Os efeitos dos programas que combatem a disparidade de renda começam a se esgotar sem que haja ações sociais consistentes de acumulação de capital humano
Na imaginação de quem viveu boa parte do tempo nos anos 1900, o século XXI, hipoteticamente, transcorreria em um ambiente high-tech, no qual as necessidades mais básicas da humanidade já estariam supridas. Inteligente que é, o homem equacionaria o problema da fome e da habitação. Todos teriam acesso à boa educação. Doenças e criminalidade existiriam apenas em livros de História. A desigualdade econômica e social, enfim, seria uma marca do século XX.
Quem poderia supor, lá atrás, que em 2013 um levantamento feito pelo banco Credit Suisse retrataria a distribuição das riquezas do mundo ainda mais desigual do que então [1]. Hoje, 0,7% da população global adulta detém coletivamente 41% de toda a riqueza existente, enquanto 68,7% dos seres humanos adultos partilham apenas 3% dela. Se os US$ 241 trilhões, equivalentes à soma do PIB de todos os países, fossem distribuídos igualitariamente, transformando a pirâmide da distribuição da renda em uma linha horizontal, cada adulto embolsaria cerca de US$ 50 mil. Nada mau pra começar.
[1] Intitulado Global Wealth Report 2013, pode ser acessado aqui
Os índices de desigualdade no mundo talvez não fossem tão díspares caso as condições encontradas pelas pessoas ao nascer, tanto financeiras como sociais – educação, saúde e habitação –, fossem mais equânimes. Algumas pessoas se tornariam mais ricas por terem talento e aptidão acima da média ou por serem oportunistas. Outros afundariam em profunda miséria por razões diversas. Na média, porém, a desigualdade seria menos aguda.
O economista e cientista social Eduardo Giannetti conta uma fábula que embute um significado pernicioso de constituição da desigualdade. “Dois meninos caminham pela calçada quando um deles encontra duas maçãs, uma grande e outra menor. Ele as apanha, oferece a maçã pequena para o colega e fica com a maior. O colega reclama: — Você está sendo egoísta e ganancioso. O que achou as maçãs, então, pergunta: — Mas se você estivesse no meu lugar, o que teria feito? E o outro, mais generoso, responde: — É lógico que eu teria ficado com a maçã pequena e dado a grande para você. O primeiro, então, arremata: — Mas então por que você está se queixando? Foi exatamente isso que eu fiz.”
“O que importa em relação à desigualdade não é tanto o resultado, mas se o caminho que a gerou é legítimo ou completamente injusto”, afirma Giannetti, autor de O Valor do Amanhã. Ensaio Sobre a Natureza dos Juros (Companhia das Letras, 2005). Assim, o menino que ficou com a maçã pequena tem razão de reclamar. Afinal, uma coisa é a distribuição ser imposta por alguém que tem o controle da distribuição dos recursos; outra, é essa mesma distribuição resultar de um caminho voluntário, em que alguma situação foi criada por ação livre.
Em outras palavras, para o economista não há nenhum problema na desigualdade, desde que haja paridade de dotação inicial. “Não se trata de todo mundo ser igual. Muitos não estarão dispostos a sacrificar, por exemplo, relações pessoais, arte, ciência ou busca de conhecimento por atividades que resultem em mais recursos financeiros. O que não pode é uma situação inicial de derrota antes mesmo de começar e com uma margem de escolha extremamente restrita.”
A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em outubro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra certa estabilidade no nível de desigualdade brasileira, entre 2011 e 2012, depois de quedas sucessivas ao longo da última década. Mas isso não significa que o nível de pobreza tenha ficado no mesmo patamar.
No ano passado, os mais ricos registraram um significativo aumento em seus rendimentos, bem como, na outra ponta, os mais pobres entre os pobres. Daí o índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda, com zero (0) representando a perfeita igualdade e um (1) a máxima desigualdade, não ter variado tanto [2]. De acordo com o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Neri, a pobreza extrema foi reduzida em 28% nesse período, resultado que atribui a um dos principais programas de transferência de renda do governo, o Bolsa Família.
