Apesar de avanços médicos notáveis, o tratamento do ser humano se fragmentou, a relação médico-paciente piorou e “fabricaram-se” novas doenças
Desde a Baixa Idade Média até o século XVII houve um intrigante equilíbrio entre a vida e a morte nas regiões mais povoadas da Europa. Sempre que se registrava um volume acentuado de mortes em razão de guerras ou epidemias, a população sobrevivente dava um jeito de aumentar o número de nascimentos – um movimento inexplicavelmente global de compensação demográfica, como no sistema de fluxo e refluxo das marés. Ainda assim, os enterros foram mais numerosos que os batismos até que, em certo momento do século XVIII, a vida passou a ganhar da morte e a pirâmide demográfica, como a conhecemos, começou a se formar.
O registro desse acontecimento histórico está no livro As Estruturas do Cotidiano, do historiador Fernand Braudel [1]. Curiosamente, indicadores demográficos atuais mostram que dentro de poucas décadas – a partir de 2050 –, o número de mortes novamente voltará a superar o de nascimentos em vários países, inclusive o Brasil. Desta vez, não por causa das guerras – afinal, o homem vive hoje o período mais pacífico de sua história – nem das epidemias, que já não matam com a virulência do passado. A inversão da pirâmide demográfica, representando o envelhecimento populacional, será resultado da conjugação de uma mudança de comportamento, que caminha para a redução da natalidade a menos de um filho por mulher, e do avanço da medicina, que proporciona longevidade crescente à enorme geração do pós-guerra.
[1] Acadêmico francês convidado em 1934, juntamente com o antropólogo Claude Lévi-strauss, para participar da organização da Universidade de São Paulo
O percurso entre esses dois pontos da história das ciências médicas passou por vários marcos terapêuticos (ver linha do tempo da medicina). Citando os mais emblemáticos, eles vão desde a descoberta de um mundo microbiológico que proporcionou a incorporação do conceito de assepsia às práticas médicas, passando pelo surgimento da anestesia e do antibiótico, até chegar às tecnologias de ponta, como as pesquisas de células-tronco, que prometem “milagres” em um futuro breve, e a medicina personalizada, baseada nas variações moleculares e genéticas dos indivíduos. O progresso médico neste último século foi tão notável que, à primeira vista, parece haver hoje mais soluções tecnológicas envolvendo saúde do que propriamente patologias.
O próprio tema da longevidade traz um exemplo representativo de como o avanço da medicina, ao mesmo tempo que ajuda a prolongar vidas com qualidade, tem um lado não tão magnânimo. Até os anos 1990, as doenças típicas da meia-idade e o envelhecimento eram prevenidos com inocentes exercícios físicos, alimentação balanceada, algumas cápsulas de vitaminas e check-ups; e a estética, com cremes antirrugas, peelings e cirurgias plásticas. Mas o sonho de viver longamente agora vem com um plus tão irresistível quanto perigoso: envelhecer livre da angústia da decadência física.
A INDÚSTRIA ANTI-AGING
Nos Estados Unidos, onde a pesquisa científica atira em todas as direções, envelhecimento, para muitos, virou sinônimo de doença. O mercado farmacêutico oferece pílulas de longevidade capazes de “tratar e curar” a velhice. O faturamento da chamada indústria anti-aging (antienvelhecimento) está chegando a impressionantes US$ 100 bilhões ao ano, e em 1990 esse setor nem sequer existia na economia (mais em “Prepare o seu corpinho para esse verão”).
Os “elixires da juventude” oferecidos são confeccionados à base de hormônios bioidênticos, substâncias hormonais que possuem a mesma estrutura química e molecular dos hormônios produzidos no corpo humano, como o hormônio do crescimento, a testosterona, o estradiol, entre outros.
A jornalista Arlene Weintraub, que trabalhou por dez anos como repórter científica na revista Business Week, investigou essa indústria e publicou um livro em que relata, em tom de denúncia, o surgimento desse mercado nos Estados Unidos [2]. Um dos pontos que ela critica efusivamente é o fato de a legislação americana não exigir que as farmácias de manipulação – as mais usadas pelas clínicas antienvelhecimento – façam bulas ou rótulos com advertências sobre os efeitos colaterais das substâncias hormonais que compõem esses tratamentos. “Isso é uma tragédia”, alerta.
