Tecnologias, regulações e instrumentos financeiros, embora necessários, não conseguem produzir transformação estrutural quando aplicados a partir de percepções fragmentadas. O desafio é, fundamentalmente, cognitivo. O livro Terranautas lembra que, sem uma mudança na forma de ler o sistema, continuaremos a tratar os sintomas sem enfrentar as causas
Por Paulo Pianez*
Alguns livros ampliam nosso repertório; outros ampliam nossa capacidade de perceber o mundo. Terranautas – Sustentabilidade para Cérebros, de Nelmara Arbex, situa-se neste segundo grupo. Não se propõe a apresentar métodos nem a oferecer respostas prontas. Sua contribuição está em outra dimensão: a de reformular o modo como interpretamos fenômenos que já não se deixam capturar por explicações lineares. A crise climática e social que atravessamos decorre, em grande medida, da dificuldade de construir leituras adequadas sobre a complexidade do nosso tempo. E é precisamente nessa insuficiência perceptiva que o livro coloca o foco.
Essa reflexão adquire especial relevância quando observada à luz dos debates da COP 30, em Belém. A Conferência do Clima evidenciou uma contradição profunda entre a velocidade das mudanças globais e a permanência de modelos mentais que insistem em operar segundo lógicas ultrapassadas. Ficou claro que tecnologias, regulações e instrumentos financeiros, embora necessários, não conseguem produzir transformação estrutural quando aplicados a partir de percepções fragmentadas. O desafio é, fundamentalmente, cognitivo. Sem uma mudança na forma de ler o sistema, continuaremos a tratar os sintomas sem enfrentar as causas.
É nesse ponto que Terranautas se torna indispensável. O livro desloca a sustentabilidade do plano operacional para o plano mental. Em vez de abordá-la como um conjunto de metas, a autora a apresenta como uma nova arquitetura de pensamento orientada à compreensão de sistemas complexos. Essa perspectiva dialoga diretamente com uma convicção que atravessa meu próprio trabalho: não existe solução eficaz para crises contemporâneas que não reconheça a interdependência entre dimensões ambientais, sociais, econômicas, institucionais e culturais. A racionalidade sistêmica é o eixo que organiza decisões maduras em contextos de alta incerteza.
Terranautas reforça exatamente esse ponto ao nos lembrar que nenhum desafio atual pode ser compreendido isoladamente. A COP 30 confirmou essa realidade. Financiamento climático, transição energética, adaptação, conservação da biodiversidade, justiça social, segurança global e estabilidade econômica formam um conjunto de elementos intrinsecamente conectados. A justiça climática emerge como questão central não apenas por razões éticas, mas porque a desigualdade global compromete a própria capacidade de implementação das soluções. Em um mundo em que os impactos recaem de maneira desproporcional sobre populações vulneráveis, a transição só pode ser considerada legítima se for inclusiva e equitativa.
Mais do que um arcabouço teórico, o pensamento sistêmico torna-se uma ferramenta prática de leitura do mundo. É ele que permite compreender que a aceleração da mudança climática não se dissocia da arquitetura institucional que molda políticas públicas, nem da dinâmica global de investimentos, nem dos modelos de governança que organizam fluxos de decisão.
O livro incorpora essa compreensão ao mostrar que a complexidade não é obstáculo, mas condição. Ela exige raciocínio relacional, capacidade de identificar conexões invisíveis e disposição para abandonar explicações simplificadoras.
Limitação humana
Outro aspecto relevante da obra é a análise da limitação humana de lidar com processos de longa duração. Somos inclinados ao imediato e subestimamos fenômenos cumulativos. Essa limitação afeta a qualidade da tomada de decisão e compromete a construção de políticas de longo prazo. O livro convida o leitor a reconhecer essa condição e a buscar uma nova forma de percepção que permita agir com responsabilidade ampliada. Essa é também uma premissa central do pensamento que venho defendendo: sistemas só se transformam quando se compreende o tempo da mudança, que é necessariamente superior ao tempo das agendas políticas e dos ciclos institucionais.
A obra também reforça a importância de integrar diferentes saberes. A COP 30 expôs a necessidade de articular conhecimento científico, experiência institucional, saberes tradicionais e lições comunitárias, especialmente diante de contextos marcados por desigualdade estrutural. A perspectiva sistêmica valoriza exatamente essa multiplicidade, reconhecendo que soluções robustas emergem da convergência entre diversas formas de interpretar a realidade.
A governança ocupa lugar central nessa construção. Terranautas apresenta a governança como infraestrutura intelectual e institucional capaz de sustentar decisões responsáveis, organizar fluxos de informação, mitigar assimetrias e garantir consistência ao longo do tempo.
Essa compreensão se alinha diretamente com minha convicção de que transições bem-sucedidas dependem da capacidade de alinhar instituições, sistemas de informação, mecanismos de transparência e critérios de responsabilização. Sem governança, há dispersão. Com governança, há direção.
O texto de Arbex mantém sobriedade e rigor ao longo de toda a obra. Evita excessos retóricos e oferece clareza analítica em um debate frequentemente polarizado entre o alarmismo e a negação. Essa lucidez é valiosa porque permite ao leitor desenvolver uma compreensão madura das tensões que estruturam o nosso tempo.
Ao concluir a leitura, fica evidente que Terranautas não descreve um processo plenamente iniciado. Ele aponta a direção de um novo começo que exige coragem intelectual e disposição para rever pressupostos. O livro convida instituições, governos, empresas e indivíduos a adotarem uma percepção mais sofisticada sobre a realidade, capaz de integrar justiça climática, desenvolvimento, inclusão e estabilidade planetária. Sem essa lente, repetiremos diagnósticos conhecidos. Com ela, abriremos espaço para decisões mais consistentes e práticas mais alinhadas às exigências do século XXI.
A maior contribuição do livro está em lembrar que a transformação começa pela forma como pensamos. É a percepção que antecede a ação. É a leitura do mundo que determina o tipo de futuro que podemos imaginar e, portanto, construir. A tarefa que se impõe após a COP 30 é adotar essa lente mais ampla e responsiva, capaz de orientar decisões com profundidade e coerência. Cabe a cada instituição e a cada pessoa transformar essa percepção renovada em decisão, articulação e impacto real.
*Paulo Pianez é diretor de Sustentabilidade e de Relações Institucionais da MBRF

Serviço:
Terranautas – Sustentabilidade para Cérebros
Autora: Nelmara Arbex
Editora: DISRUPTalks (2024)
152 páginas