[2] O índice caiu de 0,501 em 2011 para 0,498 em 2012 – em 2002 estava em 0,545
A mesma Pnad aponta, no entanto, que 42% dos domicílios brasileiros ainda não possuem saneamento básico (água, esgoto e coleta de lixo). Sinal de que as campanhas redistributivas são efetivas na redução de desigualdade, mas apenas sob o aspecto da renda. Ou seja, “não vêm sendo acompanhadas de ações que estimulem de maneira significativa a acumulação de capital humano nas novas gerações”, conforme assinala o professor da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), André Portela Souza, no estudo Políticas de Distribuição de Renda na Brasil e o Bolsa Família.
Segundo ele, a pobreza é um fenômeno multidimensional que vai além da simples carência de renda monetária. Em uma perspectiva mais abrangente, pobreza pode ser definida como privação de capacidades, o que envolve uma série de restrições: não ter renda monetária suficiente para obter bens e serviços desejados, não ter capacidade física para desenvolver certas atividades, não ter acesso à educação e saúde, não ter livre acesso à troca de bens e serviços, não ter direitos civis e políticos respeitados etc.
Segundo o professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann, as conquistas brasileiras no campo da desigualdade nos últimos anos foram inegáveis. Até porque o mundo tem estado diante da mais grave crise do capitalismo dos últimos 80 anos, com os países ricos dando sinal de aumento da pobreza e da desigualdade.
Entretanto, Pochmann pondera que as manifestações de junho e julho deixaram bem claro que o Brasil precisa avançar em serviços de educação, saúde e transporte, itens que, inclusive, oneram demasiadamente a renda de todos, principalmente a dos mais pobres. “Uma estrutura de desigualdade consolidada há mais de 500 anos não se resolve apenas e tão somente por medidas que visam inclusão pela renda e pelo emprego, por mais que isso possa ajudar. É evidente que precisamos também de ações que estruturem o enfrentamento da desigualdade de forma permanente”, afirma.
QUESTÃO TRIBUTÁRIA
Difícil é canalizar recursos para financiar tantas lacunas. Didático, o economista e escritor Paulo Sandroni, da Escola de Economia da FGV, lembra que, no setor industrial, quando a escala de produção aumenta, há um ganho de produtividade e uma consequente redução dos custos. Mas nos serviços públicos acontece o contrário. Quando há um aumento de escala nos serviços da educação, do saneamento e, sobretudo da saúde, só há aumento de custos. Então, para aumentar a oferta de serviços públicos, o governo precisa arrecadar mais e, uma vez que o sistema tributário do Brasil onera mais o pobre do que o rico, a desigualdade social patina.
Essa foi a conclusão de um debate sobre reforma tributária realizado em agosto pelo jornal Folha de S.Paulo com especialistas no tema. Segundo a publicação, o diretor da consultoria LCA Bernard Appy disse que, como sócio de uma empresa, paga menos imposto do que se fosse empregado. “É preciso resolver a tributação dos ricos”, disse.
Na opinião de Marcio Pochmann, de fato a solução aponta para a direção de uma estrutura de tributação progressiva, semelhante à dos países ricos. Suavizam-se os impostos cobrados dos mais pobres e elevam-nos para os ricos. Assim, o fundo público deixaria de ser composto de tributação dos mais pobres, e a própria estrutura tributária produziria, por si só, um efeito sobre a redução de desigualdade. Soluções tributárias não faltam. O difícil é conseguir reformar o sistema.
“Os ricos no Brasil não querem mais pagar impostos. Veja o debate absurdo que se trava hoje em São Paulo em relação ao reajuste do IPTU”, reclama o economista da Unicamp. Segundo o pesquisador da FGV, José Roberto Afonso, que também participou do debate na Folha, o Brasil consegue cobrar menos IPTU do que países africanos. “Não adianta inventar imposto sobre grandes fortunas, se não conseguimos cobrar nem o imposto patrimonial tradicional.”
