Impulso e razão, altruísmo e destruição, cobiça e amor, cooperação e competição. Feito dessas contradições, cabe ao indivíduo equilibrá-las para que o coletivo se reequilibre
Por Amália Safatle
Depois que dominou sozinho os recursos que tinha à mão na ilha onde sobreviveu a um naufrágio, o marinheiro Robinson Crusoé pôde viver anos a fio sob um conforto inicialmente inimaginável. Na obra de Daniel Defoe publicada em 1719, o personagem obtinha alimentos abundantes, água pura, ar limpo, terras para cultivar, milhares de árvores de boa madeira e uma “casa” segura contra possíveis invasores. Até dinheiro possuía, em moedas de ouro e prata. Entretanto, era um rei sem súditos. E de que valeriam as moedas em uma ilha deserta?
Crusoé estava pronto a arriscar a comodidade e tudo o mais que acumulara pela companhia de gente. Mas o único elo que via com o mundo exterior era fonte de enorme apreensão: canoas navegadas por canibais que, de vez em quando, aportavam à praia, trazendo prisioneiros para matar e comer. Se conseguisse salvar um dos pobres coitados, imaginou, ele lhe seria grato o resto da vida e o guiaria para fora da ilha. Assim aconteceu.
O selvagem que um dia escapuliu da morte e foi salvo por Crusoé em uma sexta-feira, com este nome então batizado, tornou-se um parceiro essencial. Juntos, aproveitaram uma nova situação para se libertar da ilha: dominaram marinheiros amotinados de um navio que por lá apareceu e conquistaram a confiança do capitão, que, em seguida, também profundamente agradecido, levou Crusoé de volta à Inglaterra, na companhia do leal Sexta-Feira.
O resgate desse clássico de aventuras frequenta as aulas do professor Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, coordenador do projeto pedagógico da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV), quando o assunto é competição e cooperação no mundo capitalista – dualidade fundamental para se pensar na fronteira entre indivíduo e coletividade. “Se considerarmos Adam Smith, os agentes econômicos buscam o autointeresse, mas limitados por regras, leis e valores morais”, diz o professor.
Segundo Gonçalves, experimentos em ambientes controlados indicam que nós, humanos, estabelecemos mais empatia e somos mais morais que a teoria econômica tradicional imagina – em linha com o que o próprio Smith observou na sua Teoria dos Sentimentos Morais. “A ideia do homem econômico-racional apresenta resíduos mecanicistas”, diz Gonçalves. “Muitos dos nossos comportamentos são altruístas, não só sobre descendentes, mas humanos de forma geral e também não-humanos.” Mas o equilíbrio entre cooperação e competição, inato aos seres vivos e condição de sobrevivência no sistema ecológico, parece pender para a segunda ponta quando se trata da condição humana – basta constatar o resultado socioambiental das ações da nossa espécie, com profundas desigualdades, injustiças e uma capacidade ímpar de destruição.
De que somos feitos, afinal? De que matéria nasce a aventura humana na Terra? Como essa essência presente em cada indivíduo forma o grande coletivo? A chave para a sustentabilidade global reside nesse mergulho íntimo. Como afirma o médico e ensaísta Humberto Mariotti em entrevista nesta edição, o ponto de partida de toda a discussão está nas relações individuais, porque o universo todo está presente em cada um, por meio da água, do ar, dos elementos químicos.
Freeman Dyson escreve em sua obra De Eros a Gaia que sobreviver significa competir com sucesso em seis escalas: na de anos, a unidade é o indivíduo; na de décadas, a família; na de séculos, a tribo ou nação; na de milênio, a cultura; na de dezenas de milênios, a espécie; e, na de éon (período de tempo incomensurável), toda a teia de vida sobre o planeta.
Assim, o conflito central de nossa natureza estaria na luta entre o indivíduo egoísta e o grupo. “A natureza nos deu cobiça, um desejo robusto de maximizar ganhos individuais. Sem a cobiça, não teríamos sobrevivido no nível individual.” Mas na outra ponta deu o amor – desde o amor ao parceiro e aos filhos até o amor à natureza -, para ajudar a sobreviver nas escalas familiar à planetária.