[2] O livro é Selling the Fountain of Youth: How the anti-aging industry made a disease out of getting old – and made billions, que em tradução livre significa Vendendo a Fonte da Juventude: Como a indústria antienvelhecimento transformou o envelhecer numa doença – e faturou bilhões
Mas esse imperativo da medicalização não é prerrogativa dos Estados Unidos. No livro O Mito do Progresso, o escritor e cientista social Gilberto Dupas – vítima de um câncer em 2009 quando presidia o Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e coordenava o Grupo de Conjuntura Internacional da USP – observa que a medicalização, atrelada à lógica do retorno do investimento da indústria farmacêutica e de equipamentos médicos, é atualmente “concentrada e transnacional”.
VIROU DOENÇA
Inspirado nas pesquisas do sociólogo Frank Furedi, da Universidade de Kent, no Reino Unido, Dupas indignava-se com o fato de que determinadas características pessoais, que durante séculos foram classificadas como questões existenciais, agora recebem rótulos médicos e tratamento.
“É o caso da boa e velha timidez, agora diagnosticada como fobia social”, relatou no livro. O uso de drogas para tratar distúrbios de hiperatividade por déficit de atenção também passou a ser trivial, inclusive no Brasil. Dupas criticava a falta de preocupação sistemática para identificar as razões que levavam essas pessoas à desatenção. “As drogas usadas nesse tipo de tratamento são estimulantes desestabilizadores do humor e podem deixar as pessoas emocionalmente instáveis”, advertiu. Segundo ele, o uso crescente do termo wellness (bem-estar total) também sugere que nunca se está totalmente são, mas potencialmente doente.
Em linha com esse pensamento, o filósofo Clóvis de Barros Filho, professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes da USP, que possui vasto repertório de aulas e palestras em que aborda, entre outras questões, a filosofia da vida saudável, afirma que ao se estabelecerem critérios ideais de sanidade toda a realidade passa a ser doentia. Imaginando que o homem nunca alcançará a plena quintessência da sua energia vital, ele será sempre um pouco doente. “A partir do momento em que cada tristeza é convertida em distúrbio, ganha prestígio e função social aquele que se apresenta como curandeiro capaz de restabelecer o status quo, ou a situação anterior à desarmonia”, observa Barros Filho.
Para ele isso é bem visível na Psiquiatria, especialidade que registra um aumento tão expressivo das doenças que não mais se atribuem nomes a elas, apenas códigos, em uma combinação de números e letras. O professor de Filosofia lembra também que, não faz muito tempo, a fonoaudiologia passou a defender um padrão de excelência vocal que se mostrou inalcançável.
Ou seja, a partir desse padrão vocal todas as pessoas apresentam alguma anomalia no seu modo de falar. “É de uma conveniência máxima consagrar o mundo inteiro como paciente em potencial da fonoaudiologia”, ironiza. Essa ultraespecialização da medicina, a seu ver, atende a necessidades que estão relacionadas a uma espécie de “economia da gestão da vida”. E conclui: “Desse ponto de vista, é compreensível que se multiplique o número de doenças”.
Existe, de fato, uma “tecnicalização” da saúde que interfere na relação médico-paciente. Quem diz isso é a imunologista e oncologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Nise Yamaguchi, que, na busca de uma visão mais holística de seus pacientes, graduou-se também em Filosofia. Ela explica que é muito comum essa tecnicidade ocorrer dentro do sistema de saúde suplementar, onde se dão os convênios médicos. “É difícil construir uma relação individual personalizada com seu médico dentro de ambientes mais hostis, onde a relação humana não tem espaço e tempo preponderantes”, explica.
Nesse caso, a medicina passa a ser muito baseada em exames, diagnósticos e intervenções do ponto de vista cirúrgico e medicamentoso. “Talvez uma boa parte desses procedimentos pudesse ser evitada dentro de uma medicina mais voltada para o indivíduo”, pondera (mais em Entrevista). De qualquer modo, a relação com os pacientes é uma decisão pessoal do médico. “Tem a ver com uma formação pessoal e o compromisso com o outro. Não importa se o sistema contribui mais ou menos com o seu sustento; importa o que você resolve fazer.”
