Por Amália Safatle
De passos leves e mãos livres, como quem se desvencilhou das amarras que a vida acaba impondo, Tamas Makray desembarca do táxi para uma conversa no quintal. A bagagem está toda na memória. O voo barulhento dos helicópteros nas imediações da Avenida Paulista, em São Paulo, em dia de mais uma manifestação de rua, pouco afeta o tom de voz deste senhor húngaro de 82 anos, que pede para ser chamado de você (nota do editor: a PÁGINA22 adota como padrão o tom formal na Entrevista). Um admirador dos jovens e da inovação que deles brota, Makray não se prende nem mesmo às questões que lhe são propostas. Este guerreiro sem armas, na melhor definição de samurai (aquele que serve, em japonês), maneja respostas simples, e é aí que reside sua sofisticação.
O engenheiro que fundou a Promon em um formato inovador de gestão não dá bola a quem incensa sua experiência. O que vale mesmo é a intuição, acredita. E uma espécie de sintonia fina. “Vinha muito consultor de strategic management… nada disso funciona. O Universo toma conta da gente. Então é preciso se comportar para merecer o cuidado do Universo.”
Só que o Universo está também no micro, na parte que representa o todo. Ao lado da mulher e filhos, Makray formou uma pequena fazenda no interior de São Paulo. “Estou querendo fazer de lá uma amostra de como se deve tratar a terra”, conta. Ou será a Terra? E simplesmente assistir às transformações deste antigo planeta, sem necessariamente se prender a análises e julgamentos. “É bom ficar velho, vocês vão ver.” E então sai pelo portão quando a noite cai.
No modelo que o senhor instituiu na Promon, funcionários podiam se tornar acionistas. Com isso, a ideia era aumentar o comprometimento e o envolvimento com a empresa, buscando um sentido maior para o trabalho e para a vida pessoal. Hoje em dia, e especialmente, a chamada geração Y é identificada pela busca de um trabalho que faça sentido, não apenas para ganhar dinheiro e subir na carreira. A sua visão na Promon de décadas atrás teria antecipado características dessa geração mais recente?
A minha revolta contra o sistema começou quando eu era estudante – estudei no Canadá e tinha um summer job, já era casado e tinha de trabalhar. Chegou um refugiado húngaro (eu também sou húngaro), um senhor de idade – para mim um senhor de 50 anos era de idade (risos). Ele conseguiu trabalhar lá, arranjou um emprego em uma empresa canadense de material ferroviário, tinha família, mas, em uma certa sexta-feira, ele veio falar comigo e meus colegas, dizendo: “Fui demitido e me disseram que não preciso voltar na segunda-feira”. Sem nenhum pagamento, sem nenhuma indenização. Isso me chocou muito, porque ele ainda disse: “Eu não vou para casa, vou pular da ponte, me jogar no rio. Meu colega ficou convencendo-o a não se matar. Conseguimos levá-lo para minha casa, fizemos um café para ele. Ele não se matou, mas isso me marcou, eu pensei: “Isso não pode continuar!”.
Quando vim ao Brasil, consegui trabalhar com gente decente. Em 1954, comecei na Petrobras – que naquele tempo era decente e estava começando a construir uma fábrica de fertilizantes em Cubatão. Depois veio a Montreal, que fazia projetos, mas eram projetos importados, desenhados, por exemplo, para a neve. Ficou evidente que era preciso fazer projetos adaptados ao Brasil. Assim que terminamos a obra, tentamos montar um escritório de projetos. Isso foi o início da Promon, que teve como motivação inicial, veja só, aquela tentativa de suicídio do húngaro. E depois da obra, eu achei que tinha de fazer projetos, o que requer um investimento baixo, pois só precisa de gente e pranchetas. Naquela época nem computador tinha, então nada era caro.
A Promon tinha o capital dividido fifty-fifty (meio a meio). Uma metade pertencia à Montreal e outra metade à Procon americana. Aí veio 1963, crise política e econômica, a Petrobras não pagava os projetos, os americanos não quiseram saber do assunto, a Montreal não pagou nada, ficamos sem salário. Aí, falei: “Vamos dar uma mudança aqui. Vamos fazer uma empresa nossa. Se a Promon quebrar, vamos continuar fazendo nosso trabalho sozinhos”. Como tinha o perigo de o Brasil se transformar em uma Cuba, os americanos decidiram sair. Bom, nós procuramos comprar a parte dos americanos. Eles disseram: “We don’t deal with employees” (Nós não tratamos com empregados). Então conseguimos convencer a Montreal a comprar a parte dos americanos. Acabaram vendendo, compramos a prazo e a empresa ficou sendo nossa. Até hoje o modelo funciona assim. Eu não era necessário, e eles continuaram.
