Dos calçados feitos com a borracha extraída de seringais aos grafismos indígenas levados às passarelas, a floresta mostra a sua potência criativa e econômica nos mais diversos produtos e serviços. Encontro da rede Uma Concertação pela Amazônia debateu a diversidade cultural da região e seu papel na geração de trabalho, renda e pertencimento
Por Magali Cabral
Do tênis francês Veja, feito com borracha natural amazônica e que carrega pelas calçadas do mundo a história de lutas sociais dos seringueiros brasileiros, aos grafismos do povo Yawanawá, hoje presente em vitrines do Brasil, de Nova York e Londres; da sumaúma, a árvore que conecta mundos, à importância da floresta para o futuro climático do planeta; dos cantos indígenas que ecoam nas aldeias à indústria global do audiovisual, as Amazônias são muito mais do que um celeiro de recursos naturais. Sua floresta e seus habitantes são fonte de cultura, espiritualidade e inovação.
O Acre foi palco da 34ª plenária da rede Uma Concertação pela Amazônia, realizada em Rio Branco em 2 de setembro, intitulada Economia e Cultura nas Amazônias: a economia criativa como prosperidade. Com mediação da secretária-executiva da Concertação, Lívia Pagotto, o encontro abordou a diversidade cultural amazônica e seu papel na geração de trabalho, renda e pertencimento.
O encontro ocorreu no auditório eAmazônia, dentro da Universidade Federal do Acre, e foi transmitido online. O artista convidado para dialogar com a plenária foi o paraense Paulo Vitor Dias, o PV Dias, cujos trabalhos refletem a pulsação sonora, cultural e política da Amazônia urbana, misturando em traços e cores os ritmos, batidas e elementos musicais da região. Ao longo de setembro, sua obra estará “vestindo” os canais digitais da Concertação.
Participaram como palestrantes Karla Martins, produtora audiovisual e articuladora do Comitê Chico Mendes; François Morillion, cofundador da marca francesa de calçados Veja; Emanuele Coccia, professor de Filosofia na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris; e Joaquim Tashka Yawanawá, líder indígena e empreendedor.
A “acreoca” (carioca-acreana) Bia Saldanha, do Núcleo de Governança da Concertação, abriu a plenária com uma homenagem à terra que a acolheu: “Somos um estado jovem [anexado ao Brasil em 1903, o Acre foi elevado a estado em 1962], mas com um papel central na história e na cultura da Amazônia”, afirma. Saldanha ressalta a diversidade da população e a vitalidade da economia criativa regional, presentes em festivais indígenas (foram 24 apenas no último ano) e em parcerias entre povos tradicionais, artistas e o setor audiovisual, a exemplo da iniciativa que uniu o DJ de música eletrônica Alok e o povo Yawanawá. “Além disso, aqui pulsa a energia das nascentes que formam os grandes rios da região”, destaca.
Cultura é conexão
No entender da atriz e produtora audiovisual Karla Martins, embora a cultura seja frequentemente definida como um fazer artístico, desconectado da vida cotidiana, o conceito, no lato sensu, é muito mais amplo: envolve todas as atividades humanas que criam conexões entre pessoas e lugares. “Tudo o que não é natural é cultural. A cultura nos aterra, nos chama à terra, e nos permite criar conexões”, afirma. Essa relação, lembra ela, também explica a própria situação de emergência climática atual, fruto da cultura de dominação da natureza.
É possível reconectar a humanidade com a natureza a tempo de conter a mudança do clima antes de um ponto de não retorno? Otimista, Karla Martins crê que sim, por meio de uma conexão afetiva com a natureza que existe dentro de todas as pessoas:
“Não existe alguém que não traga dentro de si a memória de uma árvore, seja na lembrança de um dia ter se equilibrado entre seus galhos, seja de comer uma fruta recém-tirada do pé, seja de aproveitar o frescor de sua sombra, seja no desenho singelo de um tronco marrom e uma copa verde feito na infância”.
Para inspirar, ela compartilhou um texto do escritor e ambientalista Toinho Alves, também presente no evento: “Não temos a medida do tamanho da floresta que teremos no futuro, nem o tamanho do futuro que teremos no planeta. Mas as histórias de outros fins do mundo que ouvimos dos povos antigos, que se tornaram peixes para viver na grande enchente ou pássaros para escapar ao grande incêndio, nos autorizam a sonhar e alimentar esperanças. A sumaúma é uma árvore amazônica, é o mundo. Abriga centenas de seres vivos entre as raízes mais fundas e as folhas mais altas. Na geração de suas filhas, ela tece com arte um caprichoso capucho semelhante ao algodão, que leva uma pequena semente ao vento para alguma distante curva do rio e, ao tempo, para algum futuro possível. A florestania é essa semente.”
