Parceria da Ambipar com a Be8 vai testar a substituição total do diesel fóssil pelo biodiesel, sem necessidade de adaptação dos motores, com a promessa de reduzir emissões. Se bem sucedida, a tecnologia poderá ser escalada para nível nacional e até internacional, reforçando a tradição brasileira de oferecer soluções no campo dos biocombustíveis, segundo Rafael Tello. Ele conta sobre desafios no caminho, como provar que a tecnologia não causará desmatamento e nem competição com a produção de alimentos
Por Amália Safatle
O que a parceria com a Be8 representa e traz realmente de inovação para o setor de combustíveis, considerando o contexto de transição energética?
Uns três anos atrás, quando se conversava sobre transição energética na mobilidade no Brasil, todo mundo falava de eletrificação de carro, caminhão etc. E meio que se esqueceu a tradição brasileira no desenvolvimento de biocombustíveis. Se for pensar a escala de uso de biocombustíveis no Brasil, é um negócio que deve ser dos maiores do mundo. Combinado com a matriz limpa de energia que temos no Brasil, podemos ter um protagonismo internacional em transição energética.
A tecnologia do biodiesel já existia, foi inclusive mote do governo Lula 2, quando teve o Plano Nacional do Biodiesel [O Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel foi criado há 20 anos, pela Lei nº 11.097/2005]. Havia ali a ideia de fazer grande uso industrial da mamona e de outras sementes oleaginosas transformadas em biodiesel. Mas aquele biodiesel gerava problemas técnicos, diminuía a vida útil dos motores convencionais. E, infelizmente, não houve incentivo e interesse de trabalhar a tecnologia para resolver isso.
A gente já vinha testando nos nossos caminhões alternativas ao diesel, já tinha testado o GNC [gás natural comprimido] como uma forma de ser uma transição para o biometano – algo que o Brasil tem potencial para desenvolver –, já tinha testado célula a hidrogênio para queimar em caminhões de diesel, e já ia começar o nosso primeiro teste com uma montadora, em um caminhão adequado para o uso de B 100, ou seja, 100% biodiesel.
Porque essa é a dificuldade quando se fala de transição [energética]: você tem de casar uma série de atores para o processo funcionar. Tem de ter o caminhão adequado, o posto de abastecimento no lugar correto, e o cliente que tope pagar esse valor um pouco mais alto nesse período inicial. Tudo isso a gente já tinha amarrado: já tinha um caminhão, um cliente e a definição da rota.
Quando nós estávamos em Davos, no Fórum Econômico Mundial, veio a Be8, que era a nossa parceira na Casa Brasil, e nos disse que tinha desenvolvido um novo biodiesel apto a ser colocado em motor convencional. A grande vantagem dessa tecnologia é a possibilidade de usar o combustível com uma taxa de emissão muito mais baixa do que um diesel fóssil, sem necessidade de adaptar caminhão, comprar novo caminhão, de fazer um novo processo.
Quando o Programa Nacional de Biodiesel foi lançado lá atrás, tinha essa promessa de que não era necessário promover uma adaptação dos motores, eles poderiam ser usados e a mistura de biodiesel no diesel aumentaria gradativamente, de 5% para 10% e assim por diante.
Em níveis baixos, não haveria problema mesmo para os motores. Mas não no caso do B100, o 100% biodiesel, que é o que pode trazer grande redução de emissões. O formato da molécula do biodiesel é muito diferente do formato da molécula do diesel. Então, no motor, ela não funciona tão bem, traz problemas de entupimento e de aceleração do desgaste do motor. E aí o que a Be8 fez foi desenvolver uma tecnologia pela qual purificando o biodiesel e colocando o aditivo correto, conseguia deixar essa molécula do biodiesel muito mais parecida com a do diesel.
E com o mesmo desempenho?
A gente vai testar agora.
Vocês vão testar na frota da Ambipar?
Como eles falaram que esse era um combustível adequado para qualquer tipo de motor a diesel, a gente resolveu começar com 10 caminhões pesados, uma operação de gestão de resíduos, gestão e valorização de resíduos, na linha amarela – trator, escavadeira – e em uma embarcação também.
Então vocês ainda não sabem os resultados?