Paulo Sandroni defende cobrança de impostos sobre propriedades. Para as cidades, sugere a captura de “mais valias urbanas” e, para o campo, mudanças no Imposto Territorial Rural (ITR). A primeira hipótese tem a ver com especulação imobiliária. Quando a cidade cresce, os terrenos mais bem localizados estão em constante valorização, uma vez que têm a demanda preferencial. “Se deixar o mercado imobiliário funcionar livremente, o proprietário enriquece sem contribuir, um caso clássico de enriquecimento sem justa causa.” Segundo ele, São Paulo e outras cidades brasileiras vêm adotando sistemas variados de captura de “mais valias”.
No segundo caso, a ideia de Sandroni é retirar o caráter não fiscal do ITR. Isto é, o imposto não deve ser usado como instrumento de indução para que a terra seja produtiva. Para ele, apenas a posse da terra, produtiva ou não, justifica o pagamento de impostos. Feito isso, o governo pode então criar incentivos ou desincentivos aos produtores rurais. “Nos últimos 50 anos, as fronteiras agropecuárias expandiram-se em mais de 200 milhões de hectares – e sabe qual foi a repercussão do ITR nas contas públicas? Nenhuma.”
À medida que o Bolsa Família cresce e se consolida, vão se esgotando as populações elegíveis para o programa. Para dar continuidade aos programas sociais, o governo pode promover reajuste dos benefícios dos já incluídos ou atacar um novo componente de desigualdade social.
Por exemplo, a baixa qualidade da educação. Ensino de qualidade eleva a produtividade e promove a qualificação do trabalhador, que consequentemente receberá salários mais altos e melhorará sua qualidade de vida. Há um consenso na sociedade de que investir em educação é fundamental. O problema, de acordo com Pochmann, é que esse consenso se dissolve tão logo começa a discussão sobre o que fazer para melhorar a qualidade da educação. “A questão passa também por construir uma convergência política que vá além do consenso da retórica.”
E quanto mais rápido melhor, pois o Brasil transitou para a República em 1889, mas não tornou sua escola republicana até a Constituição de 1988. “Passamos 100 anos sem universalizar a educação e, quando ocorreu, a partir dos anos 1990, não houve elevação de recursos”, explica o economista da Unicamp.
Diante desse quadro, o resultado da última pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, não chega a ser uma surpresa. Mostra que nos últimos 10 anos a universalização do ensino promoveu uma redução do analfabetismo absoluto [3], mas apenas um em cada quatro brasileiros domina as habilidades de leitura, escrita e matemática. E os demais são considerados analfabetos funcionais.
Para a especialista em psicologia da educação e presidente do conselho da Fundação Tide Setubal, Maria Alice Setubal, que dirige in loco vários projetos sociais em bairros da Zona Leste de São Paulo, frequentar uma escola pública ou privada, ainda que não seja tão boa, é sempre melhor que nada. Para ela, essa geração de filhos que está na universidade dará um salto qualitativo em relação aos seus pais. “Não estou elogiando o ensino ruim, acho que o nosso papel é justamente trabalhar para melhorar essa qualidade”, diz. Como o percentual de brasileiros com Ensino Superior está entre os mais baixos da América Latina, Maria Alice apoia políticas de inclusão à educação, como ProUni, Fies [4] e o Regime de Cotas, pois esses programas fazem um bom contraponto com as políticas de incentivo ao consumo.
[3] O percentual da população alfabetizada passou de 61% em 2001 para 73% em 2011
[4] ProUni é a sigla para Programa Universidade para Todos e Fies, Fundo de Financiamento Estudantil
Eduardo Giannetti também comemora a universalização, mas ressalta que não adianta ter 97% das crianças no Ensino Fundamental quando, na verdade, elas não estão adquirindo o conhecimento que deveriam. Ele defende o uso de um mecanismo que, segundo ele mesmo, o mundo educacional considera corporativo demais.
Sua ideia é que ao final do Ensino Fundamental o jovem passe por um exame que o leve a um diploma. “Acho profundamente injusto e cruel uma pessoa achar que fez um curso quando, na verdade, foi enganada”, sentencia. A informação sobre o desempenho dos alunos funcionaria como um termômetro, indicando por que algumas escolas, que receberam os mesmos recursos que outras, aprovaram uma proporção maior de crianças.