Por isso Dyson fala em lealdades conflitantes. “Os seres humanos não podem ser humanos sem uma dotação generosa de cobiça e amor.” Como se verá ao longo desta reportagem, as religiões exploram, do ponto de vista espiritual, essa ligação entre o ser e o infinito coletivo, enquanto espelham todas as características, positivas e negativas, de uma sociedade humana.
A Biologia entende cada indivíduo como pertencente a uma teia ecossistêmica complexa e em evolução, sem a qual ele não poderia existir. A grande discussão do Direito está na tênue fronteira onde começam e terminam os direitos e os deveres de cada indivíduo em relação ao outro e à coletividade, afirma Fabiane Bessa, diretora do programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Socioambiental da PUC do Paraná. Mais: a Psicologia Social discute até mesmo a noção de indivíduo, por entender que ele é indissociável de um coletivo. A Psicanálise concebe o coletivo como resultado maior que a soma das individualidades, pois a interação entre elas gera uma nova dinâmica grupal, diz Plinio Montagna, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, para quem a realidade externa ao indivíduo é sempre investida de subjetividade.
“Uma simples percepção tem um matiz individual, um toque de singularidade dado pelo indivíduo que o torna diverso dos demais. Assim o mundo externo é colorido, para cada um de nós, com um tanto do nosso próprio ser.” Enquanto isso, visões mais profundas da Economia suplantam o mecanicismo, buscando entender variáveis comportamentais e morais nas decisões econômicas. Ou seja, diversas áreas do conhecimento, separadas pelo pensamento de ordem cartesiana, interligam-se em mensagem única, que o pensador francês Edgar Morin uma vez abordou de forma simples e transversal: “É impossível isolar o ser vivo de seu ecossistema, o indivíduo de sua sociedade, o sujeito do objeto”. Ao afirmar isso, Morin criticava a formulação de Descartes que veio a tomar conta do ideário ocidental: a distinção entre objeto e sujeito, entre natureza e o homem que deve dominá-la – pensamento de nefastos efeitos sobre o meio ambiente.
Morin afirma que “o que aprendemos do mundo não é um objeto abstraído de nós, mas o objeto visto e observado, coproduzido por nós. O nosso mundo faz parte da nossa visão de mundo, a qual faz parte do nosso mundo”, diz, em um jogo de palavras.
É a mesma linha de pensamento que segue a Psicossociologia, campo de pesquisas da professora Eda Tassara, fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa Socioambiental e Intervenção da Universidade de São Paulo (Lapsi/USP). “O indivíduo é resultado de uma constante interação entre aquilo que a Biologia define como interno, embalado por um invólucro que é a pele, e o mundo externo a esse invólucro. Essa relação é de mão dupla: o que o indivíduo joga para fora veio de fora”, afirma. Ou seja, “o que constitui o indivíduo são as mesmas forças que constituem o caldo da problemática socioambiental. São forças indissociáveis”.
Assim se forma um círculo vicioso: o indivíduo é resultado da crise, que é resultado do indivíduo. “Somente a reflexão pode ser capaz de romper esse círculo. Mas onde estaria esse espaço para reflexão”, questiona Eda, “se os canais de formação e informação dominantes perpetuam o atual estado das coisas?” Piratas e cyberpunks Uma alternativa, aponta ela, são as chamadas Zonas de Autonomia Temporária – TAZ , espaços coletivos, organizados em redes, que configuram possibilidades de pensar fora do sistema hegemônico e propor mudanças nas formas de organização da sociedade. “Uma outra opção seria a articulação de líderes esclarecidos em torno de uma governança global, que funcionaria como uma brecha no bloco monolítico do poder.
E, ainda, as alternativas sempre podem ser pensadas no espaço das utopias”, diz. “Utopias piratas” é justamente a expressão que dá título ao primeiro capítulo do livro de Bey – que inclusive recorre às obras de Daniel Defoe, o autor de Robinson Crusoé, para entender a formação das admiráveis redes de informações dos piratas, que se estendiam sobre o globo, rompendo fronteiras.