Esse modelo foi a causa do sucesso da Promon?
Sim. Porque nesse modelo cada um trabalha para si e é fiscal de seu colega. Tem um sentido de comunidade, nós chamamos isso de comunidade de trabalho. Nós pesquisamos e vimos que mesmo noexterior tem pouquíssimas firmas que trabalham assim, e a maioria são firmas pequenas. Nos dez primeiros anos da revista (Você S/A – Exame, que publica o ranking) “Melhores Empresas para Você Trabalhar”, a Promon sempre esteve entre as dez primeiras (colocadas), tanto que recentemente houve uma festa, e a Promon foi reconhecida como hors-concours. No fim, a receita é muito simples, todo mundo tem de participar do que é trabalho. É um investimento que se provou muito bom: teve gente que, quando vendeu (sua participação), conseguiu comprar uma casa. Então não acho que foi nada visionário, e sim algo que era evidente. Estranho que mais gente não tenha adotado isso.
Sim. Por que será que esse modelo não foi mais frequentemente replicado?
Porque as pessoas querem ser donas. Donas do outro. Donas do empregado.
Por conta do envelhecimento da população, nunca antes tivemos um intervalo tão grande entre gerações convivendo em uma mesma época. Na sua opinião, isso traz mais conflitos de geração ou possibilidades de troca, de aprendizado?
Não entendo o conflito de geração. Eu nunca tive isso em casa…
Mas como ter um diálogo justamente em uma sociedade ocidental que valoriza o novo, o jovem, e renega o envelhecimento?
Posso falar uma coisa? Eu também não dou muito valor aos velhos (risos).
É mesmo? Por quê?
Porque a experiência é do passado. E acho que sempre procuramos olhar o futuro. O que o futuro vai nos trazer? O que devemos preparar hoje para esse futuro? Muita gente fala: “Eu já sei porque eu já fiz”. Ora, o que eu fiz dez anos atrás não vai ter sucesso hoje.
Será que não?
Acho que não, porque o mundo está mudando. Eu sempre fui favorável aos novos.
Mas isso é uma certa forma de diálogo, não é? O fato de quem tem mais experiência ouvir e aprender com os mais novos.
Vamos aumentar a complexidade. Eu sempre perguntei aos jovens e sempre perguntei às mulheres. A Promon foi uma das primeiras firmas com diretoras mulheres. Então, faz um mix. E não sei se muitos concordaram comigo, mas sempre dei muita importância à intuição. Acho a intuição essencial, mesmo nas empresas. Vinha muito consultor de strategic management (gestão estratégica)… nada disso funciona. As coisas acontecem com a gente. O Universo toma conta da gente. Então é preciso se comportar para merecer o cuidado do Universo.
A gente está falando aqui de algo mais intangível e sutil?
Eu até aproximaria do espiritual. A essência está no componente espiritual de tudo que a gente faz. Isso talvez explique o problema entre jovens e velhos, porque depende da visão que você tem. E também não achar que você é importante. Muita gente se acha importante pela experiência que tem, porque se formou nisso, se formou naquilo. É preciso ser humilde.
Os jovens em geral acham que têm razão. Eles têm razão?
Tudo depende de diálogo. Tem de escutar o jovem e o velho. É relativamente simples. Agora, é impressionante: quando eu me aposentei, em 1991, com 60 anos, eu não tinha internet. O que o mundo mudou de 91 para cá! Os jovens de agora terão uma vantagem, porque minha bisneta, por exemplo, mexe com computador.
Na sua visão, o que a internet traz de interessante?
Ela mudou o mundo totalmente. Tínhamos desenhistas, datilógrafos. Graças a Deus me aposentei.
O senhor tem Facebook. Usa muito a rede social?
Não, mas a internet, sim.
Como o senhor compara os mundos da infância de seus netos e bisnetos com a sua infância?
A mudança é muito grande. Eu, na idade da minha bisneta, de 5 anos, era um tonto. As pessoas são muito diferentes nesta geração. Comportam-se como adulto, conversam como adulto. Antes as crianças eram muito menos vivas, menos participantes. É bom ficar velho, vocês vão ver.