Do Acre a Paris
O conceito de “florestania”, que nasceu da junção dos termos floresta e cidadania, conquistou François Morillion e Sébastien Kopp. No início dos anos 2000, eles desembarcaram no Brasil na esperança de criar uma cadeia produtiva para o tênis que estavam desenvolvendo, unindo conceitos ecológicos e sociais, ou que unisse respeito à natureza e ao ser humano. No Acre, apoiado por parceiras como Bia Saldanha, Morillion conta que encontraram não apenas a borracha natural, matéria-prima para os calçados que seriam lançados em 2004, mas também a complexa história de resistência e conquistas sociais ligada aos seringueiros e ao legado de Chico Mendes.
“A primeira produção do tênis Veja foi de apenas 5 mil pares. Hoje, a empresa produz 4 milhões de pares por ano, está presente em cerca de 30 países e emprega mais de 500 pessoas”, revela o empresário. Apesar do crescimento, François Morillion diz que a essência da Veja permanece. É uma relação de comércio justo construída com comunidades, em que a borracha amazônica é reconhecida não apenas como insumo, mas como bem cultural.
Por causa da história e dos significados que carregam, os tênis da marca passaram a ser valorizados pelos consumidores, que enxergam na peça algo mais valioso do que um simples calçado. E essa valorização tem mão dupla. O fato de se tratar de um produto que circula nas principais capitais globais da moda é motivo de orgulho para as comunidades que produzem a borracha que compõe seu solado, que veem o seu trabalho reconhecido e valorizado.
A marca criou um fluxo conectando a floresta a cidades como Paris, Nova York e São Paulo que aproxima consumidores urbanos das realidades amazônicas. Segundo Morillion, o tênis se tornou um veículo de comunicação entre mundos distintos. Sempre que possível, a empresa traz parceiros e colaboradores para visitas à floresta amazônica. Ao vivenciarem o cotidiano das famílias extrativistas, Morillion diz que os visitantes se ‘enflorestam’, isto é, compreendem a diversidade cultural local e sentem-se mensageiros do que a floresta tem a dizer.
Cultura e impacto socioeconômico
Assim como Morillion, o líder indígena Joaquim Tashka também celebra a bem-sucedida experiência do povo Yawanawá nas parcerias com o setor privado. Uma delas já dura 32 anos: a parceria com a multinacional de cosméticos Aveda. “É uma relação marcada pelo respeito e pela construção conjunta de um modelo único no mundo. De um lado, uma empresa com milhares de salões de beleza espalhados globalmente, de outro, um povo indígena da Amazônia, numa troca de igual para igual”, diz.
Relações semelhantes vêm sendo estabelecidas com outras marcas de alcance global, caso da FARM, marca brasileira que hoje leva grafismos e referências Yawanawá para suas vitrines em Nova York e Londres, ampliando o reconhecimento da cultura indígena na economia e estimulando consumidores a refletirem sobre o significado dos produtos.
Para ele, essas relações só têm sentido porque são construídas com respeito e valorização cultural. Um exemplo é o lançamento recente do álbum Mariri Yawanawa Saiti Kayahu, produzido pelo DJ Alok. “Mesmo gravado em estúdio, a qualidade obtida consegue transmitir a energia dos terreiros e a sensação de se estar na aldeia dançando”, garante Tashka. A faixa Sina Vaishu é atualmente sucesso global.
Também está em fase de desenvolvimento um perfume Yawanawá feito a partir da fragrância do supá, uma resina aromática utilizada em rituais espirituais de cura. Tashka também ressalta o potencial do turismo no Acre, que atrai visitantes do mundo todo para vivências em terras indígenas, como no Mariri Yawanawá, um grande festival anual que costuma receber personalidades internacionais. Ele ressalta, no entanto, que essa atividade ainda carece de investimentos em infraestrutura e, sobretudo, de meios de valorizá-la nacionalmente, embora muitas vezes a cultura indígena seja mais valorizada por estrangeiros do que no próprio território.
Karla Martins ressaltou a importância de abrir espaço para cineastas e artistas amazônidas contarem suas próprias histórias, ampliando a diversidade de vozes na produção cultural. Lembrou que a indústria criativa gera mais receita global do que a automotiva, reforçando seu potencial como vetor de desenvolvimento na Amazônia. Ela cita alguns trabalhos que contam histórias ambientadas na região, entre eles o filme Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky, que completa 50 anos em 2025; o premiado Manas, de Marianna Brennand; e a minissérie Pssica, de Quico e Fernando Meirelles. Na sua visão, são obras importantes, mas não deveriam ser as únicas a contar as histórias amazônicas.