“Embora algumas pessoas achem que sim, eu não criei a idéia de Zona de Autonomia Temporária”, disse Bey em uma entrevista. “Apenas coloquei um nome esperto em algo que já estava acontecendo: a inevitável tendência dos indivíduos de se juntarem em grupos para buscar a liberdade. E não terem de esperar por ela até que chegue algum futuro utópico abstrato e pós-revolucionário.” Nessa entrevista, Bey cita Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficção científica cyberpunk, que publicou um romance ambientado em um futuro próximo e tem como base o pressuposto de que a decadência dos sistemas políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias descentralizadas: corporações gigantescas mantidas por seus funcionários, enclaves independentes dedicados à pirataria de dados, enclaves verdes e socialdemocratas, enclaves de trabalho-zero, zonas anarquistas liberadas etc. Essa noção de autonomia individual não vem de hoje.
Em grego a palavra indivíduo significa átomo, ou indivisível, ser com identidade própria, mas já a partir da Revolução Francesa ganhou conotação mais política, relacionada à liberdade, explica Gustavo Massola, professor do Lapsi/USP. “O individualismo é algo que se impõe hoje, não no sentido moral, mas da autonomia. Diria que o individualismo é a condição humana moderna”, afirma Carlos Alberto Steil, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um estudioso da antropologia da religião.
Ele diz que antigamente o indivíduo era apenas extensão de um grupo, não tinha escolha para sobreviver, a não ser seguir códigos de conduta definidos, por exemplo, pela coerção religiosa.
“Era um pertencimento que anulava. Hoje, quando as pessoas se agregam em comunidades, elas vão por adesão.” Trata-se de uma liberdade que não combina mais com a prisão a um jeito binário de operar, herdado do pensamento cartesiano linear, que o médico Humberto Mariottichama de “doença do pensamento”, e caracteriza a forma dominante de organização social e a atual economia de mercado: para que alguém ganhe, outro tem de perder; para um se incluir, é preciso excluir o outro. A lógica linear trouxe avanços inegáveis para a ciência e a tecnologia, mas também efeitos colaterais como devastação ambiental, fanatismo, totalitarismo e terrorismo, exemplifica.
Como diz Marcos Gonçalves, da FGV, embora dos pontos de vista político e econômico não seja um bom negócio pensar exclusivamente de forma individualista – entre os efeitos danosos que desequilibram os sistemas globais estão o hiperconsumismo, do lado do comprador, e a ganância, do lado do acionista -, as instituições criadas pelo homem operam segundo o princípio de que não estabelecemos ou não devemos estabelecer empatia com o outro.
Mariotti fala disso na entrevista desta edição: quando o dinheiro começou a se tornar administrável, criou-se aquilo que se chama de gestão de desconfiança, da qualo cartão bancário é um exemplo. “A primeira coisa que se aprende é ‘não mostre a sua senha para ninguém’, ‘não aceite a ajuda de estranhos’. É como se você vivesse cercado de feras, e acaba sendo verdade, porque se você trata as pessoas como feras elas se comportam assim com você”, diz.
Por isso soam tão arejadas as relações econômicas de troca descritas em reportagem nesta edição, em que a base de qualquer “contrato” é a confiança mútua, e nas quais os objetos, meramente pessoais, ganham multiplicidade e valores exponenciais quando transpõem a ilha do indivíduo e passam a circular em mares coletivos. Ou quando o indivíduo, pelas próprias mãos, é capaz de romper a linha que separa consumidor de produtor, como mostra a seção Radar.
Mas, de volta ao business as usual, as nações, diz Gonçalves, que buscam a riqueza como forma de poder geopolítico, acabam moldando o comportamento das pessoas, fazendo-as oscilar entre as essências altruística e destruidora. Diante disso, ele mesmo se pergunta por que ser otimista. “Porque os problemas ambientais, por exemplo, não têm fronteiras e demandarão um exercício inédito de cooperação entre países”, responde.