Por que é bom?
Para ver essas coisas acontecendo. Eu me sinto na poltrona de um teatro, com o mundo se desenvolvendo no palco na minha frente, e eu observando. É fascinante observar.
Qual é a análise dessa observação?
Não estou fazendo análise, só observando mesmo.
Mas o senhor assiste a um mundo melhorando ou piorando?
Algumas coisas estão melhores, outras, piores, mas essas descrições não são importantes. A mudança e a evolução é que são interessantes de acompanhar.
Voltando à sua bisneta, o que vocês conversam? Como é essa relação?
Conversamos muito melhor do que eu conversei com meu avô, que era muito distante. As crianças hoje conhecem o mundo.
Antes a relação era de autoridade, de superioridade dos adultos?
Era. Meu avô sentava-se na cabeceira da mesa e criança não podia falar. Hoje não dá para proibir os bisnetos de falar! O mercado de trabalho, em geral, busca a faixa entre os 20 e poucos anos até os 40, enquanto os extremos são excluídos: os mais novos porque não têm tanta experiência e os mais velhos porque querem e merecem salários mais altos.
Que tipo de prejuízo essa “concentração etária” traz para a diversidade de pensamento, de visão de mundo?
Nós nunca demitimos alguém porque ficou velho. E também fizemos da Fundação (Promon de Previdência Social) um jeito de facilitar a aposentadoria para que aqueles podem viver sem o salário. Sempre trabalhamos muito com estagiários. É importante essa aproximação com os mais novos, até para saber o que eles pensam da vida, da empresa, do futuro. E eles inventam muita coisa interessante. A inovação, geralmente, vem de jovens.
O senhor vivenciou nas últimas décadas uma grande mudança, com a velha economia sendo questionada por um novo paradigma, o da nova economia. Nunca tivemos tanta informação e conhecimento, mas o mundo ainda opera em um modelo e ritmo que o leva ao colapso. O senhor acha que estamos no caminho certo, ou a sustentabilidade acabou sendo empacotada pelo antigo modelo?
Não estamos no caminho certo de jeito nenhum. Os governos não estão vendo isso, as empresas não estão vendo, a população não está enxergando. Quando a Promon começou, a pegada ecológica era de 49%. Havia uma folga de metade do planeta. Hoje já estamos gastando metade a mais (leia mais em “Nascemos cowboys, viramos astronautas”).
Diante dessa constatação, o que é mais desafiador? Saber comunicar, passar a mensagem, convencer os governos, as empresas, a população?
A Marina (Silva) está tentando, com dificuldade.
A política é, então, uma saída?
O governo deveria ser o primeiro a saber e a tomar providências. Mas tudo precisa ser envolvido, inclusive a religião. Não dá para chegar em 7 bilhões de pessoas no mundo e as religiões dizerem que é preciso ter muitos filhos. Não é uma visão muito moderna… Agora, quando as coisas pioram, os outros vão se convencer. Um exemplo simples. Nosso orgulho era ser o maior exportador de carne.
Tá errado, não se deve comer carne, (a produção de carne) usa dez vezes mais terra do que se plantando vegetais. Então, não comer carne gera uma boa economia para o planeta. E os ruralistas estão completamente furados.
O que o senhor entende como espiritual? Suponho que não seja religião.
Entendo como visão de mundo, como uma consciência universal. Vai além do material. O grande problema nosso é o materialismo arraigado. E justamente o ridículo é pensar: “Eu sei que esta mesa existe”. Esta mesa não existe. Os átomos estão vazios por dentro. Agora, a consciência, que dizem que não existe, é que existe. A alma existe.
A seu ver, o materialismo é que está na raiz desse colapso ambiental?
Em vez de se fazer, exemplo, indústria bélica, é preciso fazer um uso bem melhor dos recursos. Ter uma vida mais equilibrada, igualitária, sem usar tantos recursos. Quatro e meio por cento da população do mundo (referente à população americana) está gastando 25% da energia.
Esse materialismo mudou muito da década de 1930 para cá, o senhor deve ter acompanhado.
Piorou terrivelmente.
Isso é uma coisa que a sua geração, por ter visto essa mudança no mundo, poderia passar para as gerações mais novas? Resgatar alguns valores que foram perdidos com o aumento da industrialização e o incentivo ao consumismo?
Existem muito poucas iniciativas querendo mudar isso. A grande culpa é da propaganda.