Já André Portela crê que a universalização existente hoje, de certo modo, torna até redundante a condicionalidade [5] de frequência escolar imposta pelo Bolsa Família. Do seu ponto de vista, o problema da educação básica, além da qualidade, é a relativa baixa frequência no Ensino Médio. Para criar incentivos aos estudantes pertencentes a famílias mais vulneráveis, Portela propõe a criação de um adicional no valor da transferência de renda paga ao aluno em função da aprovação por ano de estudo.
[5] Crianças e jovens de 6 a 17 anos de idade devem frequentar regularmente a escola, e crianças até 5 anos de idade devem estar com a vacinação em dia
“Contudo, essa transferência não deve ser paga imediatamente. Cria-se uma conta poupança, cujo saldo se acumulará ao longo dos anos escolares, a que ele somente terá direito quando completar o Ensino Médio.” Segundo Portela, desenho semelhante existe no México, com o Programa Oportunidades, com resultados bastante satisfatórios.
Sobre os rumos do ensino no Brasil, Marcio Pochmann levanta uma questão ainda mais complexa. Na era industrial, apenas crianças e adolescentes estudavam. “Adultos sabiam tudo que era necessário saber.” Esse tempo acabou. Vive-se hoje um tempo em que o Ensino Superior passou a ser o piso da nova sociedade. Quando o aluno é graduado na universidade, mesmo de boa qualidade, já sai de lá com o conhecimento superado. “A sociedade está mais complexa e as pessoas vão ter de estudar a vida toda. Isso implica uma revolução do sistema educacional, sobre a qual nós pouco nos atrevemos a pensar, que faça o País que estamos construindo dialogar com o futuro e não mais com o passado.”
Nesse caso, quem sabe os sonhos sonhados lá no século XX possam se concretizar ainda no século XXI.[:en]Os efeitos dos programas que combatem a disparidade de renda começam a se esgotar sem que haja ações sociais consistentes de acumulação de capital humano
Na imaginação de quem viveu boa parte do tempo nos anos 1900, o século XXI, hipoteticamente, transcorreria em um ambiente high-tech, no qual as necessidades mais básicas da humanidade já estariam supridas. Inteligente que é, o homem equacionaria o problema da fome e da habitação. Todos teriam acesso à boa educação. Doenças e criminalidade existiriam apenas em livros de História. A desigualdade econômica e social, enfim, seria uma marca do século XX.
Quem poderia supor, lá atrás, que em 2013 um levantamento feito pelo banco Credit Suisse retrataria a distribuição das riquezas do mundo ainda mais desigual do que então [1]. Hoje, 0,7% da população global adulta detém coletivamente 41% de toda a riqueza existente, enquanto 68,7% dos seres humanos adultos partilham apenas 3% dela. Se os US$ 241 trilhões, equivalentes à soma do PIB de todos os países, fossem distribuídos igualitariamente, transformando a pirâmide da distribuição da renda em uma linha horizontal, cada adulto embolsaria cerca de US$ 50 mil. Nada mau pra começar.
[1] Intitulado Global Wealth Report 2013, pode ser acessado aqui
Os índices de desigualdade no mundo talvez não fossem tão díspares caso as condições encontradas pelas pessoas ao nascer, tanto financeiras como sociais – educação, saúde e habitação –, fossem mais equânimes. Algumas pessoas se tornariam mais ricas por terem talento e aptidão acima da média ou por serem oportunistas. Outros afundariam em profunda miséria por razões diversas. Na média, porém, a desigualdade seria menos aguda.