Um exercício que as religiões mundiais, como o cristianismo, o islamismo e o budismo, buscam: superar fronteiras locais e nacionais para alcançar o bem comum. “Quanto mais universal, mais sua mensagem está direcionada ao indivíduo, para que ele e o universo se encontrem”, afirma Steil, da UFRGS.
Mas aí surgem as contradições humanas, diz ele. Religiões também são usadas para demarcar fronteiras, a exemplo do Oriente Médio e da Bósnia. Apesar do discurso da irmandade, produzem hierarquias: dizer-se umbandista no Brasil pode soar inferior a dizer-se católico. Ao mesmo tempo disciplinadoras, podem desestabilizar a ordem estabelecida. E, se de um lado funcionam como ópio do povo, de outro dão voz aos oprimidos.
Freud também explicadDesequilíbrios nas contradições humanas, que aparecem claros do ponto de vista psicanalítico, ajudam a explicar por que tendemos a repetir os mesmos erros, como os de formar sucessivas crises – de ambientais a financeiras. A psicanalista Vera Rita de Mello Ferreira resgata Freud para dizer que a mente humana é basicamente regida por dois sistemas. Um, chamado de princípio do prazer-desprazer, é imediatista, regulado pela emoção e movido pela urgência de afastar tudo o que incomoda ou reprime e de se aproximar do que agrada, mesmo que seja ilusório. Daí a tendência a acreditar em bonanças eternas e a cair sempre nos mesmos erros. O outro, chamado de princípio da realidade, fundamenta-se na percepção do que está em volta, na memória das experiências vividas, no julgamento imparcial e na capacidade de tolerar as repercussões emocionais causadas por frustrações. O famoso “pense antes de agir”.
Segundo Vera, a Neurociência mostra que a parte posterior do cérebro, que rege o sistema da emoção do instinto e da intuição, é a mais antiga na evolução da espécie humana – o que nos deu condição de sobreviver no mundo primitivo. “Assim, quem manda primeiro é a emoção, o impulso do prazer-desprazer. O homem teve de fazer um esforço enorme para controlar o medo de dominar o fogo. Quando dominou o medo – e o fogo -, foi um salto evolucionário”, afirma.
“Mas a cabeça da gente ainda é predominantemente ‘Homer Simpson’, ou seja, busca em primeiro lugar só o que interessa, e emporcalha o que está em volta até não dar mais. O ambiente é reflexo disso”, diz. Por isso Vera defende que a sociedade implante alguns modelos que induzam as pessoas a hábitos na direção do que é mais adequado e desejável, até que a sociedade seja capaz de mover-se pela própria consciência.
É o que se chama de paternalismo light ou libertário, fundamentado no argumento de que a educação e o empoderamento ainda não são suficientes para mudar o comportamento humano na velocidade necessária. É preciso um empurrãozinho. “Essa é a última discussão na área da Psicologia Econômica, e que estou trazendo para o campo da sustentabilidade”, diz Vera.
Um exemplo trivial: criar um enforcement para que a indústria fabrique, via de regra, torneiras com aeradores, que reduzem o consumo de água. Assim, quem quiser uma torneira sem aerador, terá mais dificuldade de encontrar um produto fora do padrão.
Hoje, acontece exatamente o oposto. John Elkington, fundador da consultoria inglesa SustainAbility, em recente passagem pelo Brasil, afirmou que as escolhas e as decisões no mundo financeiro em geral ainda são feitas por agentes que operam como robôs, mesmo que uma crise financeira esteja novamente sacudindo o mundo, somada a outra de ordem ambiental sem precedentes. Por isso, ele acredita que modelos indutores de práticas financeiras sustentáveis podem ser uma ferramenta interessante – tal qual propõe o paternalismo light.
Se obedecer a modelos cartesianos é o que mais a espécie humana sabe fazer em seu atual estágio evolutivo, que os modelos sejam os melhores na direção de uma evolução, individual e coletiva, compatível com a complexidade da realidade que a cerca.