A ultraespecialização da medicina, que fragmenta as pessoas em órgãos e membros, não ajuda na construção holística que a médica busca em seu trabalho, mas é importante, segundo ela: “Não existe uma verdade única”, filosofa. “Apesar de ter autorização do Conselho Regional de Medicina, não serei a melhor opção para fazer cirurgia ortopédica em meus pacientes.” O especialista é habilitado para fazer certas coisas com melhor performance. E, nas patologias de alta complexidade, como câncer, doenças cardíacas ou problemas nefrológicos, a falta de um especialista pode inclusive ser fatal.
GESTALT
A rigor, o especialista encurta o tempo entre a consulta e o diagnóstico, porque sabe o que procurar. Entretanto, nada o impede de possuir uma visão menos segmentada de seus pacientes. A própria Nise Yamaguchi, uma especialista, quando recebe um novo paciente conversa com todos os médicos que o atenderam anteriormente, sua família, seus amigos e todos os que possam de algum modo se envolver naquele tratamento. “É como um trabalho de mosaico que, ao fim, me dá uma gestalt, uma visão do todo”.
As pessoas também desempenham um papel na manutenção da sua própria saúde, que transpassa o significado que a vida tem para elas. O ambiente de trabalho, por exemplo, pode gerar uma oportunidade para que ela exerça a sua função no mundo. Na opinião da médica, essa busca por um significado ajuda a sustentar a saúde. Mas, como a realidade nunca é tão simples, logo os objetivos ideais confundem-se com os objetivos corporativos e o resultado não tarda a chegar: o estresse. Esse mal moderno provoca uma produção exagerada de cortisol e adrenalina, substâncias que podem repercutir em aumento de pressão, peso e diabetes, problemas cardíacos e diminuição de imunidade, inclusive com relação ao câncer. “O resultado vai depender muito de como o indivíduo lida com as peripécias do dia a dia”, explica a médica
ABORDAGENS MAIS INTEGRAIS
Na saúde pública, de um ponto de vista macro, também não existe um cuidado integral com o paciente, embora essa seja uma das finalidades do Sistema Único de Saúde, o SUS. Os diagnósticos são tardios, as pessoas não encontram respostas às suas necessidades, tampouco interlocutores. Elas se perdem no fluxo. Mas a oncologista lembra de pelo menos duas boas iniciativas, relativamente recentes, que surgiram dentro desse cenário desolador: o Programa de Saúde da Família (PSF), inspirado no programa cubano Médico de Quarteirão, que dá maior capilaridade ao atendimento; e o Cartão SUS, que permite mapear a vida clínica dos pacientes da rede.
Ao PSF já se atribui uma expressiva queda da mortalidade infantil e da mortalidade materna. Entre as metas atuais estão a tentativa de coibir também o aumento de peso da população e a de estimular a prática de exercícios.
Faculdades de medicina também já discutem modelos mais integrais de atendimento. No Brasil, algumas escolas de medicina estão adotando o chamado PBL [3], sigla inglesa que significa aprendizado baseado em problema, metodologia que busca uma visão sistêmica da pessoa, do diagnóstico e do tratamento. “Para conseguir uma capacitação total de um sistema que vem dessa fragmentação, é preciso construir um novo paradigma de uma visão de mundo que permita a integração de determinados itens que estão meio soltos”, analisa a oncologista Nise. Essas pequenas iniciativas constituem os primeiros passos. O caminho é longo, mas pelo menos começou a ser trilhado.
[3] O PBL apresenta uma concepção diferenciada da relação entre ensino e aprendizagem, na qual o aluno deixa de ser um agente passivo. Desse modo, tenderá a desenvolver uma situação de autonomia no aprendizado
Outra iniciativa na área do ensino que está conquistando visibilidade no mundo vem do Canadá, precisamente da Faculdade de Medicina da Universidade de Montreal. Lá funciona o departamento especializado em “Parcerias com Pacientes”, ocupado por um grupo de portadores de doenças crônicas como hemofilia, diabetes, hepatite e Aids, entre outras. Apesar de não serem médicos, esses pacientes ministram aulas para os estudantes de medicina, ensinando-os a se relacionar mais apropriadamente com os doentes.
