Com fotos exclusivas e depoimentos inéditos, o livro “Frans Krajcberg: a natureza como cultura” apresenta a vida e a obra deste que é considerado um dos maiores artistas plásticos do século XX. Como escultor, fotógrafo e pintor, Frans Krajcberg acumulou centenas de prêmios, participou de mais de 200 exposições coletivas e 92 individuais. Mas talvez o maior legado tenha sido inspirar a luta ambientalista, como a de João Meirelles, que traz nesta nova obra a biografia de um artista inconformado e transgressor, que entendia a arte como um manifesto. Confira a entrevista com o autor
Por Amália Safatle
4 de agosto de 1985, Juruena, Mato Grosso: “Ao lado da pista deixamos o carro e nos embrenhamos na mata. Frans vibrou com as árvores. E começamos logo a trabalhar a serra, o machado e o facão. Cortamos palmeiras de tucum que para ele servirão de paus para escultura. Eu cheguei a chorar de alegria, de me ver, ali, suando, junto à floresta […]. Frans, agitadíssimo, andava para lá e para cá, olhava muito, pensava, gastou filmes com alguns pequenos detalhes e se satisfez imenso. Zé [José do Nascimento Costa] trabalhava sem parar, derrubando pequenas palmeiras que Frans escolhia. Eu também trabalhava na derrubada e corte das palmeiras. Encontramos cipós, não os excepcionais como quer Frans, mas belos exemplares. […] com o suor o mosquito pium também trabalhou incessantemente. Hoje introduzíramos as luvas no nosso vestuário. […] Fiquei com o rosto deformado de tantas picadas. […] Saímos do mato às cinco horas e fomos ao porto. Belo anoitecer! Jantar e gravações. Frans, entusiasmado, falou por meia hora sobre a viagem. A principal mensagem: – o Brasil está em decadência, tudo está sendo destruído, cercado, queimado!”
Esse excerto de um diário do ambientalista João Meirelles está nas páginas de sua mais nova obra, Frans Krajcberg: a natureza como cultura (Edições Sesc e Edusp, 2024), e é considerado pelo autor um dos trechos mais emblemáticos deste livro que conta a vida do artista radicado no Brasil, onde se tornou um militante ambientalista por meio da arte – ou, mais que isso, um artista transgressor.
A obra é resultado da “encomenda” que o escultor, pintor, fotógrafo e ativista ambiental Frans Krajcberg (1921-2017) fez ao ativista, amigo e colaborador João Meirelles, em 1985. Quase 40 anos após o pedido e muita pesquisa, finalmente a biografia de Krajcberg vem a público. Com fotos exclusivas e depoimentos inéditos, o livro apresenta a vida e a obra deste que é considerado um dos maiores artistas plásticos do século XX, nascido na Polônia em uma família judaica e naturalizado brasileiro.
A maioria de seus familiares próximos (com exceção de uma irmã) foi morta nos campos de concentração. Em 1948, Krajcberg emigrou para o Brasil, onde foi acolhido pela família de um tio. Não conseguiu sossegar. “Os traumas da juventude o fizeram desgostar da convivência com as pessoas”, diz o livro. Junto à natureza, “se sentia mais verdadeiro, mais inteiro”. Viajou por todo o Brasil e se apaixonou pela natureza dos diversos biomas brasileiros, das araucárias do Paraná à Mata Atlântica e os campos de Minas Gerais. Ao se deparar com as queimadas na viagem a Juruena, no Mato Grosso, “as árvores calcinadas devem ter evocado memórias de guerra em Krajcberg, que começou a gritar, e continuou gritando até o mundo escutar sua voz contra as queimadas e a devastação, pela proteção aos biomas brasileiros”.
Krajcberg e seu futuro biógrafo se conheceram em 1984 na casa do artista Sepp Baendereck. No ano seguinte, a “encomenda” foi feita no sítio Natura, em Nova Viçosa (BA), onde o artista vivia. Um profundo trabalho de pesquisa remonta à infância e à adolescência, à experiência-limite nos campos de concentração nazistas e conta como Krajcberg redescobriu a vida ao se estabelecer no Brasil, fazendo da denúncia da destruição do meio ambiente o grande tema de sua arte.
Como escultor, fotógrafo e pintor, Frans Krajcberg acumulou centenas de prêmios, participou de mais de 200 exposições coletivas e 92 individuais, sendo presença constante nas Bienais de São Paulo e no circuito de arte nacional e internacional. Ao final da vida, doou seu acervo pessoal de obras e objetos, bem como seu sítio em Nova Viçosa, ao governo do Estado da Bahia, responsável por seu legado. Mas talvez o maior legado tenha sido inspirar a luta ambientalista, como a de João Meirelles.
Diante disso, Página22 propôs Três Perguntas Para… João Meirelles:
1.
O livro traz a afirmação de que “a arte pela arte acabou”, com Frans Krajcberg entendendo a arte como um manifesto. Você tem essa mesma visão? Os tempos extremos em que vivemos, que inclui a emergência climática e ambiental, impõe que a arte exerça um papel mais político, de denúncia e ativismo?