Mas a propaganda não se faz sozinha, ela é encomendada pelos fabricantes, tem alguém por trás dela.
Um tem medo do que o outro vai lhe tirar e, com isso, vão se armando.
Como isso virou o que é hoje? As coisas antigamente eram feitas para durar, talvez em função das guerras, para maximizar o uso de recursos. E no pós-guerra, houve uma grande mudança, com os produtos desenhados para quebrar, seguindo a lógica da obsolescência programada.
Sim, foi justamente depois da Segunda Guerra que houve a grande mudança e que a velocidade dessa mudança veio aumentando. É muito interessante acompanhar essa transformação. Não me perguntem onde isso vai dar. Mas é bom não pensar de maneira materialista. É esperar que haverá algo além, depois dessa passagem material. Por exemplo, a reencarnação. A reencarnação é uma solução que algumas religiões e povos deram para levar as pessoas a um caminho de melhora, de busca de purificação.
Isso muda, ou deveria mudar, a relação das pessoas com o planeta? Pois, imaginando que vão voltar, não vão estragar tanto, é esse o raciocínio?
A Igreja Católica aceitava a reencarnação até o sínodo dos anos 500 d.C. O bispo de Alexandria estava defendendo a reencarnação, e Roma não estava querendo aceitar. E então inventaram o purgatório – o que para mim foi uma solução péssima (risos), porque de certa forma é uma purificação, mas, em vez de viver mais uma vez, você fica sentado esperando alguma coisa.
A sua crença qual é?
Eu admito a reencarnação. Não tenho provas, mas já li muita coisa sobre isso.
E sua religião?
Católica. Na Hungria, dois terços da população era católica.
Qual tem sido sua atividade hoje? Está no Instituto Oikos?
Sim, e estou mexendo em uma fazendinha em Lorena (SP), a cerca de 200 quilômetros daqui. Meu sogro morava lá, só tinha 3 hectares. Meu sogro e meu pai eram sócios. Minha mulher e eu herdamos esse imóvel, meu cunhado também – mas ele foi fazer outras coisas – e aumentamos (a área). Estou querendo fazer de lá uma amostra de como se deve tratar a terra. Então plantei um monte de árvores. Nunca achei que as árvores que estou plantando vou vê-las um dia a ponto de não conseguir abraçá-las, mas há uma satisfação muito grande. Tem também vacas, tratadas com homeopatia, tudo é orgânico. E dá muito trabalho.
Então o senhor está aposentado, mas só da Promon! (risos)
Sim, há 25 anos… E passei 10 anos estudando consciência (na Willis Harman House) e fui da diretoria de várias organizações internacionais, como Natural Step, World Business Academy, Institute of Noetic Sciences – vem do grego nous, que significa other ways of knowing (outras formas de conhecimento), intuição, revelação. Mas nos últimos 15 anos, estou só “no meio ambiente”.
E o que é feito da produção dessa fazenda?
É uma fazendinha que não tem intenção de ser lucrativa. A maior parte é para consumo próprio, mas vou fazer queijos, vai aparecer aí um queijo Oikos. Mas é muito pouco, somente para amostra. A vaca escuta música, se sente melhor.
Isso pode eventualmente se transformar em um espaço de formação, de educação?
Eu não pensei nisso. Como estou em uma faixa de idade para não possuir mais nada, eu quero morrer sem ter de fazer inventário. Meu pai morreu assim, não possuía mais bens, não tinha inventário.
Perguntei no sentido de não ser somente uma atividade interna, em família, mas poder inspirar outras pessoas.
Isso pode ser, mas aí já é tarefa dos meus filhos. Um dos meus problemas é que não sei falar línguas.
Como assim?
Não falo português bem, falo com sotaque, com imperfeições. Gostaria de escrever em linguagem literária, mas estou bem longe disso. O húngaro eu já esqueci também. Meu problema é que fui a escolas em cinco línguas diferentes, e aí foi uma confusão.
Mas o senhor fala bem o português. Também, são quantos anos aqui?
Sessenta. Sou mais brasileiro que vocês!
Além de poder observar a mudança do mundo, o que tem de bom em envelhecer?
É uma experiência valiosa. Já que estamos envelhecendo, não há o que fazer. Então, a melhor coisa é envelhecer feliz e satisfeito, em vez de ficar se queixando. E aí, estando satisfeito, ficamos com mais saúde. Porque gente preocupada fica doente.