Resenha de Whole Earth Discipline: An ecopragmatist manifesto, de Stewart Brand
Os frustrantes resultados do projeto político dos verdes decorrem de apego umbilical às iniciais reações aos impactos ambientais do produtivismo e do consumismo das sociedades contemporâneas. Ficaram presos a sentimentalismos que não se traduzem em políticas capazes de galvanizar as amplas bases sociais que até agora apoiaram a decadente socialdemocracia.
Precisam com urgência da ajuda de uma corrente irmã que venha a renovar a vida política por assumir a postura pragmática intrínseca aos engenheiros. Uma corrente que encaminhe soluções práticas a grandes desafios – como o populacional, o climático, e o da biodiversidade – com sólidos alicerces nos avanços científicos, principalmente em três questões: a genética, a nuclear e a urbana.
Foi essa a conclusão a que chegou o septuagenário ecólogo americano Stewart Brand após longuíssima e abnegada militância verde. Esteve com a vanguarda da contracultura antes de lançar o legendário Whole Earth Catalog, em 1968, que recebeu o National Book Award em 1972. A ele adicionou a pioneira revista CoEvolution Quarterly, a partir de 1974. Ambos duraram até um claro ponto de mutação em meados dos anos 1980, a partir do qual Brand passou a se empenhar na formulação de cenários futuristas, criando a Global Business Network, parte do Monitor Group, e mais tarde a The Long Now Foundation, da qual permanece presidente.
No entanto, o fato biográfico indispensável ao entendimento dessa trajetória foi, com certeza, sua experiência, entre 1975 e 1983, de assessor direto do governador democrata da Califórnia Jerry Brown, que acaba de voltar ao posto. Foi dessa colaboração que saiu o exitoso programa de eficiência energética que hoje permite a um californiano consumir muito menos energia que os demais americanos, com metade das emissões per capita de gases de efeito estufa. Mesmo com um aumento da renda per capita de 80% em três décadas, a demanda de energia californiana não se alterou, enquanto aumentava 50% em outros estados.
Na assessoria de Jerry Brown, uma das principais funções de Brand foi organizar diálogos do governador com expressivos intelectuais das mais diversas especialidades. Em 1977, por exemplo, eles ouviram de James Watson, um dos pais da descoberta da estrutura do DNA, uma confissão de arrependimento sobre a célebre conferência de geneticistas de Fevereiro de 1975 em Asilomar, da qual havia sido um dos coordenadores. Ele já percebera que haviam sido exageradas as restrições propostas nessa conferência, que logo depois foram adotadas por muitas instituições de saúde, e que, naquele exato momento, estavam sendo debatidas pela assembleia legislativa da Califórnia.
Talvez seja por isso que a questão dos transgênicos apareça no “manifesto” de Stewart Brand como uma das mais impiedosas críticas que os verdes já tiveram oportunidade de receber. Começa dizendo que a oposição do movimento ambientalista aos chamados “OGM” atrapalhou o combate à fome, a conservação ecossistêmica e o progresso da ciência, além de negar aos próprios praticantes da agroecologia uma ferramenta crucial.
Termina por desqualificar os temores dos serviços de inteligência sobre os riscos de a engenharia genética vir a ser usada por terroristas, depois de desafiar os leitores a uma comparação entre as consequências das políticas opostas adotadas nos EUA e na Europa sobre os cultivos de alimentos transgênicos. Tudo tão recheado de fatos e referências à literatura científica, que fica difícil imaginar o que poderá ser uma resposta à altura por parte dos que continuam a ter rejeição radical à engenharia genética.
Foi bem mais recente a conversão de Brand à segunda grande tese que o colocou em rota de colisão com os verdes: que o uso da energia nuclear para gerar eletricidade será fundamental na transição ao baixo carbono. Ele diz que resistiu a admitir essa ideia até 2002, quando visitou o local destinado à estocagem do lixo atômico americano: The Yucca Mountain Repository, um projeto iniciado em 1978 em montanhas que estão a menos de 200 Km de Las Vegas.
