Enquanto empresas respondem por fatias crescentes no funding do Terceiro Setor, seus representantes almejam, no futuro Marco Regulatório, formas de alcançar a autonomia financeira para ganhar robustez e maior liberdade de ação
A história da sociedade civil organizada nasce com as reivindicações coletivas em prol das questões humanitárias, como o voto feminino e a luta contra a escravidão no século XIX. Apesar da legitimidade de suas ações e propostas, muitas dessas entidades enfrentam um sério dilema financeiro para se manter atuantes. Por estar de fora das estruturas que fiscalizam – as empresas privadas e o Estado –, essas organizações acabam sem acesso às fontes tradicionais de financiamento.
No Brasil, a situação é ainda mais crítica, visto que não existe uma cultura de doação individual, que poderia ser uma via importante de captação para as organizações não governamentais (ONGs). Grande parte das 338 mil entidades da sociedade civil organizada (fundações privadas e associações sem fins lucrativos) no País depende de projetos propostos ao governo e às empresas.
A sustentação econômica das ONGs é uma discussão que afeta inclusive a independência dessas instituições. As regras para lidar com o governo são claramente norteadas e fiscalizadas pelos Tribunais de Conta, e várias entidades têm sido denunciadas nas já conhecidas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). Mas, com as empresas, a relação dessas instituições ainda é nebulosa. Como as ONGs podem garantir sua autonomia e trabalhar com liberdade na defesa de temas públicos quando seus recursos são bancados por interesses privados e direcionados por essa agenda?
Esse cenário também revela distorções, com recursos fatiados de forma bastante desigual. “A maioria das ONGs brasileiras (72%) ainda resiste praticamente sem recurso algum, apenas com trabalho voluntário, e as mais organizadas se mantêm com dinheiro público mediante a prestação de serviços ao governo. Mas os recursos de empresas (públicas e privadas) são hoje um importante complemento para a sustentabilidade financeira das ONGs”, afirma Vera Masagão Ribeiro, coordenadora-geral da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong).
A parceria entre ONGs e empresas é um fenômeno que ganhou força nas duas últimas décadas. Entre as 243 entidades que integram a Abong, os números são bem expressivos. Em uma pesquisa de perfil da entidade, publicada em 1996, apenas 3% das associadas acessavam recursos de empresas, institutos e fundações. Em 2000, essa proporção passou para 32,65%, e, em 2007, subiu para 41,5%.
A redução nos recursos provenientes da cooperação internacional direcionados ao Brasil pode ser uma das causas do crescimento das fontes privadas de captação. Segundo Vera, houve dois movimentos distintos: primeiramente a desvalorização do dólar, no início da década de 1990, o que reduziu o valor total desses recursos, mesmo quando eles se mantinham constantes. Em seguida, a crise econômica de 2008, quando houve, de fato, uma redução das fontes internacionais que destinavam verbas às organizações sociais.
O crescimento econômico do Brasil e os programas de combate à pobreza, empreendidos pelo governo federal nos últimos 10 anos, também são apontados como razões da diminuição nos aportes externos às ONGs brasileiras. Com a melhoria nos indicadores sociais do Brasil, porção considerável dos recursos do exterior foi redirecionada para nações mais pobres, como alguns países africanos.
REIVINDICAÇÃO ANTIGA
Um Marco Regulatório para o Terceiro Setor pode ser uma das soluções para o problema de funding dessas entidades. A reivindicação existe há mais de 20 anos e propõe um esforço para integrar ONGs e governo na criação de mecanismos legais que proporcionem sus- tentação autônoma para as entidades da sociedade civil.
Um grupo de trabalho formado em 2011 pela Secretaria-Geral da Presidência e representantes de organizações do Terceiro Setor discutiu o assunto em 22 de março, em Brasília. O ponto central da pauta foram as alternativas para financiamento das ONGs. “Estamos voltados para resolver três questões: as relações contratuais entre Estado e ONGs, que regulam o repasse de dinheiro público para as entidades; o financiamento e a sustentabilidade do Terceiro Setor; e a certificação”, descreve Diogo Sant’Ana, secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, responsável por acompanhar esse trabalho.