Nós fechamos essa parceria em Davos duas semanas atrás. Já fizemos a primeira conversa para definir onde que vai ser, rota, operação, tudo isso. Na semana passada, tivemos a primeira conversa operacional. Hoje tivemos a primeira conversa técnica de cálculo de redução de emissões, e na semana que vem faremos a definição dos locais para saber preço e condição de abastecimento para começar a operar. Ainda nesse primeiro trimestre, a gente vai começar esse teste.
Em quanto tempo vocês terão os resultados?
A princípio, 90 dias para obter a primeira análise. Mas isso é algo que vai acontecer ao longo do ano.
E quem fará o teste?
Serão as nossas áreas de logística, gestão de resíduos e apoio marítimo.
A partir disso, vocês poderão calcular as emissões evitadas [na comparação com o diesel]? Isso poderá ser usado, por exemplo, no mercado de carbono?
Na verdade, a nossa questão aqui na Ambipar é dar mais um passo para conseguir o net zero. Temos uma meta de reduzir 50% das emissões até 2030 e de ser net zero em 2050. Uma das fontes principais de emissões é o diesel. Hoje você não tem uma alternativa de eletrificação adequada e a gente ainda tem dificuldades para trabalhar o biometano. Então, o biodiesel é uma boa alternativa. Se ele for esse de plug in, em que se consegue colocar direto no motor sem necessidade de nenhum ajuste, melhor ainda.
Isso seria inédito? Existem outras experiências?
A B8 está em outras empresas, eles já fizeram muitas horas de teste, só que agora a gente vai colocar em condição operacional. A nossa parceria é justamente para oferecer também os nossos dados de telemetria de eficiência, para que eles possam também trabalhar a melhoria desse combustível. Então é uma parceria mesmo, vamos trocar dados e vamos entender como isso pode evoluir realmente pra ser um bom substituto do diesel.
Isso funcionando, pode-se pensar no uso pelo Brasil na frota nacional de caminhões?
O negócio é dar escala, para ajudar a reduzir o custo desse combustível. Mais do que pensar em mercado nacional, é poder pensar no mercado internacional e usar isso como uma fonte de desenvolvimento do País.
Este biodiesel desenvolvido pela Be8 tem de ser oriundo da soja? Há possibilidade técnica de produção a partir de outras oleaginosas?
A Be8 utiliza diversas matérias-primas para a produção de biodiesel, não se limitando apenas à soja. Dependendo da unidade de produção, são empregadas diferentes fontes oleaginosas e gorduras. Por exemplo, a unidade de Passo Fundo (RS) utiliza soja, gordura animal e óleo de cozinha usado; a unidade de Marialva (PR) emprega óleo de soja e gordura animal; a unidade de Nova Marilândia (MT) utiliza óleo de soja e óleo de algodão; a unidade de Floriano (PI) utiliza principalmente óleo de soja; e a unidade de Santo Antônio do Tauá (PA) emprega óleos de palma, soja e gorduras animais. Além disso, a Be8 incentiva a diversificação de oleaginosas, promovendo o cultivo de canola, girassol e soja entre agricultores familiares, ou seja, há viabilidade técnica para a produção de biodiesel a partir de diversas oleaginosas, e a Be8 já implementa essa diversificação em suas operações.
Quando, em 2006, cobrimos na revista o Plano Nacional de Biodiesel, um dos pontos que levantamos foi que, embora a tecnologia fosse nova, corria-se o risco de o programa ficar restrito a uma monocultura como a soja. E de ser capturado por ela, em vez de envolver pequenos produtores com produção diversificada de oleaginosas.
No caso da Be8, estamos falando de uma tecnologia nascente. Acho que no primeiro momento, o desafio maior é realmente conseguir fazer essa tecnologia funcionar, com o combustível sendo inserido no maquinário e sendo competitivo. Depois que você ajustou essa tecnologia, é desejável trazer esses outros ganhos.
Trabalhar com uma cultura que já está dominada e estabelecida cria uma segurança de fornecimento?
Exato. E o biocombustível já sofre uma resistência internacional. E ele já é uma alternativa que tem muitos adversários localmente. Falam que vai competir com a comida, que vai promover desmatamento indireto. Esse era o argumento que o pessoal estava usando para não escalar esse tipo de tecnologia.
