No cenário de eventos extremos cada vez mais frequentes, a agropecuária e o chamado sistema agroalimentar – conjunto de engrenagens que produz os alimentos que chegam aos pratos de 8 bilhões de pessoas no planeta – tornaram-se fundamentais na agenda de negociações das conferências globais do clima
Por Isabel Garcia-Drigo e Renata Fragoso Potenza*
No centro da pauta da COP 29, conferência do clima a ser realizada em Baku no mês que vem, está a espinhosa questão do financiamento – a chamada Nova Meta Quantificada Coletiva (NCQG, na sigla em inglês). A missão é tirar o custeio das medidas de mitigação, adaptação e compensação do terreno do abstrato e definir quem, como e quanto se paga para fazer a mudança que o mundo precisa. Na reunião de junho, em Bonn, que prepara a construção de consensos para as negociações da COP no fim do ano, confirmou-se que a discussão deve ser tensa e cercada de controvérsias. Outra frente propícia a tensões, pelo menos nas conversações iniciais, foi a de sistemas alimentares e agricultura, que no fim da reunião de Bonn decolou e pode ganhar envergadura nas duas próximas COPs.
Não surpreenderia. Em um cenário de extremos climáticos cada vez mais frequentes, a agropecuária e o chamado sistema agroalimentar, conjunto de engrenagens que produz os alimentos que chegam aos pratos de 8 bilhões de pessoas no planeta, tornaram-se fundamentais na agenda de negociações.
A agropecuária é a atividade mais vulnerável à mudança climática por depender diretamente dos capitais naturais (água, solo e biodiversidade) e do regime climático (chuva e sol) para ser viável e perene. Paradoxalmente, em contextos como o brasileiro, maior produtor mundial de alimentos, a atividade responde também por parcela significativa das emissões de gases do efeito estufa, seja por persistirem processos produtivos ineficientes, seja pelo desmatamento que carrega embutido.
Segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg), a agropecuária brasileira responde por 27% das emissões de gases de efeito estufa do País, e a participação chega a 75% quando se considera a mudança de uso da terra associada às atividades rurais de forma direta ou indireta – leia-se o desmatamento, legal ou ilegal, para pasto ou plantio.
A produção primária no campo é o primeiro grande elo que compõe o sistema agroalimentar. Sem ele, os processamentos subsequentes não existiriam e a própria sobrevivência humana estaria ameaçada pela insegurança alimentar. Diante dessa importância, foi uma vitória que o encontro de Bonn deste ano tenha resultado em um roteiro de atividades para construção de um roadmap (mapa do caminho) de adaptação do setor até 2026, sob a batuta do Grupo de Trabalho conjunto de Sharm el-Sheikh (COP 27) sobre Agricultura e Segurança Alimentar.
Não foi um consenso fácil e demorou 18 meses para que os países deixassem de lado divergências sobre a governança do grupo e concordassem com um programa de trabalho. Mas agora há um mapa do caminho, e ele prevê dois workshops – em junho de 2025 e em junho de 2026 –, que devem trazer para a mesa de discussão quais são as melhores abordagens e práticas para baixar as emissões e aumentar a resiliência das diversas agropecuárias praticadas no mundo e dos diferentes sistemas agroalimentares, sem comprometimento da segurança alimentar da população mundial.
Mapear soluções implica se debruçar também sobre como se daria sua implementação. E é aí que o tema dos sistemas agroalimentares ganha uma importante conexão com a agenda de financiamento deste ano. O relatório Receita para um Planeta Habitável: Alcançar Emissões Líquidas Zero no Sistema Agroalimentar, publicado em maio pelo Banco Mundial, estima investimento anual da ordem de US$ 260 bilhões (aproximadamente R$ 1,3 trilhão) para reduzir pela metade as emissões agroalimentares até 2030 e atingir zero emissões líquidas até 2050. É uma cifra expressiva, mas corresponde à metade do que os governos investem hoje em subsídios agrícolas, que financiam, inclusive, práticas e produtos nocivos ao ambiente, conforme o relatório.
O segundo movimento promissor em Bonn foi o lançamento de uma roundtable (mesa redonda) brasileira sobre Soluções para a Transição Justa dos Sistemas Agroalimentares, pilar da ThinkFood&Climate Initiative, coordenada por Imaflora, Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo e Cebrap Sustentabilidade. Ainda que originada no Brasil, a roundtable foi concebida com o objetivo de estar conectada com o Grupo de Trabalho de Agricultura da UNFCC e com as alianças formadas em torno da Declaração sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática, assinada por 133 países, entre eles o Brasil, na COP 27.
Qual a relevância de uma roundtable? Quem acompanha o modo como o multilateralismo das convenções funciona e sua lentidão diplomática, sabe da importância de reunir em outra arena atores governamentais, organizações da sociedade civil, academia e representações do setor privado para acelerar o conhecimento sobre o que fazer e como. Longe de criar mais um fórum para apenas constatar o problema, essa é uma tentativa concreta de usar a força de coletivos brasileiros e internacionais para descrever soluções e dar visibilidade ao que é preciso consertar ou destravar nas políticas e ações, tanto públicas quanto privadas.
No caso brasileiro, um exemplo claro é fazer com que cem por cento do Plano Safra e do Plano Safra da Agricultura Familiar financiem apenas modelos produtivos e práticas sustentáveis. Outra oportunidade no Brasil é descrever as medidas de adaptação necessárias e seu custo, considerando o zoneamento de riscos climáticos já existente no país.
Esse foro deve avançar ainda sobre temas como diversificação de produção para quebrar a monotonia alimentar, intensificação da pecuária de corte com redução de emissões, caminhos para zerar o desmatamento e incentivos eficazes para que os produtores abracem tal causa. Há um capítulo a ser escrito em novembro e ele será decisivo também para uma conquista palpável e robusta na COP 30, que o Brasil sediará em Belém em 2025.
*Isabel Garcia-Drigo, doutora em ciência ambiental e diretora do Programa de Clima, Uso da Terra e Políticas Públicas do Imaflora, e Renata Fragoso Potenza, especialista em Políticas Climáticas na mesma instituição.