A esperança dos integrantes da Plataforma por um Novo Marco Regulatório [1] é que a presidente Dilma Rousseff cumpra sua promessa de campanha, feita em 2010, de instituir a medida. Essa revisão das leis e normas que regulam as ONGs ajudaria a resolver impasses, como a ausência de mecanismos mais democráticos para pessoas jurídicas e físicas realizarem doações para ONGs com incentivos fiscais e o problema da falta de leis para o repasse de verbas. No Brasil, quando uma ONG recebe recurso do governo federal, a legislação aplicada é a de repasse de fundos aos municípios. “Uma das alternativas que já vamos colocar em curso no próximo ano é a possibilidade da doação de parte das restituições do Imposto de Renda (IR) a entidades civis” revela Sant’Ana.
[1] Articulação da sociedade civil, formada por ONGs e fundações, destina-se a negociar com governo e parlamentares a aprovação do Marco Regulatório
Outro ponto de atenção para os próximos meses é saber se o governo vai apresentar, ele mesmo, um projeto de lei que englobe todos os principais temas da discussão sobre o novo marco legal do Terceiro Setor. Hoje, o papel da Secretária-Geral da Presidência é monitorar os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, e apresentar algumas propostas, como a legislação que regula os repasses públicos para as ONGs e a criação do Simples Social – um sistema tributário destinado a desburocratizar as exigências legais do setor.
Enquanto as discussões sobre o Marco Regulatório permanecem em Brasília, muitas ONGs buscam bancar suas ações por meio das parcerias com as empresas. No caso da Conservação Internacional Brasil (CI-Brasil), que atua na área ambiental, os recursos de fontes privadas (fundos e empresas) são considerados caminho sem volta. “Há dez anos, dependíamos quase que exclusivamente das verbas captadas no exterior. Hoje, atuamos com muitos projetos relacionados a empresas e fundos privados no Brasil”, afirma André Guimarães, diretor-executivo da CI-Brasil.
Apesar de manter uma delicada relação com companhias questionadas pelos impactos ambientais em seu campo de atuação – como fabricantes de agrotóxicos e transgênicos e indústrias de celulose –, Guimarães considera esse tipo de parceria uma experiência positiva. “Não fazemos projeto que não tenha um foco em resultados, pois não somos uma consultoria interessada apenas em prestar um serviço pontual, mas sim uma ONG que busca mudar a cultura dessas empresas na forma como lidam com as questões ambientais”, afirma. Segundo ele, ao atuar com essas companhias, a CI acaba tendo acesso a regiões nas quais a necessidade de ações ambientais é mais urgente, como em grande parte das lavouras do Brasil e em locais onde crescem as florestas plantadas com monocultoras. “Não teríamos como propor mudanças nessas áreas sem ser por meio dessas parcerias”, diz.
O diálogo é elemento considerado fundamental para assegurar a atuação independente de uma ONG em uma parceria privada. “Às vezes nesse diálogo conseguimos impor e contestar a forma como a empresa atua; em outras, não. E, quando esse encontro de interesses não acontece, o projeto termina.” Segundo o executivo da CI-Brasil, de cada dez projetos iniciados ou negociados entre a ONG e empresas, dois não se concretizam. A ONG possui inclusive um departamento jurídico que auxilia na análise das práticas das empresas com quem estão negociando projetos.
Em alguns casos, entretanto, as parcerias com o setor empresarial influenciam os projetos das ONGs. “Não vamos nunca abandonar nossos projetos centrais, mas já aconteceu de termos que adaptar ou criar algum novo projeto para atender à demanda de uma empresa parceira”, admite Sóstenes Brasileiro de Oliveira, diretor-geral da Fundação Gol de Letra, que trabalha com educação e formação de crianças e jovens. “Contudo, a relação melhorou muito. Hoje, as empresas já têm uma cultura voltada para as questões sociais e contam com profissionais sensíveis para lidar com esses temas. Antigamente nosso contato direto era com o marketing, que tinha uma visão de negócio e passava muito pela questão da imagem. Agora já consideramos isso um assunto resolvido. Muita coisa evoluiu dentro das companhias.”
No entanto, a falta de recursos para projetos de longo prazo configura-se como um dos temas mais espinhosos no financiamento privado a organizações não governamentais. “Seja para empresas, seja para fundações, a maioria dos projetos tem duração curta, de até dois anos. E sua continuidade depende de várias renovações, ou até da reformulação e proposição de novos projetos. Um processo burocrático que, além de tempo, requer um corpo administrativo constante para captação e manutenção da prestação de contas. Esse é um dos maiores gargalos do modelo atual de financiamento”, explica Oliveira, da Gol de Letra. O processo afeta principalmente os projetos que precisam manter-se a longo prazo.