Quem relata essa experiência é o filósofo francês Nicolas Lechopier, da Universidade de Lyon, que esteve em visita à USP, em novembro, para animar um intercâmbio de ideias e de projetos na área das ciências humanas em saúde. O grupo canadense formou-se a partir de uma discussão que começou na década de 1990, quando surgiram os primeiros remédios de combate à Aids. Os efeitos colaterais arruinavam a qualidade de vida dos pacientes. Provocavam enjoos, falta de libido, insônia, problemas de pele etc. Na época, vários portadores do vírus, que não haviam desenvolvido doença, recusaram-se a fazer o tratamento em favor de seus projetos de vida. Foram, então, acusados de reacionários e traidores, pois supostamente estariam optando pela morte.
Entre eles estava Vincent Dumez, um rapaz hemofílico que contraíra o HIV durante uma transfusão de sangue, e que hoje é o diretor do Parcerias com Pacientes. “O caso, que teve ares de escândalo, acabou gerando um amplo debate sobre os limites da autoridade médica”, conta Nicolas Lechopier. Um dos temas tratados pelo grupo é justamente o da participação dos pacientes na definição dos métodos de tratamento aplicados na política pública de saúde do Canadá.
É importante frisar, porém, que essa participação dos pacientes defendida pelo grupo não se confunde com apresentar reivindicações às “autoridades em saúde”. A participação é no sentido de exercer de fato poder de decisão na formulação das metas e procedimentos de curas de doenças. “A escola ensina o saber científico, mas a experiência da doença tem uma dimensão sociológica e experiencial que não pode partir de outras pessoas a não ser de quem experimentou a doença”, defende Lechopier
convidado em 1934,
juntamente com o
antropólogo Claude
Lévi-strauss, para
participar da organização
da universidade de são
Paulo
Leia mais: O depoimento de Kazuko Tsuraka, que diz em “situação de doença”[:en]Apesar de avanços médicos notáveis, o tratamento do ser humano se fragmentou, a relação médico-paciente piorou e “fabricaram-se” novas doenças
Desde a Baixa Idade Média até o século XVII houve um intrigante equilíbrio entre a vida e a morte nas regiões mais povoadas da Europa. Sempre que se registrava um volume acentuado de mortes em razão de guerras ou epidemias, a população sobrevivente dava um jeito de aumentar o número de nascimentos – um movimento inexplicavelmente global de compensação demográfica, como no sistema de fluxo e refluxo das marés. Ainda assim, os enterros foram mais numerosos que os batismos até que, em certo momento do século XVIII, a vida passou a ganhar da morte e a pirâmide demográfica, como a conhecemos, começou a se formar.
O registro desse acontecimento histórico está no livro As Estruturas do Cotidiano, do historiador Fernand Braudel [1]. Curiosamente, indicadores demográficos atuais mostram que dentro de poucas décadas – a partir de 2050 –, o número de mortes novamente voltará a superar o de nascimentos em vários países, inclusive o Brasil. Desta vez, não por causa das guerras – afinal, o homem vive hoje o período mais pacífico de sua história – nem das epidemias, que já não matam com a virulência do passado. A inversão da pirâmide demográfica, representando o envelhecimento populacional, será resultado da conjugação de uma mudança de comportamento, que caminha para a redução da natalidade a menos de um filho por mulher, e do avanço da medicina, que proporciona longevidade crescente à enorme geração do pós-guerra.
[1] Acadêmico francês convidado em 1934, juntamente com o antropólogo Claude Lévi-strauss, para participar da organização da Universidade de São Paulo
O percurso entre esses dois pontos da história das ciências médicas passou por vários marcos terapêuticos (ver linha do tempo da medicina). Citando os mais emblemáticos, eles vão desde a descoberta de um mundo microbiológico que proporcionou a incorporação do conceito de assepsia às práticas médicas, passando pelo surgimento da anestesia e do antibiótico, até chegar às tecnologias de ponta, como as pesquisas de células-tronco, que prometem “milagres” em um futuro breve, e a medicina personalizada, baseada nas variações moleculares e genéticas dos indivíduos. O progresso médico neste último século foi tão notável que, à primeira vista, parece haver hoje mais soluções tecnológicas envolvendo saúde do que propriamente patologias.