O economista e cientista social Eduardo Giannetti conta uma fábula que embute um significado pernicioso de constituição da desigualdade. “Dois meninos caminham pela calçada quando um deles encontra duas maçãs, uma grande e outra menor. Ele as apanha, oferece a maçã pequena para o colega e fica com a maior. O colega reclama: — Você está sendo egoísta e ganancioso. O que achou as maçãs, então, pergunta: — Mas se você estivesse no meu lugar, o que teria feito? E o outro, mais generoso, responde: — É lógico que eu teria ficado com a maçã pequena e dado a grande para você. O primeiro, então, arremata: — Mas então por que você está se queixando? Foi exatamente isso que eu fiz.”
“O que importa em relação à desigualdade não é tanto o resultado, mas se o caminho que a gerou é legítimo ou completamente injusto”, afirma Giannetti, autor de O Valor do Amanhã. Ensaio Sobre a Natureza dos Juros (Companhia das Letras, 2005). Assim, o menino que ficou com a maçã pequena tem razão de reclamar. Afinal, uma coisa é a distribuição ser imposta por alguém que tem o controle da distribuição dos recursos; outra, é essa mesma distribuição resultar de um caminho voluntário, em que alguma situação foi criada por ação livre.
Em outras palavras, para o economista não há nenhum problema na desigualdade, desde que haja paridade de dotação inicial. “Não se trata de todo mundo ser igual. Muitos não estarão dispostos a sacrificar, por exemplo, relações pessoais, arte, ciência ou busca de conhecimento por atividades que resultem em mais recursos financeiros. O que não pode é uma situação inicial de derrota antes mesmo de começar e com uma margem de escolha extremamente restrita.”
A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em outubro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra certa estabilidade no nível de desigualdade brasileira, entre 2011 e 2012, depois de quedas sucessivas ao longo da última década. Mas isso não significa que o nível de pobreza tenha ficado no mesmo patamar.
No ano passado, os mais ricos registraram um significativo aumento em seus rendimentos, bem como, na outra ponta, os mais pobres entre os pobres. Daí o índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda, com zero (0) representando a perfeita igualdade e um (1) a máxima desigualdade, não ter variado tanto [2]. De acordo com o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Neri, a pobreza extrema foi reduzida em 28% nesse período, resultado que atribui a um dos principais programas de transferência de renda do governo, o Bolsa Família.
[2] O índice caiu de 0,501 em 2011 para 0,498 em 2012 – em 2002 estava em 0,545
A mesma Pnad aponta, no entanto, que 42% dos domicílios brasileiros ainda não possuem saneamento básico (água, esgoto e coleta de lixo). Sinal de que as campanhas redistributivas são efetivas na redução de desigualdade, mas apenas sob o aspecto da renda. Ou seja, “não vêm sendo acompanhadas de ações que estimulem de maneira significativa a acumulação de capital humano nas novas gerações”, conforme assinala o professor da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), André Portela Souza, no estudo Políticas de Distribuição de Renda na Brasil e o Bolsa Família.
Segundo ele, a pobreza é um fenômeno multidimensional que vai além da simples carência de renda monetária. Em uma perspectiva mais abrangente, pobreza pode ser definida como privação de capacidades, o que envolve uma série de restrições: não ter renda monetária suficiente para obter bens e serviços desejados, não ter capacidade física para desenvolver certas atividades, não ter acesso à educação e saúde, não ter livre acesso à troca de bens e serviços, não ter direitos civis e políticos respeitados etc.
Segundo o professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente da Fundação Perseu Abramo, Marcio Pochmann, as conquistas brasileiras no campo da desigualdade nos últimos anos foram inegáveis. Até porque o mundo tem estado diante da mais grave crise do capitalismo dos últimos 80 anos, com os países ricos dando sinal de aumento da pobreza e da desigualdade.
Entretanto, Pochmann pondera que as manifestações de junho e julho deixaram bem claro que o Brasil precisa avançar em serviços de educação, saúde e transporte, itens que, inclusive, oneram demasiadamente a renda de todos, principalmente a dos mais pobres. “Uma estrutura de desigualdade consolidada há mais de 500 anos não se resolve apenas e tão somente por medidas que visam inclusão pela renda e pelo emprego, por mais que isso possa ajudar. É evidente que precisamos também de ações que estruturem o enfrentamento da desigualdade de forma permanente”, afirma.
