Responsável pelo desenho de uma reforma agrária inovadora na Amazônia, o sindicalista morreu sem ver as reservas extrativistas. A maior homenagem a ele seria abrir uma grande conversa para atualizá-las
Por Maristela Bernardo
A minha primeira visita à casa onde viveu e morreu Chico Mendes foi em companhia de Raimundão, primo dele e vereador em Xapuri. Enquanto caminhávamos, Raimundão contava histórias engraçadas. Como a da noite em que ambos iam do Seringal Cachoeira para uma festa. “Pra se preparar”, começaram a tomar umas cachacinhas.
Na hora de sair, Chico já estava meio alto e Raimundão ficou esperando ele melhorar. Enquanto isso, foi bebendo mais. Quando Chico melhorou, quem estava mal era Raimundão. Aí quem ficou esperando foi o Chico e, para resumir, quando chegaram à festa já era alta madrugada.
Ríamos quando chegamos à pequena casa de madeira, que parece um desenho infantil. Teto triangular e a frente um retângulo com duas janelas simétricas. Entramos, e a graça acabou. No ambiente de extrema simplicidade, mobiliado como se a família ainda morasse ali, o absurdo da morte e a grandeza da vida são uma coisa só. Inevitável pensar em tudo e todos que o Brasil já perdeu em sua trajetória errática que nunca se delineia claramente, apesar do gritante potencial cultural, ambiental e geopolítico para ser diferente. A história da morte prematura de Chico Mendes faz parte.
Fomos ao fundo da casa, de onde uma escada leva ao quintal. Ali, na noite de 22 de dezembro de 1988, aos 44 anos, Chico Mendes foi assassinado com um tiro de escopeta. Saiu na primeira página do The New York Times. Só depois, diante da repercussão internacional, o Brasil acordou para a enorme perda que sofrera, de um líder capaz de impactar tão fortemente a maneira de ver a Amazônia e a noção de proteção ambiental. O paradigma socioambiental já estava delineado, por exemplo, na mobilização contra a poluição em Cubatão, mas teve seu impulso consolidador quando o movimento seringueiro demonstrou que tanto a defesa da floresta como a de um modo de vida eram uma coisa só.
Os peões e a floresta
Nos limites deste artigo, é importante lembrar dois legados de Chico: a postura política e as reservas extrativistas. Não era homem de confrontos violentos. Numa entrevista, explicou os “empates”: “É se colocar entre os peões e a floresta e dialogar com eles para evitar o desmatamento”.
Não era bom de discurso, gostava mais de conversa. Apreciava a diversidade de idéias, era articulador e mediador. Foicriticado por companheiros sindicalistas por se aliar a ambientalistas do Sudeste e de outros países, porque eles achavam que esse movimento era “coisa da direita”. Precisou de coragem para defender uma reforma agrária inovadora na Amazônia, baseada na manutenção da floresta e na conservação dos recursos naturais, por meio da exploração extrativista coletiva de territórios não vinculados à divisão em propriedades.
Só depois da morte de Chico Mendes foicriada a primeira reserva extrativista, a do Alto Juruá, no Acre. Desde então, elas se expandiram para outros estados da Amazônia, para o Cerrado, e mesmo para a região costeira, mas sempre debaixo de uma artilharia de críticas. As mais comuns são de propalada inviabilidade econômica congênita, ineficiência produtiva, atraso tecnológico e difícil inserção no mercado.
Em conversa recente, a senadora Marina Silva levantou pontos importantes para atualizar o debate. De fato, as reservas apresentam diversos níveis de desenvolvimento e de problemas, alguns muito graves, por deficiências de gestão ou pressões externas.
Mas há bons exemplos, como as reservas de Cachoeira e Cazumbá, no Acre. Se se parte do pressuposto de que o objetivo do extrativista deve ser o de se transformar em fazendeiro e acumular capital, jamais as reservas serão bem avaliadas.
Se, ao contrário, são vistas como opção de vida de comunidades tradicionais associada à existência da floresta, a potencialidade do modelo é grande e pode realizar inúmeras sinapses modernas de sustentabilidade.
Uma chance às reservas
É muito cedo para anunciar o enterro das reservas extrativistas. Elas ainda não esgotaram a sua ousadia política e metodológica, mas precisam ser apoiadas e nutridas. Deve-se também levar em conta que a mais antiga tem menos de 20 anos, enquanto a economia do mainstream conta com 500 anos de recursos financeiros, tecnológicos, subsídios e apoio político nem sempre bem explicado.
A oportunidade de crescimento e consolidação das reservas está vinculada à diversificação e à integração de atividades – extrativismo, artesanato, agricultura e outras – para garantir renda média satisfatória. Outras variáveis precisam ser discutidas. Não haveria homenagem maior a Chico Mendes do que abrir uma grande conversa sobre as reservas, um esforço para revitalizá-las e atualizá-las, sem perder seus valores de origem.
Já é hora de saírem da categoria de projetos piloto para ser objeto de política pública de gente grande. O caminho dessa transição foi desenhado nos últimos cinco anos, em um cabo-de-guerra intragoverno que chegou a bons resultados, porém, inacabados.
Existe desde 2007 uma Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, na qual as reservas extrativistas estão inseridas. O primeiro passo desse trabalho concretizouse recentemente, com a assinatura do preço mínimo para os produtos extrativistas. Para ser para valer, falta ir adiante nas demais medidas traçadas.