O próprio tema da longevidade traz um exemplo representativo de como o avanço da medicina, ao mesmo tempo que ajuda a prolongar vidas com qualidade, tem um lado não tão magnânimo. Até os anos 1990, as doenças típicas da meia-idade e o envelhecimento eram prevenidos com inocentes exercícios físicos, alimentação balanceada, algumas cápsulas de vitaminas e check-ups; e a estética, com cremes antirrugas, peelings e cirurgias plásticas. Mas o sonho de viver longamente agora vem com um plus tão irresistível quanto perigoso: envelhecer livre da angústia da decadência física.
A INDÚSTRIA ANTI-AGING
Nos Estados Unidos, onde a pesquisa científica atira em todas as direções, envelhecimento, para muitos, virou sinônimo de doença. O mercado farmacêutico oferece pílulas de longevidade capazes de “tratar e curar” a velhice. O faturamento da chamada indústria anti-aging (antienvelhecimento) está chegando a impressionantes US$ 100 bilhões ao ano, e em 1990 esse setor nem sequer existia na economia (mais em “Prepare o seu corpinho para esse verão”).
Os “elixires da juventude” oferecidos são confeccionados à base de hormônios bioidênticos, substâncias hormonais que possuem a mesma estrutura química e molecular dos hormônios produzidos no corpo humano, como o hormônio do crescimento, a testosterona, o estradiol, entre outros.
A jornalista Arlene Weintraub, que trabalhou por dez anos como repórter científica na revista Business Week, investigou essa indústria e publicou um livro em que relata, em tom de denúncia, o surgimento desse mercado nos Estados Unidos [2]. Um dos pontos que ela critica efusivamente é o fato de a legislação americana não exigir que as farmácias de manipulação – as mais usadas pelas clínicas antienvelhecimento – façam bulas ou rótulos com advertências sobre os efeitos colaterais das substâncias hormonais que compõem esses tratamentos. “Isso é uma tragédia”, alerta.
[2] O livro é Selling the Fountain of Youth: How the anti-aging industry made a disease out of getting old – and made billions, que em tradução livre significa Vendendo a Fonte da Juventude: Como a indústria antienvelhecimento transformou o envelhecer numa doença – e faturou bilhões
Mas esse imperativo da medicalização não é prerrogativa dos Estados Unidos. No livro O Mito do Progresso, o escritor e cientista social Gilberto Dupas – vítima de um câncer em 2009 quando presidia o Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e coordenava o Grupo de Conjuntura Internacional da USP – observa que a medicalização, atrelada à lógica do retorno do investimento da indústria farmacêutica e de equipamentos médicos, é atualmente “concentrada e transnacional”.
VIROU DOENÇA
Inspirado nas pesquisas do sociólogo Frank Furedi, da Universidade de Kent, no Reino Unido, Dupas indignava-se com o fato de que determinadas características pessoais, que durante séculos foram classificadas como questões existenciais, agora recebem rótulos médicos e tratamento.
“É o caso da boa e velha timidez, agora diagnosticada como fobia social”, relatou no livro. O uso de drogas para tratar distúrbios de hiperatividade por déficit de atenção também passou a ser trivial, inclusive no Brasil. Dupas criticava a falta de preocupação sistemática para identificar as razões que levavam essas pessoas à desatenção. “As drogas usadas nesse tipo de tratamento são estimulantes desestabilizadores do humor e podem deixar as pessoas emocionalmente instáveis”, advertiu. Segundo ele, o uso crescente do termo wellness (bem-estar total) também sugere que nunca se está totalmente são, mas potencialmente doente.