QUESTÃO TRIBUTÁRIA
Difícil é canalizar recursos para financiar tantas lacunas. Didático, o economista e escritor Paulo Sandroni, da Escola de Economia da FGV, lembra que, no setor industrial, quando a escala de produção aumenta, há um ganho de produtividade e uma consequente redução dos custos. Mas nos serviços públicos acontece o contrário. Quando há um aumento de escala nos serviços da educação, do saneamento e, sobretudo da saúde, só há aumento de custos. Então, para aumentar a oferta de serviços públicos, o governo precisa arrecadar mais e, uma vez que o sistema tributário do Brasil onera mais o pobre do que o rico, a desigualdade social patina.
Essa foi a conclusão de um debate sobre reforma tributária realizado em agosto pelo jornal Folha de S.Paulo com especialistas no tema. Segundo a publicação, o diretor da consultoria LCA Bernard Appy disse que, como sócio de uma empresa, paga menos imposto do que se fosse empregado. “É preciso resolver a tributação dos ricos”, disse.
Na opinião de Marcio Pochmann, de fato a solução aponta para a direção de uma estrutura de tributação progressiva, semelhante à dos países ricos. Suavizam-se os impostos cobrados dos mais pobres e elevam-nos para os ricos. Assim, o fundo público deixaria de ser composto de tributação dos mais pobres, e a própria estrutura tributária produziria, por si só, um efeito sobre a redução de desigualdade. Soluções tributárias não faltam. O difícil é conseguir reformar o sistema.
“Os ricos no Brasil não querem mais pagar impostos. Veja o debate absurdo que se trava hoje em São Paulo em relação ao reajuste do IPTU”, reclama o economista da Unicamp. Segundo o pesquisador da FGV, José Roberto Afonso, que também participou do debate na Folha, o Brasil consegue cobrar menos IPTU do que países africanos. “Não adianta inventar imposto sobre grandes fortunas, se não conseguimos cobrar nem o imposto patrimonial tradicional.”
Paulo Sandroni defende cobrança de impostos sobre propriedades. Para as cidades, sugere a captura de “mais valias urbanas” e, para o campo, mudanças no Imposto Territorial Rural (ITR). A primeira hipótese tem a ver com especulação imobiliária. Quando a cidade cresce, os terrenos mais bem localizados estão em constante valorização, uma vez que têm a demanda preferencial. “Se deixar o mercado imobiliário funcionar livremente, o proprietário enriquece sem contribuir, um caso clássico de enriquecimento sem justa causa.” Segundo ele, São Paulo e outras cidades brasileiras vêm adotando sistemas variados de captura de “mais valias”.
No segundo caso, a ideia de Sandroni é retirar o caráter não fiscal do ITR. Isto é, o imposto não deve ser usado como instrumento de indução para que a terra seja produtiva. Para ele, apenas a posse da terra, produtiva ou não, justifica o pagamento de impostos. Feito isso, o governo pode então criar incentivos ou desincentivos aos produtores rurais. “Nos últimos 50 anos, as fronteiras agropecuárias expandiram-se em mais de 200 milhões de hectares – e sabe qual foi a repercussão do ITR nas contas públicas? Nenhuma.”
À medida que o Bolsa Família cresce e se consolida, vão se esgotando as populações elegíveis para o programa. Para dar continuidade aos programas sociais, o governo pode promover reajuste dos benefícios dos já incluídos ou atacar um novo componente de desigualdade social.
Por exemplo, a baixa qualidade da educação. Ensino de qualidade eleva a produtividade e promove a qualificação do trabalhador, que consequentemente receberá salários mais altos e melhorará sua qualidade de vida. Há um consenso na sociedade de que investir em educação é fundamental. O problema, de acordo com Pochmann, é que esse consenso se dissolve tão logo começa a discussão sobre o que fazer para melhorar a qualidade da educação. “A questão passa também por construir uma convergência política que vá além do consenso da retórica.”