A partir de 1984, na Amazônia, na feita que mergulhou no universo da queimada e disse “eu sou um homem queimado”, Krajcberg assumiu-se militante ambientalista no lugar de artista plástico. Isso é o seu manifesto, ele deixa a busca apenas estética para se posicionar politicamente. Ele é o homem-manifesto. A vida dele foi uma luta permanente, principalmente contra a estultice e a insensatez. É nisso que é admirável: assumiu as batalhas do presente, posicionou-se dura e abertamente contra a degradação ambiental – à sua maneira, como artista. Por mais que dissesse ser apenas um militante ambientalista, transgredia como artista.
2.
Krajcberg foi descrito no prefácio do livro como um indivíduo duro e egocêntrico. Ele mesmo dizia não gostar de gente. “Um pedaço de pau no meio do mato chega a me dizer mais que algumas pessoas”, afirmou. Você escreve em um trecho: “Frans pouco se relacionava com as pessoas, fossem ribeirinhos ou os novos colonos, tampouco se interessava por seus sofrimentos e alegrias. Sua ideia fixa era a forma vegetal, natural ou destruída, a paisagem , as formas e as cores”. Ao mesmo tempo, como está no título do livro – “a natureza como cultura” –, ele dizia que o pedaço queimado de madeira era ele. O ambiental e o social, em vez de vistos juntos, eram considerados por Krajcberg uma coisa só, sendo o ser humano parte intrínseca da natureza? Como era a sua convivência com ele?
O seu egocentrismo era um mecanismo de defesa, de sobrevivência. Não há como negar que foi duro com muitos. Quem lograva penetrar em sua alma, compartilhar o seu cotidiano sem as firulas da bajulação ou da distância, concebia-o de maneira diversa. Ele não tolerava falastrões, palpiteiros, pseudos-isto e pseudos-aquilo – meio termo não lhe servia, rejeitava. A própria Bíblia, no Apocalipse (3:16) trata do assunto – “como és morno, nem frio e nem quente, vou vomitar-te”.
Quando eu tinha vinte e quatro anos, esse jovem de sessenta e cinco anos, a idade que tenho hoje, recebeu-me de braços abertos para experimentarmos juntos esse seu novo momento – a idade não foi barreira para explorar a conjugação de arte e floresta. Viajamos algumas vezes, foi um período intenso e nada fácil o seu ser espartano, mas foi um período criativo e de decisões que marcaram a minha vida. Daí, o compromisso de escrever a biografia, há quarenta anos, agora se vê cumprido.
Foi Pierre Restany, o grande crítico francês, amigo de Krajcberg, quem formulou “a natureza como cultura”. Restany cobriu com o manto de sua teoria o que Krajcberg fazia. O manifesto do Rio Negro é obra de Restany, mas foi Krajcberg que abraçou essa bandeira até o fim de sua vida. De fato: Krajcberg ignorava as pessoas do lugar, uma pena, perdeu a oportunidade de ouvi-las e acolhê-las. A maior parte dos viajantes naturalistas e artistas que perambularam pela Amazônia, tema a que, igualmente me dedico, também assim se comportava. Não é uma justificativa, longe disso. Mas, esse era o seu jeito de ver o mundo. Em depoimento a Zé do Mato, seu mais constante, fiel e relevante colaborador, disse: “foi aqui em Nova Viçosa, aqui criei a minha família, aqui estou em minha casa, aqui dormi na minha cama, na primeira vez na minha vida”.
Krajcberg tinha cinquenta anos quando se estabelece no Sul da Bahia e “sente-se em casa”. Ali, cria laços de amizade, aprende a ouvir seus assistentes, que almoçavam com ele, eram os seus colegas de pescarias, co-descobridores na caça às madeiras debulhadas pelo mar e na conformação de suas obras… Mas, nas viagens, pouco se relacionava com as pessoas, era metódico e focado na paisagem estética da natureza brasileira – as suas formas, cores, relevos.
Eu diria que Krajcberg chega a algum lugar no relacionamento com as pessoas quando expõe as suas obras, de peito aberto: – quem adentra uma exposição de suas esculturas monumentais e fotografias não fica impune – com sua arte, ele diverte e subverte, em ambos sentidos desses verbos –, não é possível simplesmente contemplar a sua obra, ela exige ação, manifesta-ação!
3.
O que Krajcberg representou para você, além de ter inspirado o seu ativismo? Com a diferença de idade, ele seria como um mestre, ou mesmo uma representação paterna, em comunhão com os seus ideais de ambientalista?
Um mestre provocando-me constantemente. Jamais baixou a guarda, sempre me exigiu ao máximo, sem desculpas. Mesmo em seus últimos anos de vida exigia de mim que lutasse pela Amazônia, pela causa ambiental – o seu discurso foi imutável. Meu pai é, sem dúvida, meu grande mestre, não seriam comparáveis. Não teria alcançado compreender Krajcberg sem as oportunidades que meu pai me deu – lançar-me pela Amazônia em busca de minha própria identidade.
Krajcberg foi a pessoa certa no momento certo; e tive o discernimento de ouvi-lo e aceitá-lo (o que não foi fácil). A própria biografia é um paciente exercício de compreendê-lo – ser honesto com a sua história é um fundamento dessa biografia, é um ser humano com as suas lisuras e errâncias. O ativismo como profissão, devo-a a meu pai. A de ativista ambiental, por mais de quarenta anos, a essa convivência com Krajcberg nos anos oitenta.