O excesso de burocracia é outra queixa comum. “Temos dois projetos sendo analisados pelo Fundo Amazônia e reconhecemos esses recursos como fundamentais, mas o processo de financiamento público de ONGs ainda é muito lento no Brasil, o que atrasa a atuação dessas organizações e enfraquece o setor”, afirma Guimarães, da CI-Brasil. “Nesse caso, além de buscar apoio com os fundos públicos, temos as parcerias com as empresas.”
O uso excessivo das leis de incentivos é outra distorção comum. Por meio desse mecanismo, as empresas podem deduzir do IR devido repasses para projetos culturais e esportivos e doações a fundos sociais, como o do idoso e o da infância e adolescência – ou seja, trata-se de um recurso bancado indiretamente pelos contribuintes. “Hoje quase 70% dos projetos que temos com empresas utilizam leis de incentivo. Além de muita burocracia com a prestação de contas, as normas para usufruir dos incentivos são muito restritivas. Financiam apenas a ponta e não a parte administrativa das ONGs – setor fundamental para que essa captação ocorra”, reclama Oliveira, da Gol de Letra (mais em reportagem à pág. 36).
O tema do financiamento é um ponto crucial para o fortalecimento do Terceiro Setor no País. Hoje, o Brasil é um dos países em que as instituições sem fins lucrativos oferecem menos postos de trabalho – de acordo com estudo produzido pelo Centro de Estudos da Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e os Voluntários das Nações Unidas [2].
[2] O estudo Nonprofit Organizations in Brazil: A Pilot Account with International Comparisons pode ser baixado neste link.
O trabalho, publicado em novembro de 2010, buscou mensurar a força do setor sem fins lucrativos no Brasil em comparação com 43 países. Até 2002, as entidades empregavam 2,4 milhões de pessoas, ou cerca de 3% dos empregos assalariados do País. A pesquisa comparativa revelou que Canadá, Estados Unidos e Moçambique empregam o triplo de pessoas no Terceiro Setor.
Além de estar abaixo da média dos países pesquisados, nesse quesito o Brasil ainda fica atrás do Chile e da Argentina, onde mais de 5% dos postos de trabalho encontram-se nas entidades sem fins lucrativos.
Para os críticos do modelo brasileiro, o fortalecimento do Terceiro Setor ainda depende de uma decisão política. “O cerne do Marco Regulatório é esse fortalecimento e garantia de independência, pois precisamos de recursos para ampliar a atuação da sociedade civil organizada no País”, ressalta Vera Masagão, da Abong.
“No Brasil, ainda existe esse discurso de que as ONGs existem porque o governo é falho. Isso é errado, pois o papel dessas organizações é ampliar a participação da sociedade civil dentro de uma democracia, e não para preencher lacunas onde o governo não atua”, conclui Oliveira, da Fundação Gol de Letra.
Em outros países, a doação é facilitada
A grande maioria dos países onde o Terceiro Setor é robusto assegura incentivos fiscais e facilidades legais para as doações diretas entre o cidadão e essas entidades. Os EUA, que, segundo a pesquisa do Centro de Estudos da Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, têm 12% de seus empregos ligados a instituições sem fins lucrativos, são um dos casos mais emblemáticos.
Um americano pode destinar a projetos sociais, ambientais e culturais até 50% de suas deduções do Imposto de Renda. Caso não consiga abater tudo em um ano, ele pode optar para doar o restante em um prazo de cinco anos.
O imposto sobre heranças é outro grande incentivo à filantropia. No Brasil, o imposto gira em torno de 5%, enquanto nos EUA uma pessoa falecida é tributada em até 50% daquilo que deixa para os herdeiros.
No Reino Unido, o Big Lottery Fund administra o repasse de verbas da loteria para apoiar projetos da sociedade civil relacionados a saúde, educação, meio ambiente e filantropia. O fundo já destinou mais de 10 bilhões de libras esterlinas ao Terceiro Setor. A França também possui um programa forte para facilitar esses incentivos.