Por Amália Safatle
Impulso e razão, altruísmo e destruição, cobiça e amor, cooperação e competição. Feito dessas contradições, cabe ao indivíduo equilibrá-las para que o coletivo se reequilibre
Depois que dominou sozinho os recursos que tinha à mão na ilha onde sobreviveu a um naufrágio, o marinheiro Robinson Crusoé pôde viver anos a fio sob um conforto inicialmente inimaginável. Na obra de Daniel Defoe publicada em 1719, o personagem obtinha alimentos abundantes, água pura, ar limpo, terras para cultivar, milhares de árvores de boa madeira e uma “casa” segura contra possíveis invasores. Até dinheiro possuía, em moedas de ouro e prata. Entretanto, era um rei sem súditos. E de que valeriam as moedas em uma ilha deserta?
Crusoé estava pronto a arriscar a comodidade e tudo o mais que acumulara pela companhia de gente. Mas o único elo que via com o mundo exterior era fonte de enorme apreensão: canoas navegadas por canibais que, de vez em quando, aportavam à praia, trazendo prisioneiros para matar e comer. Se conseguisse salvar um dos pobres coitados, imaginou, ele lhe seria grato o resto da vida e o guiaria para fora da ilha. Assim aconteceu.
O selvagem que um dia escapuliu da morte e foi salvo por Crusoé em uma sexta-feira, com este nome então batizado, tornou-se um parceiro essencial. Juntos, aproveitaram uma nova situação para se libertar da ilha: dominaram marinheiros amotinados de um navio que por lá apareceu e conquistaram a confiança do capitão, que, em seguida, também profundamente agradecido, levou Crusoé de volta à Inglaterra, na companhia do leal Sexta-Feira.
O resgate desse clássico de aventuras frequenta as aulas do professor Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, coordenador do projeto pedagógico da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eesp-FGV), quando o assunto é competição e cooperação no mundo capitalista – dualidade fundamental para se pensar na fronteira entre indivíduo e coletividade. “Se considerarmos Adam Smith, os agentes econômicos buscam o autointeresse, mas limitados por regras, leis e valores morais”, diz o professor.
Segundo Gonçalves, experimentos em ambientes controlados indicam que nós, humanos, estabelecemos mais empatia e somos mais morais que a teoria econômica tradicional imagina – em linha com o que o próprio Smith observou na sua Teoria dos Sentimentos Morais. “A ideia do homem econômico-racional apresenta resíduos mecanicistas”, diz Gonçalves.
“Muitos dos nossos comportamentos são altruístas, não só sobre descendentes, mas humanos de forma geral e também não-humanos.” Mas o equilíbrio entre cooperação e competição, inato aos seres vivos e condição de sobrevivência no sistema ecológico, parece pender para a segunda ponta quando se trata da condição humana – basta constatar o resultado socioambiental das ações da nossa espécie, com profundas desigualdades, injustiças e uma capacidade ímpar de destruição.
De que somos feitos, afinal? De que matéria nasce a aventura humana na Terra? Como essa essência presente em cada indivíduo forma o grande coletivo? A chave para a sustentabilidade global reside nesse mergulho íntimo. Como afirma o médico e ensaísta Humberto Mariotti em entrevista nesta edição, o ponto de partida de toda a discussão está nas relações individuais, porque o universo todo está presente em cada um, por meio da água, do ar, dos elementos químicos.
Freeman Dyson escreve em sua obra De Eros a Gaia que sobreviver significa competir com sucesso em seis escalas: na de anos, a unidade é o indivíduo; na de décadas, a família; na de séculos, a tribo ou nação; na de milênio, a cultura; na de dezenas de milênios, a espécie; e, na de éon (período de tempo incomensurável), toda a teia de vida sobre o planeta.
Assim, o conflito central de nossa natureza estaria na luta entre o indivíduo egoísta e o grupo. “A natureza nos deu cobiça, um desejo robusto de maximizar ganhos individuais. Sem a cobiça, não teríamos sobrevivido no nível individual.” Mas na outra ponta deu o amor – desde o amor ao parceiro e aos filhos até o amor à natureza -, para ajudar a sobreviver nas escalas familiar à planetária.