Responsável pelo desenho de uma reforma agrária inovadora na Amazônia, o sindicalista morreu sem ver as reservas extrativistas. A maior homenagem a ele seria abrir uma grande conversa para atualizá-las
Por Maristela Bernardo
A minha primeira visita à casa onde viveu e morreu Chico Mendes foi em companhia de Raimundão, primo dele e vereador em Xapuri. Enquanto caminhávamos, Raimundão contava histórias engraçadas. Como a da noite em que ambos iam do Seringal Cachoeira para uma festa. “Pra se preparar”, começaram a tomar umas cachacinhas.
Na hora de sair, Chico já estava meio alto e Raimundão ficou esperando ele melhorar. Enquanto isso, foi bebendo mais. Quando Chico melhorou, quem estava mal era Raimundão. Aí quem ficou esperando foi o Chico e, para resumir, quando chegaram à festa já era alta madrugada.
Ríamos quando chegamos à pequena casa de madeira, que parece um desenho infantil. Teto triangular e a frente um retângulo com duas janelas simétricas. Entramos, e a graça acabou. No ambiente de extrema simplicidade, mobiliado como se a família ainda morasse ali, o absurdo da morte e a grandeza da vida são uma coisa só. Inevitável pensar em tudo e todos que o Brasil já perdeu em sua trajetória errática que nunca se delineia claramente, apesar do gritante potencial cultural, ambiental e geopolítico para ser diferente. A história da morte prematura de Chico Mendes faz parte.
Fomos ao fundo da casa, de onde uma escada leva ao quintal. Ali, na noite de 22 de dezembro de 1988, aos 44 anos, Chico Mendes foi assassinado com um tiro de escopeta. Saiu na primeira página do The New York Times. Só depois, diante da repercussão internacional, o Brasil acordou para a enorme perda que sofrera, de um líder capaz de impactar tão fortemente a maneira de ver a Amazônia e a noção de proteção ambiental. O paradigma socioambiental já estava delineado, por exemplo, na mobilização contra a poluição em Cubatão, mas teve seu impulso consolidador quando o movimento seringueiro demonstrou que tanto a defesa da floresta como a de um modo de vida eram uma coisa só.
Os peões e a floresta
Nos limites deste artigo, é importante lembrar dois legados de Chico: a postura política e as reservas extrativistas. Não era homem de confrontos violentos. Numa entrevista, explicou os “empates”: “É se colocar entre os peões e a floresta e dialogar com eles para evitar o desmatamento”.
Não era bom de discurso, gostava mais de conversa. Apreciava a diversidade de idéias, era articulador e mediador. Foicriticado por companheiros sindicalistas por se aliar a ambientalistas do Sudeste e de outros países, porque eles achavam que esse movimento era “coisa da direita”. Precisou de coragem para defender uma reforma agrária inovadora na Amazônia, baseada na manutenção da floresta e na conservação dos recursos naturais, por meio da exploração extrativista coletiva de territórios não vinculados à divisão em propriedades.
Só depois da morte de Chico Mendes foicriada a primeira reserva extrativista, a do Alto Juruá, no Acre. Desde então, elas se expandiram para outros estados da Amazônia, para o Cerrado, e mesmo para a região costeira, mas sempre debaixo de uma artilharia de críticas. As mais comuns são de propalada inviabilidade econômica congênita, ineficiência produtiva, atraso tecnológico e difícil inserção no mercado.
Em conversa recente, a senadora Marina Silva levantou pontos importantes para atualizar o debate. De fato, as reservas apresentam diversos níveis de desenvolvimento e de problemas, alguns muito graves, por deficiências de gestão ou pressões externas.
Mas há bons exemplos, como as reservas de Cachoeira e Cazumbá, no Acre. Se se parte do pressuposto de que o objetivo do extrativista deve ser o de se transformar em fazendeiro e acumular capital, jamais as reservas serão bem avaliadas.
Se, ao contrário, são vistas como opção de vida de comunidades tradicionais associada à existência da floresta, a potencialidade do modelo é grande e pode realizar inúmeras sinapses modernas de sustentabilidade.
Uma chance às reservas
É muito cedo para anunciar o enterro das reservas extrativistas. Elas ainda não esgotaram a sua ousadia política e metodológica, mas precisam ser apoiadas e nutridas. Deve-se também levar em conta que a mais antiga tem menos de 20 anos, enquanto a economia do mainstream conta com 500 anos de recursos financeiros, tecnológicos, subsídios e apoio político nem sempre bem explicado.
A oportunidade de crescimento e consolidação das reservas está vinculada à diversificação e à integração de atividades – extrativismo, artesanato, agricultura e outras – para garantir renda média satisfatória. Outras variáveis precisam ser discutidas. Não haveria homenagem maior a Chico Mendes do que abrir uma grande conversa sobre as reservas, um esforço para revitalizá-las e atualizá-las, sem perder seus valores de origem.
Já é hora de saírem da categoria de projetos piloto para ser objeto de política pública de gente grande. O caminho dessa transição foi desenhado nos últimos cinco anos, em um cabo-de-guerra intragoverno que chegou a bons resultados, porém, inacabados.
Existe desde 2007 uma Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, na qual as reservas extrativistas estão inseridas. O primeiro passo desse trabalho concretizouse recentemente, com a assinatura do preço mínimo para os produtos extrativistas. Para ser para valer, falta ir adiante nas demais medidas traçadas.
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