No Brasil e em vários outros países do Sul Global, dar vozes às minorias por vias institucionais tem sido um desafio, principalmente porque esses atores têm menos poder, recursos e acesso às discussões e canais de participação. Mas exemplos na União Europeia podem ser inspiradores, como a iniciativa Better Regulation, que aumenta o engajamento de cidadãos e organizações na formulação de políticas públicas
Por Mariana Galvão Lyra*
A democracia foi o tema central de um minucioso relatório preparado pela principal organização europeia de financiamento para pesquisa de ponta de excelência: o Conselho de Pesquisa Europeu, que financia pesquisadores criativos de qualquer nacionalidade e idade para executar projetos baseados em toda a Europa. O documento, publicado em 2024, resulta da análise de 215 projetos financiados pelo Conselho e que receberam um investimento total no valor de 368 milhões de euros. Todos os projetos têm um interesse em comum: prometem dar luz à evolução transformadora da democracia.
Se um dos efeitos para enfraquecer a democracia são os rumos que as mídias sociais tomaram, disseminando desinformação e aumentando a polarização na sociedade, por outro lado, o ativismo digital é uma realidade que tem empoderado a mobilização de cidadãos e dado oportunidade para um espectro mais amplo de vozes online. Ao mesmo tempo, iniciativas de base, no nível das comunidades locais e envolvendo protestos com relação à mudança climática têm atraído cada vez mais um público jovem, renovando e enriquecendo os sistemas democráticos.
Para facilitar a organização e apresentação, os projetos foram divididos nos seguintes temas: governança democrática e representação política; eleições e votações; engajamento cidadão (da sociedade); direitos humanos e o Estado de Direito; desinformação, fake news e mídias sociais; e polarização, populismo e autoritarismo.
O que mais me interessou no relatório diz respeito aos projetos financiados em engajamento da sociedade, já que é a temática mais próxima da minha área de pesquisa – engajamento de partes interessadas marginalizadas. No Brasil e em vários outros países do Sul Global, dar vozes às minorias por vias institucionais tem sido um desafio, principalmente porque esses atores têm menos poder, recursos e acesso às discussões e canais de participação.
Um dos projetos em particular chama a atenção para a falta de dados e análises sistematizados sobre o papel das consultas públicas na criação de políticas para a sociedade. Foi liderado por Adriana Bunea, professora na Universidade de Bergen, na Noruega.
Essas consultas, que são realizadas por governos, agências reguladoras e a Comissão Europeia para desenhar poliíticas e propostas legislativas, fornecem uma comunicação direta entre os tomadores de decisão e as partes interessadas. Um dos aspectos que Bunea busca entender são as condições nas quais as consultas às partes interessadas são capazes de propor melhorias na elaboração de políticas públicas.
Eu dei uma lida nos principais artigos que a Bunea publicou sobre o assunto. O foco são políticas públicas supranacionais (ou seja, no âmbito da União Europeia), com destaque para as mudanças na agenda participativa da UE que começaram nos anos 2000 e se consolidaram com a Better Regulation em 2016, sem tradução oficial para o português, mas algo como “(por uma) regulação melhor”. A iniciativa é um conjunto de princípios e ferramentas para melhorar a qualidade da legislação e das políticas da UE.
Enquanto a tomada de decisão informada por evidências geralmente se dá em ambientes mais seletivos, reclusos e menos transparentes, a elaboração de políticas públicas de forma participativa geralmente envolve níveis de transparência significativamente maiores.
A análise pública entre os participantes, suas características, demandas, preferências e procedimentos para tomada de decisão também são levados em consideração. Assim, a nova agenda participativa da UE, com a Better Regulation, marca uma guinada de uma tecnocracia velha e exclusivista para uma tecnocracia mais nova e mais responsiva.
Criticada pela falta de legitimidade de subsídios e credenciais democráticas, as burocracias modernas na União Europeia passaram recentemente por um processo de aumentar e formalizar o processo de diálogo com stakeholders (partes interessadas) envolvidos em políticas públicas. O desenvolvimento de formas institucionais de engajamento nas políticas faz parte desse processo.