Mas é algo a se tomar cuidado mesmo, não? Isso não vai acrescentar uma demanda maior de terras para a produção e expandir a fronteira de desmatamento?
No caso, a gente está falando do Rio Grande do Sul. Não é um lugar tradicional por ter grandes extensões de floresta.
Mas existe um bioma sensível lá, o Pampa. Os biomas que não são florestados chamam menos atenção, mas têm uma importância biológica também.
Mas a cultura de soja já é tradicional lá na região, não teria a necessidade de abrir outras áreas. O que eu coloco é que, às vezes, tem alguns argumentos que eles são falaciosos, porque, mesmo que você prove com dados, com histórico, e o Brasil, para a nossa alegria, tem essa disponibilidade de informação com a Embrapa, com tudo isso – mesmo você mostrando isso, as pessoas falam: “Ah, não aconteceu, mas pode acontecer”. E que, na minha percepção, soa mais protecionismo do que preocupação ambiental. É esse o meu ponto.
A gente pegou alguns parâmetros, alguns calculadores internacionais e, para nossa surpresa completa, apareceu que ao trocar o biodiesel pelo biodiesel, a sua pegada de carbono ia aumentar. Tem uma série de parâmetros que são colocados naquelas calculadoras, quantidade de emissão gerada na produção agrícola, junto com a mudança de terra de décadas atrás, que entra na conta, e não sei mais o quê. No limite, uma conta dessas vai dizer que é melhor a gente continuar com o fóssil do que partir com uma renovável, sabe?
Então, dentro dessa parceria, vamos pegar os nossos dados para a gente conseguir ter uma posição robusta, técnica, de quanto que o biocombustível pode ser benéfico também para o combate às mudanças climáticas.
Seria bom isso ser feito por um instituto independente, uma universidade, porque poderão dizer que vocês são suspeitos para falar, não é?
É. Estamos inclusive, discutindo com universidades aqui no Brasil, e com algumas organizações do terceiro setor técnicas para ter esse olhar. Nossa ideia é realmente trazer os dados e informações, mas abrir para uma pesquisa robusta que possa mostrar isso.
Agora, supondo que se prove que a substituição do diesel pelo biodiesel traz um grande benefício para o clima, em termos de emissões, e que isso escale para um nível, vamos pensar inicialmente, nacional. Existe algum cálculo de quanto isso demandaria em termos de aumento de produção e, aí sim, impactar no aumento de uso de terras para atender essa demanda?
Como esse é um produto que você precisa beneficiar na indústria, a capacidade de produção será limitada. Como essas indústrias já têm as suas áreas de produção estabelecidas, não me parece fazer tanto sentido que você vai aumentar a área plantada para poder depois construir uma planta industrial – é o contrário. Você tem uma planta, vai buscar cenário produtivo ali, e pegar aquelas oportunidades de área desmatada, para poder recuperar fazendo um plantio produtivo. Eu não vejo possibilidade de conseguir financiamento se falar em desmatamento. Não tem cliente que tope comprar esse produto a partir de desmatamento.
Vocês avaliaram o biometano e não foi tão interessante. Eu queria entender mais sobre outras alternativas possíveis, como etanol celulósico, que também é uma maneira de extrair combustível sem precisar expandir muito a área plantada.
No caso da frota leve, se todas as licenças saírem, teremos etanol de resíduos, com um posto nosso, para abastecer a nossa frota.
O que é o etanol de resíduos?
Fazemos trabalho de varrição de porto e, quando tem transporte de açúcar, às vezes o resíduo fica no chão. Varremos esse resíduo, processamos e o transformamos em etanol. Também pegamos resíduo de bebidas fora de qualidade ou fora de prazo, e transformamos em etanol. Hoje fazemos álcool para limpeza – aquele álcool 70% –, a partir desse resíduo. Tem um caso até muito bacana com a Mondelez: pegamos o resto de bala Halls e alguns doces deles, transformamos em álcool e o devolvemos para eles utilizarem na limpeza da indústria. Também vamos fazer isso transformando em um etanol que vai abastecer parte da nossa frota em Nova Odessa (SP).