Por isso Dyson fala em lealdades conflitantes. “Os seres humanos não podem ser humanos sem uma dotação generosa de cobiça e amor.” Como se verá ao longo desta reportagem, as religiões exploram, do ponto de vista espiritual, essa ligação entre o ser e o infinito coletivo, enquanto espelham todas as características, positivas e negativas, de uma sociedade humana.
A Biologia entende cada indivíduo como pertencente a uma teia ecossistêmica complexa e em evolução, sem a qual ele não poderia existir. A grande discussão do Direito está na tênue fronteira onde começam e terminam os direitos e os deveres de cada indivíduo em relação ao outro e à coletividade, afirma Fabiane Bessa, diretora do programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Socioambiental da PUC do Paraná. Mais: a Psicologia Social discute até mesmo a noção de indivíduo, por entender que ele é indissociável de um coletivo. A Psicanálise concebe o coletivo como resultado maior que a soma das individualidades, pois a interação entre elas gera uma nova dinâmica grupal, diz Plinio Montagna, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, para quem a realidade externa ao indivíduo é sempre investida de subjetividade.
“Uma simples percepção tem um matiz individual, um toque de singularidade dado pelo indivíduo que o torna diverso dos demais. Assim o mundo externo é colorido, para cada um de nós, com um tanto do nosso próprio ser.”
Enquanto isso, visões mais profundas da Economia suplantam o mecanicismo, buscando entender variáveis comportamentais e morais nas decisões econômicas. Ou seja, diversas áreas do conhecimento, separadas pelo pensamento de ordem cartesiana, interligam-se em mensagem única, que o pensador francês Edgar Morin uma vez abordou de forma simples e transversal: “É impossível isolar o ser vivo de seu ecossistema, o indivíduo de sua sociedade, o sujeito do objeto”.
Ao afirmar isso, Morin criticava a formulação de Descartes que veio a tomar conta do ideário ocidental: a distinção entre objeto e sujeito, entre natureza e o homem que deve dominá-la – pensamento de nefastos efeitos sobre o meio ambiente.
Morin afirma que “o que aprendemos do mundo não é um objeto abstraído de nós, mas o objeto visto e observado, coproduzido por nós. O nosso mundo faz parte da nossa visão de mundo, a qual faz parte do nosso mundo”, diz, em um jogo de palavras.
É a mesma linha de pensamento que segue a Psicossociologia, campo de pesquisas da professora Eda Tassara, fundadora e coordenadora do Laboratório de Pesquisa Socioambiental e Intervenção da Universidade de São Paulo (Lapsi/USP). “O indivíduo é resultado de uma constante interação entre aquilo que a Biologia define como interno, embalado por um invólucro que é a pele, e o mundo externo a esse invólucro. Essa relação é de mão dupla: o que o indivíduo joga para fora veio de fora”, afirma. Ou seja, “o que constitui o indivíduo são as mesmas forças que constituem o caldo da problemática socioambiental. São forças indissociáveis”.
Assim se forma um círculo vicioso: o indivíduo é resultado da crise, que é resultado do indivíduo. “Somente a reflexão pode ser capaz de romper esse círculo. Mas onde estaria esse espaço para reflexão”, questiona Eda, “se os canais de formação e informação dominantes perpetuam o atual estado das coisas?”
Piratas e cyberpunks
Uma alternativa, aponta ela, são as chamadas Zonas de Autonomia Temporária – TAZ , espaços coletivos, organizados em redes, que configuram possibilidades de pensar fora do sistema hegemônico e propor mudanças nas formas de organização da sociedade. “Uma outra opção seria a articulação de líderes esclarecidos em torno de uma governança global, que funcionaria como uma brecha no bloco monolítico do poder.
E, ainda, as alternativas sempre podem ser pensadas no espaço das utopias”, diz. “Utopias piratas” é justamente a expressão que dá título ao primeiro capítulo do livro de Bey – que inclusive recorre às obras de Daniel Defoe, o autor de Robinson Crusoé, para entender a formação das admiráveis redes de informações dos piratas, que se estendiam sobre o globo, rompendo fronteiras.
