Já que o assunto da edição de setembro é mobilidade, reunimos depoimentos de quem faz Página22 sobre como é a locomoção no dia a dia para fazer o site e a revista que agora você lê. Aproveite nosso espaço de comentários e conte suas experiências de mobilidade (ou da falta dela).
Entre o lúdico e o praticável
Amália Safatle – editora
Lembro direitinho da sensação que tive ao pegar pela primeira vez o carro sozinha, aos 18 anos. Senti-me a poucos pés do chão, quase flutuando em um voo dirigido – e isso foi o mais incrível – por mim mesma. Uma menina experimentando o lúdico que esse brinquedo tão masculino proporciona. Parecia que meu corpo tinha ganhado uma prótese, exponenciando minha força e velocidade a sei lá que potência. Confesso: adoro dirigir até hoje. E quando pego a estrada desimpedida, ainda me bate a mesma sensação juvenil.
Acontece que a estrada está cada vez menos desimpedida. E as avenidas. E as ruas. Apesar de gostar da velocidade, o que mais tenho curtido hoje é o filme em câmara lenta que me passa em frente aos olhos quando simplesmente sou pedestre. O detalhe que a gente percebe em cada canto do caminho e a intensidade desse tempo alongado são coisas que a velocidade te rouba. Sem a prótese, revivo a delícia que é andar sobre dois pés, mover-se com duas pernas, sentir cada músculo mexendo e o sol batendo na cara.
Quando não viajo na velocidade do satélite em meu home office no meio do mato, em Itapevi, viajo a São Paulo em um trajeto que combina carro, metrô e meus dois pés. Deixo o carro no Butantã com o bolso um tanto contrariado porque, na ponta do lápis, o gasto com estacionamento e bilhetes do metrô é maior que o do estacionamento e combustível caso eu entrasse na cidade com o carro – reflexo de uma falta de planejamento e de estímulo ao transporte público. Como em geral saio tarde do trabalho e as ruas nas imediações da estação Butantã são desertas, evito estacionar na rua. Mulher sozinha é uma combinação bem vulnerável. Mas a opção de pagar mais traz compensações. A sensação de largar o carro, mostrar a língua pro trânsito e simplesmente sair andando pela rua é impagável. Tem muito mais a ver com liberdade do que qualquer comercial de automóveis possa fazer você acreditar.
De leste ao centro
Thaís Herrero – repórter
Minha família nunca entendeu porque comprar um carro não é prioridade para mim. Antes de juntar dinheiro e gastá-lo em quatro rodas e muita gasolina, preferi transformá-lo em uma mochila e passagens aéreas. E, mais recentemente, na emancipação da casa dos pais para realizar o sonho do aluguel próprio e viver perto do trabalho.
Quando morava no Tatuapé, zona leste da cidade, para chegar na redação de Página22, na Bela Vista, gastava uma hora para cruzar 13 km de metrô e caminhando. Isso, fora do horário de pico e caso não houvesse uma das súbitas (mas comuns) panes nas linhas de todas as cores.
Hoje, morando na região de Santa Cecília, caminho 2,4 km por 30 minutos. E não gasto nada além da bateria do meu Ipod em que ouço músicas ou notícias que já me aquecem para o dia de trabalho.
Ao ouvir na rádio manchetes como “Trânsito de 200 km para avenidas” ou “Problemas na Linha Vermelha travam o metrô” sinto um profundo alívio de não ter nada que me impeça de chegar no horário planejado. Ao mesmo tempo, me sinto tão privilegiada que bate até um sentimento de culpa. Afinal, são poucos os que conseguem fugir da opção carro ou transporte público.
Dias desses percebi que perdi a deixa para papos de elevador e a desculpa para chegar atrasada. “Fiquei presa no trânsito depois que a cidade parou com a chuva” não funciona mais. É o preço (baixíssimo) que se paga por optar a locomoção a pé.