Assim, a implementação de políticas que não foram discutidas ou informadas pelas partes afetadas durante o estágio de formulação da política pública via consulta aos stakeholders será difícil e desafiadora. Isso ocorre porque as partes afetadas podem considerar que essas politicas não possuem subsídios ou legitimidade nos processos decisórios suficientes, e assim se recusarão a estar de acordo.
A iniciativa Better Regulation aumenta o componente participativo e estende o escopo de participação de cidadãos e organizações interessadas. Stakeholders são agora convidados a participar também de roadmaps e estágios iniciais de avaliação de impactos, avaliação de impactos sociais, econômicos e ambientais de uma iniciativa, e partes de avaliações e verificação de adequação de políticas já existentes. As avenidas para participação pública foram então estendidas por todo o ciclo de políticas públicas, e oferecem maiores oportunidades para engajamento formal e feedback de stakeholders.
A prática de consolidar as preferências dos stakeholders via consultas é atestada por um memorandum explicativo junto às propostas de projetos de políticas da Comissão Europeia que são enviadas ao Legislativo, ao Conselho, e ao Parlamento Europeu. Os níveis consolidados de apoio a diferentes opções de políticas são mencionados explicitamente no documento.
De acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Comissão Europeia desenvolveu um dos mais ambiciosos processos consultivos no mundo. O uso extenso de plataformas online para engajar stakeholders representa o estado da arte dos regimes de consulta.
Além disso, essas consultas públicas oferecem lições importantes sobre como consolidar a participação de stakeholders na elaboração de políticas públicas em democracias mais avançadas, e sobre como desenhar mecanismos de participação em democracias mais jovens.
Desigualdade entre grupos
Esse novo contexto, porém, não é isento de dificuldades. As pesquisas de Adriana Bunea indicam que alguns grupos de interesse têm mais sucesso que outros para traduzir suas preferências políticas em produtos da política. Grupos de interesse são atores-chave no desenho de políticas e políticas públicas na UE. O grupo de interesses das ONGs ambientais, por exemplo, têm mais dificuldades em articular mudanças a partir de suas preferências e têm um desempenho significativamente pior do que os principais grupos de negócios.
Os formadores de política precisam identificar opções políticas que tenham o apoio da maioria das partes interessadas. Assim, é necessário que se identifique um equilíbrio majoritário sobre as questões. Stakeholders mais marginalizados e com pouco poder de articulação, seguindo essa lógica, podem acabar não tendo suas preferências refletidas nos interesses da maioria.
Um dado alarmante nas pesquisas de Bunea é que stakeholders nesses espaços de consulta possuem uma heterogeneidade de interesses e, assim, o conhecimento sobre as diferentes medidas da UE também varia. A frequência de “não sei” como resposta nas consultas sobre a Better Regulation atingiu até 45% com relação a alguns itens. Isso evidencia níveis desiguais de conhecimento, com diferenças significativas entre diferentes grupos de interesse. Especialmente para cidadãos e ONGs, que se mostraram menos informados, na média, do que os grupos de negócios.
Termino este texto já com as malas quase prontas para embarcar pra Itália. A série continua nos próximos meses diretamente da Universidade de Trento, onde desenvolverei a ideia sobre como alavancar formas organizadas e sistemáticas de incluir as minorias nas vias institucionais de participação. Também visitarei vários projetos sobre democracia no Norte do país para trocar ideias e me inspirar. Estamos indo a família toda, o que torna essa página da minha vida profissional muito mais divertida e aventureira. Até março!
*Mariana Galvão Lyra, colunista da Página22, é pesquisadora da Escola de Negócios da LUT University, Finlândia
Referências:
Relatório sobre Democracia publicado pelo Conselho de Pesquisa Europeu (em inglês): https://erc.europa.eu/sites/default/files/2024-02/report_democracy.pdf
Bunea, A., & Chrisp, J. (2023). Reconciling participatory and evidence-based policymaking in the EU Better Regulation policy: mission (im)possible?. Journal of European integration, 45(5), 729-750.
Bunea, A., Wüest, R., & Lipcean, S. (2024). Mapping the policy space of public consultations: evidence from the European Union. Journal of European Public Policy, 1-29.
Bunea, A. (2013). Issues, preferences and ties: determinants of interest groups’ preference attainment in the EU environmental policy. Journal of European Public Policy, 20(4), 552-570.