Tivemos uma experiência com o GNC. Compramos, de algumas montadoras, o caminhão que não usava diesel e sim gás natural comprimido. O gás natural não era a nossa solução final, mas era uma forma de dar alguma escala e garantia para os atores dentro da cadeia, para amadurecer essa cadeia e permitir o caminho para o biometano. O amadurecimento da cadeia é você ter o produtor do caminhão podendo fazer isso em uma escala maior, reduzindo o custo do caminhão a gás. É garantir para o dono do posto de combustível que ele pode investir em uma bomba de alta pressão para abastecer com gás o caminhão, para que ele possa abastecer na estrada. Com isso maduro, você abre oportunidade de pegar o biometano que vem dos aterros, porque poderia vir da produção do agronegócio, para ser canalizado e colocado nos caminhões.
Fizemos algumas rotas, que chamamos de corredor sustentável, para poder fazer esse teste e promover o desenvolvimento. Tivemos alguns problemas, a performance não foi o que a gente esperava. Fazer esse amadurecimento foi mais difícil do que imaginamos também. Continuamos rodando, mas não expandimos esses testes naquele momento. Fomos buscar outras alternativas.
Outra alternativa testada foi uma célula [a combustível] gerando hidrogênio. Acoplamos uma célula de hidrogênio a alguns dos nossos caminhões. Ele usava o diesel para poder gerar hidrogênio, o hidrogênio era queimado no motor com uma promessa de redução de emissão de gás de efeito estufa pela melhoria da performance da queima. Não era uma tecnologia cara, era interessante, não comprometia a revenda nem a manutenção do nosso caminhão, e resolvemos testar. Mas foi também uma pequena redução. Os caminhões continuam rodando, mas não quisemos escalar esse teste.
Vamos começar esse ano o teste B100, num corredor, onde a gente vai ter o biodiesel lá em São Paulo, e isso não tem nada a ver com a outra ponta da rota, é Mato Grosso. Então ele abastece com biodiesel aqui, vai para lá, abastece com biodiesel lá e volta. Assim, consegue fechar uma rota. Quando você consegue ter um caminhão dedicado, é possível testar a eficiência daquele combustível e a capacidade de fazer isso em outras rotas. Esse é o modelo que adotamos aqui.
E aí, quando estávamos no meio desse processo, conhecemos a Be8. E falamos: “Poxa, tecnologia brasileira, rápida de ser implementada, com a possibilidade de redução de gás de efeito estufa e outros ganhos sociais e ambientais atrelados. Temos que estar juntos”.
Para o Brasil é uma grande oportunidade de chegar na COP 30 e poder mostrar que, mais uma vez, o País consegue inovar nos biocombustíveis. Fizemos o etanol, desenvolvemos essa indústria, conseguimos desenvolver aqui o Total Flex aqui nos carros. Se a gente consegue mais esse processo, será mais um exemplo e uma comprovação da capacidade brasileira de fazer tecnologias ambientalmente amigáveis, capazes de serem adotadas em escala.
O Brasil não é só explorar petróleo na Margem Equatorial, não é mesmo? (risos)
Se a gente está falando de uma neoindustrialização que seja verde, limpa, alinhada com o objetivo de desenvolvimento sustentável, para que a gente realmente tenha um olhar para o futuro, o petróleo é o passado.
Esse biodiesel poderia ser usado também na indústria?
O biodiesel pode ser utilizado em caldeiras industriais originalmente projetadas para operar com óleo diesel. Estudos indicam que a substituição do óleo diesel pelo biodiesel em caldeiras é tecnicamente viável. Por exemplo, uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro analisou a substituição do óleo diesel por biodiesel em uma caldeira, concluindo que essa troca é tecnicamente possível e pode trazer benefícios ambientais.
Ainda assim, é importante considerar que o biodiesel possui propriedades físico-químicas diferentes do diesel fóssil, e essas características podem exigir adaptações no sistema de combustão e manutenção das caldeiras para garantir eficiência e durabilidade. Por isso, é importante realizar uma análise técnica específica para cada caso, avaliando a compatibilidade do equipamento com o uso de biodiesel puro, o B100, e implementando eventuais ajustes.