Todavia, praticamente toda a sua argumentação favorável à energia nuclear vem de um livro ainda mais recente: Power to Save the World: The Truth about Nuclear Energy. Publicado em 2007 por Gwyneth Cravens, ex-editora da revista New Yorker, que fez parte do grupo de ativistas verdes que em 1980 conseguiu fechar a usina nuclear Shoreham, em Long Island.
Essa conversão de militantes verdes ao nuclear se apoia em dois argumentos básicos: “carga de base” e “pegada” (baseload e footprint). A “carga de base” corresponde à “energia firme na base do sistema”, ou montante mínimo de energia garantido, consistente, permanente, contínuo e confiável que as usinas de geração elétrica devem prover para atender as demandas de seus milhões de clientes. Tem origem nas três fontes tradicionais – a fóssil, a hídrica e a nuclear – pois as novas – eólica e solar – são intermitentes, fazendo com que só possam ser complementares.
Em termos do que entendem por “pegada”, uma usina nuclear de mil megawatts precisa de menos de um quilômetro quadrado. Se gerados por eólica, esses mil megawatts exigiriam 600 vezes mais área. Por solar, 150 vezes mais. Tão ou mais significativa é a diferença de volume entre o lixo atômico e o lixo do carvão.
O primeiro caberia numa latinha de refrigerante se a referência fosse todo o consumo de eletricidade do tempo de vida de um indivíduo que só usasse nuclear. Comparativamente, o carvão atingiria 69 toneladas de lixo sólido, mais 77 toneladas de emissões de dióxido de carbono. Sem contar as cinzas e os gases, grande fonte de radioatividade, cheia de metais pesados, como chumbo, arsênico, e o mais tóxico mercúrio. Estima-se que a cada ano a poluição do carvão cause 30 mil mortes nos Estados Unidos e 350 mil na China.
Pode-se discordar, lembrando que o aumento da eficiência é que permitirá a redução da intensidade energética (quantidade de energia por dólar de PIB), primeiro mandamento da mitigação do aquecimento global. Todavia, por mais que seja crucial, não se mostra suficiente para substituir as geradoras elétricas que precisam ser fechadas, e não gera energia para a tremenda demanda de consumidores emergentes da China, Índia, e em vários países da África e da América Latina. O que coloca um sério problema de escolha entre as fontes de energia disponíveis.
É por isso que muitos dos que se dedicam à questão climática acabam por se render ao argumento do menor dos males (the lesser of two evils) e por preferir considerar todas as possibilidades (take nothing off the table). Segundo levantamento citado por Brand (apud Cravens), teriam se manifestado a favor da opção nuclear 89% dos cientistas em geral, 95% dos que estão em pesquisas energéticas, e 100% dos que investigam questões nucleares e de radiação.
Na terceira questão enfatizada no livro – a das cidades – os verdes não são propriamente acusados de erro. Brand só os reprova por ainda não terem percebido o imenso potencial que o planejamento urbano oferece para o desenvolvimento sustentável. Acha que deve surgir uma nova profissão – ecólogos urbanos – capaz de levar as cidades a cuidar de suas infraestruturas naturais com o mesmo nível de sofisticação que construíram suas infraestruturas artificiais.
Para fazer esse triplo desafio à ideologia verde, Stewart Brand se esmera em mostrar que os alicerces de sua argumentação vieram da melhor literatura científica, com inúmeros destaques para as revistas Nature e Science. Criou até mesmo um site específico para disponibilizar e atualizar notas de rodapé e referências bibliográficas que teriam tornado a leitura do livro bem menos amigável.
É justamente por ter tanto cuidado em se mostrar cientificamente correto que surpreende a adesão do autor à hipótese de que o planeta Terra seja um organismo vivo, popularizada pelo químico James Lovelock e pela microbiologista Lynn Margulis com apelo ao nome da deusa grega “Gaia”.
Essa hipótese é incompatível com a teoria neodarwinista da evolução que ele assume com clareza desde as primeiras páginas. Uma incoerência que deveria ter sido explicada ao leitor, mas que nem por isso chega a tirar o interesse e a importância desse pragmático “manifesto” para o avanço do pensamento socioambiental. Quem sabe, também para a superação das principais incongruências intelectuais dos partidos verdes.
*professor da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do mestrado profissional em sustentabilidade do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). Página web: www.zeeli.pro.br