“Embora algumas pessoas achem que sim, eu não criei a idéia de Zona de Autonomia Temporária”, disse Bey em uma entrevista. “Apenas coloquei um nome esperto em algo que já estava acontecendo: a inevitável tendência dos indivíduos de se juntarem em grupos para buscar a liberdade. E não terem de esperar por ela até que chegue algum futuro utópico abstrato e pós-revolucionário.”
Nessa entrevista, Bey cita Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficção científica cyberpunk, que publicou um romance ambientado em um futuro próximo e tem como base o pressuposto de que a decadência dos sistemas políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias descentralizadas: corporações gigantescas mantidas por seus funcionários, enclaves independentes dedicados à pirataria de dados, enclaves verdes e socialdemocratas, enclaves de trabalho-zero, zonas anarquistas liberadas etc. Essa noção de autonomia individual não vem de hoje.
Em grego a palavra indivíduo significa átomo, ou indivisível, ser com identidade própria, mas já a partir da Revolução Francesa ganhou conotação mais política, relacionada à liberdade, explica Gustavo Massola, professor do Lapsi/USP. “O individualismo é algo que se impõe hoje, não no sentido moral, mas da autonomia. Diria que o individualismo é a condição humana moderna”, afirma Carlos Alberto Steil, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um estudioso da antropologia da religião.
Ele diz que antigamente o indivíduo era apenas extensão de um grupo, não tinha escolha para sobreviver, a não ser seguir códigos de conduta definidos, por exemplo, pela coerção religiosa.
“Era um pertencimento que anulava. Hoje, quando as pessoas se agregam em comunidades, elas vão por adesão.” Trata-se de uma liberdade que não combina mais com a prisão a um jeito binário de operar, herdado do pensamento cartesiano linear, que o médico Humberto Mariotti chama de “doença do pensamento”, e caracteriza a forma dominante de organização social e a atual economia de mercado: para que alguém ganhe, outro tem de perder; para um se incluir, é preciso excluir o outro. A lógica linear trouxe avanços inegáveis para a ciência e a tecnologia, mas também efeitos colaterais como devastação ambiental, fanatismo, totalitarismo e terrorismo, exemplifica.
Como diz Marcos Gonçalves, da FGV, embora dos pontos de vista político e econômico não seja um bom negócio pensar exclusivamente de forma individualista – entre os efeitos danosos que desequilibram os sistemas globais estão o hiperconsumismo, do lado do comprador, e a ganância, do lado do acionista -, as instituições criadas pelo homem operam segundo o princípio de que não estabelecemos ou não devemos estabelecer empatia com o outro.
Mariotti fala disso na entrevista desta edição: quando o dinheiro começou a se tornar administrável, criou-se aquilo que se chama de gestão de desconfiança, da qual o cartão bancário é um exemplo. “A primeira coisa que se aprende é ‘não mostre a sua senha para ninguém’, ‘não aceite a ajuda de estranhos’. É como se você vivesse cercado de feras, e acaba sendo verdade, porque se você trata as pessoas como feras elas se comportam assim com você”, diz.
Por isso soam tão arejadas as relações econômicas de troca descritas em reportagem nesta edição, em que a base de qualquer “contrato” é a confiança mútua, e nas quais os objetos, meramente pessoais, ganham multiplicidade e valores exponenciais quando transpõem a ilha do indivíduo e passam a circular em mares coletivos. Ou quando o indivíduo, pelas próprias mãos, é capaz de romper a linha que separa consumidor de produtor, como mostra a seção Radar.
Mas, de volta ao business as usual, as nações, diz Gonçalves, que buscam a riqueza como forma de poder geopolítico, acabam moldando o comportamento das pessoas, fazendo-as oscilar entre as essências altruística e destruidora. Diante disso, ele mesmo se pergunta por que ser otimista. “Porque os problemas ambientais, por exemplo, não têm fronteiras e demandarão um exercício inédito de cooperação entre países”, responde.