Em linha com esse pensamento, o filósofo Clóvis de Barros Filho, professor de Ética da Escola de Comunicações e Artes da USP, que possui vasto repertório de aulas e palestras em que aborda, entre outras questões, a filosofia da vida saudável, afirma que ao se estabelecerem critérios ideais de sanidade toda a realidade passa a ser doentia. Imaginando que o homem nunca alcançará a plena quintessência da sua energia vital, ele será sempre um pouco doente. “A partir do momento em que cada tristeza é convertida em distúrbio, ganha prestígio e função social aquele que se apresenta como curandeiro capaz de restabelecer o status quo, ou a situação anterior à desarmonia”, observa Barros Filho.
Para ele isso é bem visível na Psiquiatria, especialidade que registra um aumento tão expressivo das doenças que não mais se atribuem nomes a elas, apenas códigos, em uma combinação de números e letras. O professor de Filosofia lembra também que, não faz muito tempo, a fonoaudiologia passou a defender um padrão de excelência vocal que se mostrou inalcançável.
Ou seja, a partir desse padrão vocal todas as pessoas apresentam alguma anomalia no seu modo de falar. “É de uma conveniência máxima consagrar o mundo inteiro como paciente em potencial da fonoaudiologia”, ironiza. Essa ultraespecialização da medicina, a seu ver, atende a necessidades que estão relacionadas a uma espécie de “economia da gestão da vida”. E conclui: “Desse ponto de vista, é compreensível que se multiplique o número de doenças”.
Existe, de fato, uma “tecnicalização” da saúde que interfere na relação médico-paciente. Quem diz isso é a imunologista e oncologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Nise Yamaguchi, que, na busca de uma visão mais holística de seus pacientes, graduou-se também em Filosofia. Ela explica que é muito comum essa tecnicidade ocorrer dentro do sistema de saúde suplementar, onde se dão os convênios médicos. “É difícil construir uma relação individual personalizada com seu médico dentro de ambientes mais hostis, onde a relação humana não tem espaço e tempo preponderantes”, explica.
Nesse caso, a medicina passa a ser muito baseada em exames, diagnósticos e intervenções do ponto de vista cirúrgico e medicamentoso. “Talvez uma boa parte desses procedimentos pudesse ser evitada dentro de uma medicina mais voltada para o indivíduo”, pondera (mais em Entrevista). De qualquer modo, a relação com os pacientes é uma decisão pessoal do médico. “Tem a ver com uma formação pessoal e o compromisso com o outro. Não importa se o sistema contribui mais ou menos com o seu sustento; importa o que você resolve fazer.”
A ultraespecialização da medicina, que fragmenta as pessoas em órgãos e membros, não ajuda na construção holística que a médica busca em seu trabalho, mas é importante, segundo ela: “Não existe uma verdade única”, filosofa. “Apesar de ter autorização do Conselho Regional de Medicina, não serei a melhor opção para fazer cirurgia ortopédica em meus pacientes.” O especialista é habilitado para fazer certas coisas com melhor performance. E, nas patologias de alta complexidade, como câncer, doenças cardíacas ou problemas nefrológicos, a falta de um especialista pode inclusive ser fatal.
GESTALT
A rigor, o especialista encurta o tempo entre a consulta e o diagnóstico, porque sabe o que procurar. Entretanto, nada o impede de possuir uma visão menos segmentada de seus pacientes. A própria Nise Yamaguchi, uma especialista, quando recebe um novo paciente conversa com todos os médicos que o atenderam anteriormente, sua família, seus amigos e todos os que possam de algum modo se envolver naquele tratamento. “É como um trabalho de mosaico que, ao fim, me dá uma gestalt, uma visão do todo”.
As pessoas também desempenham um papel na manutenção da sua própria saúde, que transpassa o significado que a vida tem para elas. O ambiente de trabalho, por exemplo, pode gerar uma oportunidade para que ela exerça a sua função no mundo. Na opinião da médica, essa busca por um significado ajuda a sustentar a saúde. Mas, como a realidade nunca é tão simples, logo os objetivos ideais confundem-se com os objetivos corporativos e o resultado não tarda a chegar: o estresse. Esse mal moderno provoca uma produção exagerada de cortisol e adrenalina, substâncias que podem repercutir em aumento de pressão, peso e diabetes, problemas cardíacos e diminuição de imunidade, inclusive com relação ao câncer. “O resultado vai depender muito de como o indivíduo lida com as peripécias do dia a dia”, explica a médica
ABORDAGENS MAIS INTEGRAIS
Na saúde pública, de um ponto de vista macro, também não existe um cuidado integral com o paciente, embora essa seja uma das finalidades do Sistema Único de Saúde, o SUS. Os diagnósticos são tardios, as pessoas não encontram respostas às suas necessidades, tampouco interlocutores. Elas se perdem no fluxo. Mas a oncologista lembra de pelo menos duas boas iniciativas, relativamente recentes, que surgiram dentro desse cenário desolador: o Programa de Saúde da Família (PSF), inspirado no programa cubano Médico de Quarteirão, que dá maior capilaridade ao atendimento; e o Cartão SUS, que permite mapear a vida clínica dos pacientes da rede.