Para ela, é necessário abrir espaço para que cineastas locais explorem mitos, narrativas e experiências, lembrando que a cultura também é um espaço de resistência e renascimento, inclusive do ponto de vista econômico. Karla Martins cresceu no Acre, “um lugar que por muito tempo foi considerado distante e invisível”, e acha fundamental que o reconhecimento comece no próprio território. “O maior espaço de pertencimento é fazer sucesso e ser reconhecido no lugar onde se vive. Essa lição de auto-reconhecimento aprendemos com os povos originários”.
Valor agregado
De acordo com Tashka Yawanawa, os produtos indígenas ganham valorização no mercado consumidor internacional por seus significados espirituais e culturais que transcendem a lógica mercadológica, agregando uma composição de preço diferenciado aos produtos. Aliás, esse é o verdadeiro valor dos produtos indígenas, que integram dimensões étnicas, culturais, espirituais, ambientais e sociais.
Quando esses aspectos não são reconhecidos, os produtos se reduzem a simples mercadorias, esvaziadas de sentido. Por isso, para Tashka, é fundamental que os consumidores compreendam o que estão adquirindo. “A bolsa, a pulseira, ou qualquer outro produto da economia indígena carrega um elo direto com a floresta, com tradições e com modos de vida que ajudam a preservar o planeta”.
Karla Martins concorda: “Nem sempre quando usamos um objeto nos perguntamos o que ele significa. Mas é importante pensar o que representa carregar uma bolsa do Maqueson [Maqueson Pereira da Silva é um multiartista premiado de Cruzeiro do Sul, no Acre, que atende a várias grifes de Paris, Nova York, Tóquio e Londres]. Esse produto representa o sustento de 46 famílias. Miçangas dos povos indígenas carregam um pouco da vida, da história e da inspiração de quem as produziu. Um tênis Veja pode carregar na borracha gotas do suor do Raimundão”, diz a produtora referindo-se ao extrativista e líder seringueiro Raimundo Mendes de Barros.
Maqueson e Raimundão são personagens que levam um pouco de Amazônia para o mundo e ajudam a manter de pé uma floresta fundamental para o futuro da humanidade. “Por isso, é essencial refletir sobre a coletividade presente em cada um desses objetos, sobre a entrega e a resposta que recebemos daquilo que usamos”, conclui Karla Martins.
Moda como ferramenta de alteridade e de transformação cultural
Uma das pessoas que se deixou “enflorestar” em uma das visitas organizadas pelo empresário da marca Veja, foi o acadêmico francês Emanuele Coccia que trouxe para a plenária uma reflexão histórica e filosófica sobre a moda, mostrando que falar sobre ela não é falar apenas de roupas. Antes de qualquer definição, ele diz que é preciso desfazer o preconceito de que a moda seria apenas a versão contemporânea da prática ancestral de vestir-se.
A moda, tal como a entendemos hoje, é recente. Surgiu quando as vanguardas artísticas europeias se propuseram a aproximar arte e vida para romper com a padronização imposta pela Revolução Industrial. Foi nesse momento que a moda se consolidou não apenas como estética, mas como linguagem artística radical de manipulação e uso da matéria para produzir e desfrutar de uma forma particular de liberdade. “A liberdade que permite a moda é incomparavelmente mais intensa e de maior alcance que qualquer outra arte”, afirma.
Para o filósofo, a roupa é o objeto mais universal da humanidade. Todos as usam, todos os dias. Diferente de uma pintura ou escultura, que se contempla à distância, a vestimenta cola na pele, molda a silhueta e esculpe identidade. Ao longo da história, a roupa deixou de ser apenas marca de distinções sociais, religiosas ou nacionais, para ser expressão de diferenças sutis de humor, de desejo, de escolha. Segundo ele, vestir-se é como converter-se em uma obra de arte viva. Essa característica faz da moda uma arte singular, mais imediata e carnal do que qualquer outra, capaz de marcar o tempo, diferenciar dias, estações e estados de espírito.
Coccia defende ainda que a moda não deve ser vista apenas sob a ótica dos grandes grupos europeus. Para ele, o ato de vestir-se pode assumir uma dimensão quase ritual, comparável a um novo xamanismo, capaz de transformar as cidades em espaços de conexão com a natureza. Nesse processo, a roupa deixaria de ser apenas tendência ou consumo e passaria a simbolizar uma experiência de convivência entre espécies, em que a pele do humano se mistura simbolicamente à de outros seres vivos – lembrando que, na pré-História, “as primeiras vestes eram mantos feitos das peles dos animais mortos, dos quais o homem se alimentou ou dos quais se defendeu”.