Um exercício que as religiões mundiais, como o cristianismo, o islamismo e o budismo, buscam: superar fronteiras locais e nacionais para alcançar o bem comum. “Quanto mais universal, mais sua mensagem está direcionada ao indivíduo, para que ele e o universo se encontrem”, afirma Steil, da UFRGS.
Mas aí surgem as contradições humanas, diz ele. Religiões também são usadas para demarcar fronteiras, a exemplo do Oriente Médio e da Bósnia. Apesar do discurso da irmandade, produzem hierarquias: dizer-se umbandista no Brasil pode soar inferior a dizer-se católico. Ao mesmo tempo disciplinadoras, podem desestabilizar a ordem estabelecida. E, se de um lado funcionam como ópio do povo, de outro dão voz aos oprimidos.
Freud também explica
Desequilíbrios nas contradições humanas, que aparecem claros do ponto de vista psicanalítico, ajudam a explicar por que tendemos a repetir os mesmos erros, como os de formar sucessivas crises – de ambientais a financeiras. A psicanalista Vera Rita de Mello Ferreira resgata Freud para dizer que a mente humana é basicamente regida por dois sistemas. Um, chamado de princípio do prazer-desprazer, é imediatista, regulado pela emoção e movido pela urgência de afastar tudo o que incomoda ou reprime e de se aproximar do que agrada, mesmo que seja ilusório. Daí a tendência a acreditar em bonanças eternas e a cair sempre nos mesmos erros.
O outro, chamado de princípio da realidade, fundamenta-se na percepção do que está em volta, na memória das experiências vividas, no julgamento imparcial e na capacidade de tolerar as repercussões emocionais causadas por frustrações. O famoso “pense antes de agir”.
Segundo Vera, a Neurociência mostra que a parte posterior do cérebro, que rege o sistema da emoção do instinto e da intuição, é a mais antiga na evolução da espécie humana – o que nos deu condição de sobreviver no mundo primitivo. “Assim, quem manda primeiro é a emoção, o impulso do prazer-desprazer. O homem teve de fazer um esforço enorme para controlar o medo de dominar o fogo. Quando dominou o medo – e o fogo -, foi um salto evolucionário”, afirma.
“Mas a cabeça da gente ainda é predominantemente ‘Homer Simpson’, ou seja, busca em primeiro lugar só o que interessa, e emporcalha o que está em volta até não dar mais. O ambiente é reflexo disso”, diz. Por isso Vera defende que a sociedade implante alguns modelos que induzam as pessoas a hábitos na direção do que é mais adequado e desejável, até que a sociedade seja capaz de mover-se pela própria consciência.
É o que se chama de paternalismo light ou libertário, fundamentado no argumento de que a educação e o empoderamento ainda não são suficientes para mudar o comportamento humano na velocidade necessária. É preciso um empurrãozinho. “Essa é a última discussão na área da Psicologia Econômica, e que estou trazendo para o campo da sustentabilidade”, diz Vera.
Um exemplo trivial: criar um enforcement para que a indústria fabrique, via de regra, torneiras com aeradores, que reduzem o consumo de água. Assim, quem quiser uma torneira sem aerador, terá mais dificuldade de encontrar um produto fora do padrão.
Hoje, acontece exatamente o oposto. John Elkington, fundador da consultoria inglesa SustainAbility, em recente passagem pelo Brasil, afirmou que as escolhas e as decisões no mundo financeiro em geral ainda são feitas por agentes que operam como robôs, mesmo que uma crise financeira esteja novamente sacudindo o mundo, somada a outra de ordem ambiental sem precedentes. Por isso, ele acredita que modelos indutores de práticas financeiras sustentáveis podem ser uma ferramenta interessante – tal qual propõe o paternalismo light.
Se obedecer a modelos cartesianos é o que mais a espécie humana sabe fazer em seu atual estágio evolutivo, que os modelos sejam os melhores na direção de uma evolução, individual e coletiva, compatível com a complexidade da realidade que a cerca.
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