Leia mais:
“O amadurecimento dos verdes”: Balanço sobre como o movimento ambientalista evoluiu e se fragmentou enquanto ganhou espaço na pauta mundial
[:en]Enquanto empresas respondem por fatias crescentes no funding do Terceiro Setor, seus representantes almejam, no futuro Marco Regulatório, formas de alcançar a autonomia financeira para ganhar robustez e maior liberdade de ação
A história da sociedade civil organizada nasce com as reivindicações coletivas em prol das questões humanitárias, como o voto feminino e a luta contra a escravidão no século XIX. Apesar da legitimidade de suas ações e propostas, muitas dessas entidades enfrentam um sério dilema financeiro para se manter atuantes. Por estar de fora das estruturas que fiscalizam – as empresas privadas e o Estado –, essas organizações acabam sem acesso às fontes tradicionais de financiamento.
No Brasil, a situação é ainda mais crítica, visto que não existe uma cultura de doação individual, que poderia ser uma via importante de captação para as organizações não governamentais (ONGs). Grande parte das 338 mil entidades da sociedade civil organizada (fundações privadas e associações sem fins lucrativos) no País depende de projetos propostos ao governo e às empresas.
A sustentação econômica das ONGs é uma discussão que afeta inclusive a independência dessas instituições. As regras para lidar com o governo são claramente norteadas e fiscalizadas pelos Tribunais de Conta, e várias entidades têm sido denunciadas nas já conhecidas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). Mas, com as empresas, a relação dessas instituições ainda é nebulosa. Como as ONGs podem garantir sua autonomia e trabalhar com liberdade na defesa de temas públicos quando seus recursos são bancados por interesses privados e direcionados por essa agenda?
Esse cenário também revela distorções, com recursos fatiados de forma bastante desigual. “A maioria das ONGs brasileiras (72%) ainda resiste praticamente sem recurso algum, apenas com trabalho voluntário, e as mais organizadas se mantêm com dinheiro público mediante a prestação de serviços ao governo. Mas os recursos de empresas (públicas e privadas) são hoje um importante complemento para a sustentabilidade financeira das ONGs”, afirma Vera Masagão Ribeiro, coordenadora-geral da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong).
A parceria entre ONGs e empresas é um fenômeno que ganhou força nas duas últimas décadas. Entre as 243 entidades que integram a Abong, os números são bem expressivos. Em uma pesquisa de perfil da entidade, publicada em 1996, apenas 3% das associadas acessavam recursos de empresas, institutos e fundações. Em 2000, essa proporção passou para 32,65%, e, em 2007, subiu para 41,5%.
A redução nos recursos provenientes da cooperação internacional direcionados ao Brasil pode ser uma das causas do crescimento das fontes privadas de captação. Segundo Vera, houve dois movimentos distintos: primeiramente a desvalorização do dólar, no início da década de 1990, o que reduziu o valor total desses recursos, mesmo quando eles se mantinham constantes. Em seguida, a crise econômica de 2008, quando houve, de fato, uma redução das fontes internacionais que destinavam verbas às organizações sociais.
O crescimento econômico do Brasil e os programas de combate à pobreza, empreendidos pelo governo federal nos últimos 10 anos, também são apontados como razões da diminuição nos aportes externos às ONGs brasileiras. Com a melhoria nos indicadores sociais do Brasil, porção considerável dos recursos do exterior foi redirecionada para nações mais pobres, como alguns países africanos.
REIVINDICAÇÃO ANTIGA
Um Marco Regulatório para o Terceiro Setor pode ser uma das soluções para o problema de funding dessas entidades. A reivindicação existe há mais de 20 anos e propõe um esforço para integrar ONGs e governo na criação de mecanismos legais que proporcionem sus- tentação autônoma para as entidades da sociedade civil.
Um grupo de trabalho formado em 2011 pela Secretaria-Geral da Presidência e representantes de organizações do Terceiro Setor discutiu o assunto em 22 de março, em Brasília. O ponto central da pauta foram as alternativas para financiamento das ONGs. “Estamos voltados para resolver três questões: as relações contratuais entre Estado e ONGs, que regulam o repasse de dinheiro público para as entidades; o financiamento e a sustentabilidade do Terceiro Setor; e a certificação”, descreve Diogo Sant’Ana, secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, responsável por acompanhar esse trabalho.