E quanto mais rápido melhor, pois o Brasil transitou para a República em 1889, mas não tornou sua escola republicana até a Constituição de 1988. “Passamos 100 anos sem universalizar a educação e, quando ocorreu, a partir dos anos 1990, não houve elevação de recursos”, explica o economista da Unicamp.
Diante desse quadro, o resultado da última pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, não chega a ser uma surpresa. Mostra que nos últimos 10 anos a universalização do ensino promoveu uma redução do analfabetismo absoluto [3], mas apenas um em cada quatro brasileiros domina as habilidades de leitura, escrita e matemática. E os demais são considerados analfabetos funcionais.
Para a especialista em psicologia da educação e presidente do conselho da Fundação Tide Setubal, Maria Alice Setubal, que dirige in loco vários projetos sociais em bairros da Zona Leste de São Paulo, frequentar uma escola pública ou privada, ainda que não seja tão boa, é sempre melhor que nada. Para ela, essa geração de filhos que está na universidade dará um salto qualitativo em relação aos seus pais. “Não estou elogiando o ensino ruim, acho que o nosso papel é justamente trabalhar para melhorar essa qualidade”, diz. Como o percentual de brasileiros com Ensino Superior está entre os mais baixos da América Latina, Maria Alice apoia políticas de inclusão à educação, como ProUni, Fies [4] e o Regime de Cotas, pois esses programas fazem um bom contraponto com as políticas de incentivo ao consumo.
[3] O percentual da população alfabetizada passou de 61% em 2001 para 73% em 2011
[4] ProUni é a sigla para Programa Universidade para Todos e Fies, Fundo de Financiamento Estudantil
Eduardo Giannetti também comemora a universalização, mas ressalta que não adianta ter 97% das crianças no Ensino Fundamental quando, na verdade, elas não estão adquirindo o conhecimento que deveriam. Ele defende o uso de um mecanismo que, segundo ele mesmo, o mundo educacional considera corporativo demais.
Sua ideia é que ao final do Ensino Fundamental o jovem passe por um exame que o leve a um diploma. “Acho profundamente injusto e cruel uma pessoa achar que fez um curso quando, na verdade, foi enganada”, sentencia. A informação sobre o desempenho dos alunos funcionaria como um termômetro, indicando por que algumas escolas, que receberam os mesmos recursos que outras, aprovaram uma proporção maior de crianças.
Já André Portela crê que a universalização existente hoje, de certo modo, torna até redundante a condicionalidade [5] de frequência escolar imposta pelo Bolsa Família. Do seu ponto de vista, o problema da educação básica, além da qualidade, é a relativa baixa frequência no Ensino Médio. Para criar incentivos aos estudantes pertencentes a famílias mais vulneráveis, Portela propõe a criação de um adicional no valor da transferência de renda paga ao aluno em função da aprovação por ano de estudo.
[5] Crianças e jovens de 6 a 17 anos de idade devem frequentar regularmente a escola, e crianças até 5 anos de idade devem estar com a vacinação em dia
“Contudo, essa transferência não deve ser paga imediatamente. Cria-se uma conta poupança, cujo saldo se acumulará ao longo dos anos escolares, a que ele somente terá direito quando completar o Ensino Médio.” Segundo Portela, desenho semelhante existe no México, com o Programa Oportunidades, com resultados bastante satisfatórios.
Sobre os rumos do ensino no Brasil, Marcio Pochmann levanta uma questão ainda mais complexa. Na era industrial, apenas crianças e adolescentes estudavam. “Adultos sabiam tudo que era necessário saber.” Esse tempo acabou. Vive-se hoje um tempo em que o Ensino Superior passou a ser o piso da nova sociedade. Quando o aluno é graduado na universidade, mesmo de boa qualidade, já sai de lá com o conhecimento superado. “A sociedade está mais complexa e as pessoas vão ter de estudar a vida toda. Isso implica uma revolução do sistema educacional, sobre a qual nós pouco nos atrevemos a pensar, que faça o País que estamos construindo dialogar com o futuro e não mais com o passado.”
Nesse caso, quem sabe os sonhos sonhados lá no século XX possam se concretizar ainda no século XXI.