É cada vez mais evidente que a perda da biodiversidade representa um risco financeiro sistêmico. Como resposta, reguladores, investidores e empresas vêm mobilizando frameworks, diretrizes e métricas para integrar a natureza à governança corporativa. Conheça as principais iniciativas
Por Carlos Eduardo Benfica*
A intensificação dos eventos climáticos extremos e a perda da biodiversidade global estão entrelaçadas em uma crise ecológica sistêmica sem precedentes, exigindo respostas coordenadas e urgentes. Atividades humanas como o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa (GEE) já impactaram mais de 75% dos ecossistemas terrestres e 66% dos ecossistemas marinhos, segundo levantamento de 2019 da IPBES, sigla em inglês para Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. Esses processos não apenas comprometem a resiliência climática do planeta, como também levam à extinção de espécies em uma taxa maior do que a taxa natural.
O Living Planet Report 2024, elaborado pelo WWF, apontou uma queda média de aproximadamente 70% nas populações de animais silvestres monitoradas entre 1970 e 2020, reforçando o colapso ecológico em curso. E a América Latina lidera esse declínio, com redução de 94%, impulsionada principalmente pela perda de hábitats naturais.
Embora a mitigação da mudança climática já ocupe lugar de destaque nos compromissos empresariais e nas políticas públicas, a agenda de conservação e restauração da natureza e da biodiversidade ganhou tração mais recentemente. Isso ocorre porque a natureza não é apenas um ativo ambiental: ela constitui a base do capital natural do qual toda a economia depende.
Estima-se que mais da metade do PIB global — aproximadamente US$ 58 trilhões — é moderada ou altamente dependente da natureza e de seus serviços ecossistêmicos, como polinização, regulação do clima e provisão de água, de acordo com levantamento de 2023 da PwC.
Essa interdependência torna a perda da biodiversidade um risco financeiro sistêmico. Como resposta, reguladores, investidores e empresas vêm mobilizando frameworks, diretrizes e métricas para integrar a natureza à governança corporativa.
A principal iniciativa nesse esforço é o Marco Global da Biodiversidade (Global Biodiversity Framework – GBF), acordado na COP 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), realizada em Montreal em 2022.
Transparência corporativa
O GBF estabelece quatro objetivos e 23 metas globais até 2030, incluindo a meta 15, que exige de todas as grandes empresas e instituições financeiras avaliar, monitorar e divulgar seus riscos, impactos e dependências da natureza.
Contudo, assim como na agenda climática, a implementação das metas do GBF depende de um componente crítico: financiamento. Estima-se que seja necessário mobilizar US$ 200 bilhões por ano até 2030 para alcançar os objetivos do acordo. Embora esse valor represente uma fração do investimento global em infraestrutura e energia, a lacuna de financiamento para a biodiversidade é ampla.
Complementando os compromissos intergovernamentais, empresas vêm adotando iniciativas voluntárias para internalizar os riscos e dependências relacionados à natureza. A mais robusta delas é a Taskforce on Nature-related Financial Disclosures (TNFD), lançada oficialmente em 2023, após dois anos de desenvolvimento. Inspirada na TCFD, a TNFD fornece um framework estruturado para empresas identificarem, avaliarem e reportarem riscos financeiros ligados à natureza. Na COP 16 de Biodiversidade, realizada em 2024, mais de 500 instituições financeiras e corporativas anunciaram seu comprometimento voluntário com a TNFD, sinalizando um ponto de inflexão na maturidade da agenda.
Já a Science-Based Targets Network (SBTN) atua como braço técnico da Science-Based Targets initiative (SBTi) para a natureza, oferecendo uma metodologia científica para empresas definirem metas mensuráveis de preservação e restauração. Desde seu lançamento em 2023, a SBTN propõe um processo em cinco etapas para que as organizações avaliem impactos, priorizem áreas de atuação, estabeleçam metas baseadas na ciência e monitorem avanços.
Os três frameworks — GBF, TNFD e SBTN — formam uma arquitetura integrada de governança para a natureza e biodiversidade corporativa. O GBF atua como guarda-chuva normativo global, definindo metas e objetivos; a SBTN provê ferramentas para definição de metas organizacionais baseadas na ciência; e a TNFD promove a transparência por meio da padronização de relatórios e métricas.
Juntas, essas iniciativas possibilitam a criação de políticas corporativas coerentes com os limites planetários e com as necessidades de adaptação às mudanças climáticas. Ainda assim, sua implementação exige superar desafios técnicos, como a escassez de dados padronizados e a complexidade inerente à mensuração da biodiversidade, que, ao contrário das emissões de GEE, varia profundamente em escala, composição e função entre os diferentes ecossistemas.
Em mais de 18 anos atuando na execução e coordenação de projetos de biodiversidade, sei que somar esforços globais nessa agenda é complexo. Diferentemente da agenda climática, que se estrutura majoritariamente em torno de uma métrica padronizada (as emissões de CO₂e), os estudos sobre natureza e biodiversidade envolvem múltiplas variáveis ecológicas e espaciais.
A diversidade genética, a diversidade de espécies e dos ecossistemas, além dos contextos regionais, tornam consideravelmente mais complexa a mensuração de impactos e a definição de metas universalmente aplicáveis. Essa heterogeneidade dificulta a criação de métricas e indicadores simples e comparáveis, exigindo abordagens integradas, interdisciplinares e sensíveis ao território para orientar decisões políticas e empresariais baseadas na ciência.
Por outro lado, o tópico está evoluindo rapidamente e a COP 30 do Clima em Belém será emblemática nesse sentido, tanto por ser realizada no Brasil, país mais biodiverso do mundo, quanto pelos sinais apresentados pelo presidente da Conferência, o embaixador André Corrêa do Lago – que em uma de suas cartas abertas destacou a importância de uma visão abrangente e sinérgica para lidar com as crises globais interligadas da mudança do clima e da perda de biodiversidade.
*Carlos Eduardo Benfica é consultor de sustentabilidade da WayCarbon