Ao PSF já se atribui uma expressiva queda da mortalidade infantil e da mortalidade materna. Entre as metas atuais estão a tentativa de coibir também o aumento de peso da população e a de estimular a prática de exercícios.
Faculdades de medicina também já discutem modelos mais integrais de atendimento. No Brasil, algumas escolas de medicina estão adotando o chamado PBL [3], sigla inglesa que significa aprendizado baseado em problema, metodologia que busca uma visão sistêmica da pessoa, do diagnóstico e do tratamento. “Para conseguir uma capacitação total de um sistema que vem dessa fragmentação, é preciso construir um novo paradigma de uma visão de mundo que permita a integração de determinados itens que estão meio soltos”, analisa a oncologista Nise. Essas pequenas iniciativas constituem os primeiros passos. O caminho é longo, mas pelo menos começou a ser trilhado.
[3] O PBL apresenta uma concepção diferenciada da relação entre ensino e aprendizagem, na qual o aluno deixa de ser um agente passivo. Desse modo, tenderá a desenvolver uma situação de autonomia no aprendizado
Outra iniciativa na área do ensino que está conquistando visibilidade no mundo vem do Canadá, precisamente da Faculdade de Medicina da Universidade de Montreal. Lá funciona o departamento especializado em “Parcerias com Pacientes”, ocupado por um grupo de portadores de doenças crônicas como hemofilia, diabetes, hepatite e Aids, entre outras. Apesar de não serem médicos, esses pacientes ministram aulas para os estudantes de medicina, ensinando-os a se relacionar mais apropriadamente com os doentes.
Quem relata essa experiência é o filósofo francês Nicolas Lechopier, da Universidade de Lyon, que esteve em visita à USP, em novembro, para animar um intercâmbio de ideias e de projetos na área das ciências humanas em saúde. O grupo canadense formou-se a partir de uma discussão que começou na década de 1990, quando surgiram os primeiros remédios de combate à Aids. Os efeitos colaterais arruinavam a qualidade de vida dos pacientes. Provocavam enjoos, falta de libido, insônia, problemas de pele etc. Na época, vários portadores do vírus, que não haviam desenvolvido doença, recusaram-se a fazer o tratamento em favor de seus projetos de vida. Foram, então, acusados de reacionários e traidores, pois supostamente estariam optando pela morte.
Entre eles estava Vincent Dumez, um rapaz hemofílico que contraíra o HIV durante uma transfusão de sangue, e que hoje é o diretor do Parcerias com Pacientes. “O caso, que teve ares de escândalo, acabou gerando um amplo debate sobre os limites da autoridade médica”, conta Nicolas Lechopier. Um dos temas tratados pelo grupo é justamente o da participação dos pacientes na definição dos métodos de tratamento aplicados na política pública de saúde do Canadá.
É importante frisar, porém, que essa participação dos pacientes defendida pelo grupo não se confunde com apresentar reivindicações às “autoridades em saúde”. A participação é no sentido de exercer de fato poder de decisão na formulação das metas e procedimentos de curas de doenças. “A escola ensina o saber científico, mas a experiência da doença tem uma dimensão sociológica e experiencial que não pode partir de outras pessoas a não ser de quem experimentou a doença”, defende Lechopier
convidado em 1934,
juntamente com o
antropólogo Claude
Lévi-strauss, para
participar da organização
da universidade de são
Paulo
Leia mais: O depoimento de Kazuko Tsuraka, que diz em “situação de doença”