A esperança dos integrantes da Plataforma por um Novo Marco Regulatório [1] é que a presidente Dilma Rousseff cumpra sua promessa de campanha, feita em 2010, de instituir a medida. Essa revisão das leis e normas que regulam as ONGs ajudaria a resolver impasses, como a ausência de mecanismos mais democráticos para pessoas jurídicas e físicas realizarem doações para ONGs com incentivos fiscais e o problema da falta de leis para o repasse de verbas. No Brasil, quando uma ONG recebe recurso do governo federal, a legislação aplicada é a de repasse de fundos aos municípios. “Uma das alternativas que já vamos colocar em curso no próximo ano é a possibilidade da doação de parte das restituições do Imposto de Renda (IR) a entidades civis” revela Sant’Ana.
[1] Articulação da sociedade civil, formada por ONGs e fundações, destina-se a negociar com governo e parlamentares a aprovação do Marco Regulatório
Outro ponto de atenção para os próximos meses é saber se o governo vai apresentar, ele mesmo, um projeto de lei que englobe todos os principais temas da discussão sobre o novo marco legal do Terceiro Setor. Hoje, o papel da Secretária-Geral da Presidência é monitorar os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, e apresentar algumas propostas, como a legislação que regula os repasses públicos para as ONGs e a criação do Simples Social – um sistema tributário destinado a desburocratizar as exigências legais do setor.
Enquanto as discussões sobre o Marco Regulatório permanecem em Brasília, muitas ONGs buscam bancar suas ações por meio das parcerias com as empresas. No caso da Conservação Internacional Brasil (CI-Brasil), que atua na área ambiental, os recursos de fontes privadas (fundos e empresas) são considerados caminho sem volta. “Há dez anos, dependíamos quase que exclusivamente das verbas captadas no exterior. Hoje, atuamos com muitos projetos relacionados a empresas e fundos privados no Brasil”, afirma André Guimarães, diretor-executivo da CI-Brasil.
Apesar de manter uma delicada relação com companhias questionadas pelos impactos ambientais em seu campo de atuação – como fabricantes de agrotóxicos e transgênicos e indústrias de celulose –, Guimarães considera esse tipo de parceria uma experiência positiva. “Não fazemos projeto que não tenha um foco em resultados, pois não somos uma consultoria interessada apenas em prestar um serviço pontual, mas sim uma ONG que busca mudar a cultura dessas empresas na forma como lidam com as questões ambientais”, afirma. Segundo ele, ao atuar com essas companhias, a CI acaba tendo acesso a regiões nas quais a necessidade de ações ambientais é mais urgente, como em grande parte das lavouras do Brasil e em locais onde crescem as florestas plantadas com monocultoras. “Não teríamos como propor mudanças nessas áreas sem ser por meio dessas parcerias”, diz.
O diálogo é elemento considerado fundamental para assegurar a atuação independente de uma ONG em uma parceria privada. “Às vezes nesse diálogo conseguimos impor e contestar a forma como a empresa atua; em outras, não. E, quando esse encontro de interesses não acontece, o projeto termina.” Segundo o executivo da CI-Brasil, de cada dez projetos iniciados ou negociados entre a ONG e empresas, dois não se concretizam. A ONG possui inclusive um departamento jurídico que auxilia na análise das práticas das empresas com quem estão negociando projetos.
Em alguns casos, entretanto, as parcerias com o setor empresarial influenciam os projetos das ONGs. “Não vamos nunca abandonar nossos projetos centrais, mas já aconteceu de termos que adaptar ou criar algum novo projeto para atender à demanda de uma empresa parceira”, admite Sóstenes Brasileiro de Oliveira, diretor-geral da Fundação Gol de Letra, que trabalha com educação e formação de crianças e jovens. “Contudo, a relação melhorou muito. Hoje, as empresas já têm uma cultura voltada para as questões sociais e contam com profissionais sensíveis para lidar com esses temas. Antigamente nosso contato direto era com o marketing, que tinha uma visão de negócio e passava muito pela questão da imagem. Agora já consideramos isso um assunto resolvido. Muita coisa evoluiu dentro das companhias.”