Sem mais hardcore
Leticia Freire – relações institucionais
Comprei um carro depois que voltei de uma longa viagem. A estrada sempre me causou certo fascínio e a ideia de continuar seguindo aquelas linhas pontilhadas parecia resolvida com um veículo em mãos. Doce ilusão. Dois anos depois percebi que a melhor viagem continua sendo aquela que fazem nossas pernas, livres de contratos, seguros e impostos.
O martelo da venda do possante bateu firme depois de uma violenta discussão de trânsito. Por não querer fechar o cruzamento, tive o vidro estilhaçado e quase apanhei de um homem de mais de 50 anos. Se não fosse um motoboy, a batata tinha assado feio para o meu lado, como disse o mano ao me socorrer.
Depois desse dia, o caldo azedou de vez. O estresse pelas horas de deslocamento aumentou, a irritação pelo tempo que morre ali, dentro daquela caixa metálica, chegou ao limite e decidi vender a máquina e aplicar o dinheiro em um fundo fixo de liberdade. Como sempre gostei de atividade física, voltei à magrela, pedalando por onde se compartilha a rua com mais gentileza. Nos casos em que isso é impossível – infelizmente pedalar em SP ainda é uma atividade de risco – vou de metro, ônibus e/ou simplesmente a pé.
A mudança, para mim, só foi positiva. Converso com estranhos, troco receitas, preparo as pautas e adianto o assunto com a chefa durante o trajeto para a redação – sim, às vezes vamos juntas da estação Butantã até a Paulista. Aproveito o tempo que voltou a ser meu durante os percursos para fotografar o instante alheio, seja um abraço, bocejo ou sorriso. Me sinto cada vez mais conectada ao entorno e mais consciente do desafio da mobilidade.
Claro que sei que sou uma pessoa sortuda. Tenho a facilidade de trabalhar em casa certos dias da semana e morar perto de uma vasta rede de transporte público. Mas acredito que atitude política e pressão popular podem estender essa vantagem a todos que moram em SP e estão a beira de um ataque de nervos quando o assunto é o caos do trânsito.
A via crucis para andar de ônibus em São Paulo
José Alberto Gonçalves Pereira – colaborador
Já ouvi muita gente defender que a qualidade da educação pública melhoraria consideravelmente se houvesse obrigação legal para os políticos matricularem seus filhos nas escolas públicas. Estendo a proposta ao transporte público.
Como não dirijo, eu ando, utilizo ônibus, metrô, às vezes trem. Pedalava até fevereiro último, quando minha bicicleta foi roubada durante uma tarde ensolarada na calçada da estação Faria Lima. Ela estava amarrada em um poste ao lado de um veículo da segurança do metrô. Não há bicicletário em uma das mais novas estações de metrô de Sampa.
Além dos ônibus serem barulhentos, a maioria possui piso alto e um desnível em sua parte central que já fez muita gente se acidentar. Motoristas e cobradores não gostam de informar os horários de saída dos coletivos e não há essa informação disponível nos pontos de ônibus, como é comum em cidades europeias. Os pontos são distantes uns dos outros para não atrapalhar o tráfego, a maioria não tem cobertura para proteger as pessoas do sol e da chuva, nem são iluminados.
Um exemplo notório é o do Largo da Batata. Na praça desértica que substituiu lojas desapropriadas pelas obras do metrô, os postes de luz não funcionam, ou encontram-se sempre desligados. A base comunitária da polícia, que funcionava ininterruptamente, sumiu. Não surpreende que, após certa hora da noite, as pessoas sintam-se amedrontadas ao esperar seu ônibus em um local que ficou mais perigoso após sua reurbanização.
Ao longo de mais de duas décadas morando na Pauliceia, reconheço que algumas melhorias realizadas pela prefeitura, especialmente a introdução do bilhete único. Mas elas ainda são muito modestas diante da revolução que precisa ser feita tornar o sistema de ônibus mais respeitoso para com seus passageiros. Tomar ônibus não pode continuar sendo um ato por demais sofrido para quem vive ou visita a maior cidade da América do Sul.