Enquanto 30% da comida é desperdiçada, 733 milhões de pessoas passam fome no mundo. Comunidades rurais, indígenas e catadores têm papel estratégico para aumentar a resiliência do sistema alimentar global
Por: Redação de Página22*
Em um mundo no qual 30% da comida é desperdiçada a cada ano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a participação de comunidades rurais, povos indígenas e cooperativas de catadores no desenvolvimento de soluções em bioeconomia circular torna-se central para avançar rumo à segurança alimentar. O argumento foi defendido no dia 14/5 por participantes do Fórum Mundial de Economia Circular 2025 (WCEF2025, na sigla em inglês), uma iniciativa do Fundo de Inovação da Finlândia (Sitra), em conjunto com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai Nacional) e o Senai-SP. Pela primeira vez, o maior evento do mundo sobre economia circular ocorreu na América Latina, entre 13 e 16 de maio.
O painel “Abordagens da bioeconomia circular para a segurança alimentar e resiliência” destacou que mais de 8 bilhões de pessoas têm deficiência de micronutrientes e 733 milhões estão passando fome em todo o mundo, enquanto mais de 1 bilhão vive com obesidade. Somado ao desperdício, esses dados evidenciam a ineficiência do sistema alimentar global, que contribui ainda com a degradação ambiental, emissões de gases de efeito estufa, desmatamento e poluição.
Esse cenário aponta para a necessidade de um novo modo de produção agrícola, circular e baseado nos princípios da bioeconomia. Nesse sentido, o conhecimento comunitário, resgatando o manejo tradicional da terra, tem muito a contribuir.
A sustentabilidade começa no campo
Uma das soluções exploradas na sessão foi a Agricultura Natural Gerenciada pela Comunidade de Andhra Pradesh (APCNF, na sigla em inglês). No estado de Andhra Pradesh, na Índia – país que sediará o WCEF em 2026 – , o projeto conta com o protagonismo de mulheres na aplicação de técnicas regenerativas para construir uma agricultura resiliente, que resgata uma relação mais natural com a terra. Com 6 milhões de agricultores, a iniciativa é considerada responsável pela maior transição para a agroecologia do mundo.
Estudo realizado com 562 participantes da iniciativa indiana mostrou que a produção e os ganhos dos produtores rurais aumentaram. “Em média, a produção foi 11 vezes maior após três anos da incorporação desse novo método de plantação”, explica Pavan Sukhdev, fundador e CEO da GIST Impact, líder em dados e análises de impacto. Segundo ele, a colheita aumentou de duas a quatro vezes com métodos naturais de adubação, a partir de esterco de vaca e melaço.
A técnica permitiu ainda a redução do uso de defensivos agrícolas de 56% a 73% nas plantações. “Nós registramos uma renda líquida 49% superior para o produtor. Quando um agricultor vai vender sua colheita, o produto tem mais saída porque é um alimento saudável”, diz.
Como contrapartida pela participação na iniciativa, os agricultores beneficiados compartilham as técnicas com produtores de outras vilas, escalando a solução. “Muito do financiamento desse tipo de agricultura é reinvestido para ensinar outros produtores agrícolas”, complementa Sukhdev. “Leva um certo tempo para que os produtores consigam incorporar esse novo método de agricultura, mas, depois, eles vão criando redes, com base no capital social das relações comunitárias construídas por décadas, o que gera capital nacional para desenvolver sistemas alimentares sustentáveis e circulares, como parte da bioeconomia.”
Foto: Everton Amaro/Fiesp
Apoio à juventude
Em Camarões, na África Central, um desidratador de vegetais ajuda pequenos produtores rurais, especialmente cooperativas lideradas por mulheres, a diminuir as perdas pós-colheita. O projeto foi implementado pela engenheira agrícola Liza Kengran, de origem camponesa e cuja ONG trabalha diretamente com os agricultores, ensinando o uso do equipamento e ajudando na venda de produtos.
Para ampliar a escala da solução, incluindo o projeto em políticas globais, é necessário escutar as comunidades rurais, ONGs e apoiar a juventude, defende Kengran, integrante do Conselho Consultivo Internacional sobre Bioeconomia Global (IACGB). “Apenas 9% [desses atores] contribuem de alguma forma para a discussão sobre a qualidade dos alimentos”, contabiliza.