No entanto, a falta de recursos para projetos de longo prazo configura-se como um dos temas mais espinhosos no financiamento privado a organizações não governamentais. “Seja para empresas, seja para fundações, a maioria dos projetos tem duração curta, de até dois anos. E sua continuidade depende de várias renovações, ou até da reformulação e proposição de novos projetos. Um processo burocrático que, além de tempo, requer um corpo administrativo constante para captação e manutenção da prestação de contas. Esse é um dos maiores gargalos do modelo atual de financiamento”, explica Oliveira, da Gol de Letra. O processo afeta principalmente os projetos que precisam manter-se a longo prazo.
O excesso de burocracia é outra queixa comum. “Temos dois projetos sendo analisados pelo Fundo Amazônia e reconhecemos esses recursos como fundamentais, mas o processo de financiamento público de ONGs ainda é muito lento no Brasil, o que atrasa a atuação dessas organizações e enfraquece o setor”, afirma Guimarães, da CI-Brasil. “Nesse caso, além de buscar apoio com os fundos públicos, temos as parcerias com as empresas.”
O uso excessivo das leis de incentivos é outra distorção comum. Por meio desse mecanismo, as empresas podem deduzir do IR devido repasses para projetos culturais e esportivos e doações a fundos sociais, como o do idoso e o da infância e adolescência – ou seja, trata-se de um recurso bancado indiretamente pelos contribuintes. “Hoje quase 70% dos projetos que temos com empresas utilizam leis de incentivo. Além de muita burocracia com a prestação de contas, as normas para usufruir dos incentivos são muito restritivas. Financiam apenas a ponta e não a parte administrativa das ONGs – setor fundamental para que essa captação ocorra”, reclama Oliveira, da Gol de Letra (mais em reportagem à pág. 36).
O tema do financiamento é um ponto crucial para o fortalecimento do Terceiro Setor no País. Hoje, o Brasil é um dos países em que as instituições sem fins lucrativos oferecem menos postos de trabalho – de acordo com estudo produzido pelo Centro de Estudos da Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e os Voluntários das Nações Unidas [2].
[2] O estudo Nonprofit Organizations in Brazil: A Pilot Account with International Comparisons pode ser baixado neste link.
O trabalho, publicado em novembro de 2010, buscou mensurar a força do setor sem fins lucrativos no Brasil em comparação com 43 países. Até 2002, as entidades empregavam 2,4 milhões de pessoas, ou cerca de 3% dos empregos assalariados do País. A pesquisa comparativa revelou que Canadá, Estados Unidos e Moçambique empregam o triplo de pessoas no Terceiro Setor.
Além de estar abaixo da média dos países pesquisados, nesse quesito o Brasil ainda fica atrás do Chile e da Argentina, onde mais de 5% dos postos de trabalho encontram-se nas entidades sem fins lucrativos.
Para os críticos do modelo brasileiro, o fortalecimento do Terceiro Setor ainda depende de uma decisão política. “O cerne do Marco Regulatório é esse fortalecimento e garantia de independência, pois precisamos de recursos para ampliar a atuação da sociedade civil organizada no País”, ressalta Vera Masagão, da Abong.
“No Brasil, ainda existe esse discurso de que as ONGs existem porque o governo é falho. Isso é errado, pois o papel dessas organizações é ampliar a participação da sociedade civil dentro de uma democracia, e não para preencher lacunas onde o governo não atua”, conclui Oliveira, da Fundação Gol de Letra.
Em outros países, a doação é facilitada
A grande maioria dos países onde o Terceiro Setor é robusto assegura incentivos fiscais e facilidades legais para as doações diretas entre o cidadão e essas entidades. Os EUA, que, segundo a pesquisa do Centro de Estudos da Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, têm 12% de seus empregos ligados a instituições sem fins lucrativos, são um dos casos mais emblemáticos.
Um americano pode destinar a projetos sociais, ambientais e culturais até 50% de suas deduções do Imposto de Renda. Caso não consiga abater tudo em um ano, ele pode optar para doar o restante em um prazo de cinco anos.
O imposto sobre heranças é outro grande incentivo à filantropia. No Brasil, o imposto gira em torno de 5%, enquanto nos EUA uma pessoa falecida é tributada em até 50% daquilo que deixa para os herdeiros.
No Reino Unido, o Big Lottery Fund administra o repasse de verbas da loteria para apoiar projetos da sociedade civil relacionados a saúde, educação, meio ambiente e filantropia. O fundo já destinou mais de 10 bilhões de libras esterlinas ao Terceiro Setor. A França também possui um programa forte para facilitar esses incentivos.
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