazônias. Um atlas com o valor e o peso histórico desse conceito, e a leveza e infinidade de possibilidades do presente e do futuro consegue ir até as Amazônias. Ir significa esta, mas, significa também conhecer.
Aproximar a arte da ciência
Novas representações, novas artes, novos símbolos são essenciais para iluminar provocações ao dinamismo do mundo a partir de temas importantes com respaldo científico.
Aproximar a arte da ciência significa convidar. Significa invadir ambientes técnicos e científicos com arte, levar artistas aos principais eventos e discussões sobre clima natureza e sociedade para se alimentarem de dados e fatos, e, a partir de uma mistura com sua bagagem cultural e artística, produzir arte. Artes estas que alcançarão um númeto muito maior e diversificado de pessoas, abrindo diálogos, aproximando mundos, sensibilizando visões, processos e ações.
O futuro do mundo está ligado ao futuro da Amazônia. Não existe futuro sem ciência, assim como não existe um mundo sem a arte. O mundo do futuro precisa da fertilização da arte com a ciência e da ciência com arte.
*Fernanda Rennó é Doutora em Planejamento Territorial – Meio Ambiente e Paisagem, pela Université de Toulouse/UFMG. Atualmente é membro do Núcleo de Governança da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia onde é também responsável pelas frentes de Cultura e Bioeconomia