“Sugiro que governos e ONGs façam um esforço consciente para se conectarem com as pessoas do campo. É lá onde começa a sustentabilidade: nos pequenos produtores, nos sistemas agrícolas convencionais e familiares”, aponta Kengran, recomendando a alocação de ao menos de 5% dos fundos de grandes organizações em iniciativas lideradas por jovens.
Unindo forças
A parceria entre a World Packaging Organisation (WPO) e uma cooperativa de catadores de reciclagem em Poços de Caldas (MG) também ressalta a importância do contato com atores sociais. “Ao trabalhar com o catadores no processo de colaboração, estamos aprendendo muito”, conta Luciana Pellegrino, presidente da WPO.
“Não é só uma questão de doação de equipamento para a cooperativa de reciclagem. É trabalhar conjuntamente, incluindo a perspectiva deles no desenvolvimento industrial”, defende. “O verdadeiro sentido de colaboração é a integração eficaz de várias perspectivas, criando oportunidades para eles pertencerem também”, afirma Pellegrino.
A presidente da WPO destacou ainda o papel das embalagens na preservação dos alimentos, estendendo sua vida útil e evitando o desperdício, especialmente em países de grandes dimensões como o Brasil. Durante o evento, ela lançou o relatório “Enfrentando o Paradoxo da Perda e do Desperdício de Alimentos – Equilibrando a Perda e o Desperdício de Alimentos com a Economia de Embalagens de Alimentos”.
O documento, produzido em parceria com a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido) e a Universidade de Wageningen, da Holanda, visa inspirar soluções colaborativas entre a sociedade, governos e empresas de embalagens. A adoção de embalagens herméticas para milhos comercializados no Quênia, por exemplo, reverteu perdas de 20% sofridas pelo alimento quando entra em contato direto com o ar.
Soluções ancestrais
Mauricio Mireles, oficial de políticas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), enfatiza a importância do conhecimento dos povos indígenas, responsáveis pela preservação de 30% do território amazônico. Segundo ele, qualquer potencial de bioeconomia na Amazônia deve considerar a sabedoria ancestral desses atores no manejo da floresta, e ter o consentimento deles no uso de recursos locais.
“Nós temos mais de 50 milhões de habitantes que vivem na região. Precisamos encontrar uma maneira de aumentar o valor na floresta de pé, em comparação com modelos econômicos clássicos”, diz. Uma projeção global estima em US$ 7,7 trilhões as oportunidades de negócios em bioeconomia, com participação de 45% das florestas tropicais.
Iniciativas inovadoras
A rede Mesa Brasil, maior banco privado de alimentos da América Latina, gerida pelo Sesc, foi destacada pelo pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Gustavo Porpino, como um dos caminhos para ampliar a segurança alimentar, com combate ao desperdício e inclusão de pequenos produtores.
A rede resgata alimentos que seriam desperdiçados, assim como aqueles fora do padrão estético vendidos ao público consumidor, a fim de complementar as refeições de pessoas em situação de vulnerabilidade em instituições sociais.
“Precisamos formar uma aliança com startups que tenham iniciativas inovadoras. É uma maneira de aproximar a fazenda da mesa do consumidor”, afirmou, sobre o potencial de conectar pequenos agricultores a canais de venda que valorizem produtos fora do padrão estético.
Projetos do poder público, como o Estratégia Alimenta Cidades e o Programa de Alimentação Escolar (PAE), além de iniciativas de agricultura urbana, também são mencionados pelo especialista. “Curitiba e Belo Horizonte são duas capitais que já estão tendo excelente desempenho em agricultura urbana e esses modelos podem ser replicados em outras cidades”, diz Porpino.
O vice-chefe de Desenvolvimento Sustentável do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Daniel Lodetti, defende a necessidade de colaboração entre formuladores de políticas, líderes da indústria, pesquisadores, agricultores e comunidades locais para promover mudanças sistêmicas e garantir a segurança alimentar e a nutrição.
“O diplomata e famoso escritor brasileiro Guimarães Rosa falava que o que a vida quer da gente é coragem”, cita Lodetti, sobre a necessidade de colocar em prática os acordos celebrados mundialmente em relação ao clima. “É preciso promover engajamento da sociedade, transformando os princípios de bioeconomia em ações e responsabilidades compartilhadas para construir a base de um futuro sustentável.”
*Por meio de parceria com a Fiesp, a Página22 cobriu o WCEF2025