Métodos simples contribuem para o abastecimento em regiões pobres e distantes no Brasil, mas ainda falta banir a proliferação de doenças transmitidas pela águaÀ primeira vista, o grande problema que salta aos olhos nesses tempos de seca e de colapso iminente do abastecimento é o da reserva de água. Tanto para consumo humano quanto para bancar atividades como a agricultura e a indústria. Mas vamos atentar para outros aspectos cruciais: populações urbanas e rurais não sofrem da mesma forma com a falta d’água e, nas regiões muito pobres, como o Semiárido [1], ou distantes, como a Amazônia, recursos hídricos mal manejados e falta de planejamento são responsáveis diretos pela morte de inúmeros brasileiros – a maioria deles ainda crianças, que são as mais suscetíveis a doenças transmitidas pela água.
[1] O Semiárido brasileiro abrange uma área de 969.589,4 quilômetros quadrados e compreende 1.133 municípios de nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Nessa região vivem 22 milhões de pessoas, ou 11,8% da população brasileira, segundo o IBGE.
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Não passamos apenas por um colapso de abastecimento ou de modelo de gestão de reservas naturais e/ou artificiais. Em boa parte do território nacional, ainda não conseguimos lidar com o dilema moral secular que representa a morte de brasileiros por conta da falta de manutenção de um serviço básico, que é o acesso à água potável e ao saneamento.
Essa discussão é anterior ao colapso do abastecimento, à gestão das reservas, e até mesmo à educação que o brasileiro deveria estar recebendo, há muito tempo, para saber usar um recurso com o qual o País foi presenteado tão generosamente.
O conhecimento para garantir acesso a um bem íntegro para todos, independentemente da classe social, existe. Instituições de pesquisa, universidades, cientistas e organizações do Terceiro Setor vêm desenvolvendo e aperfeiçoando tecnologias para facilitar a distribuição de água às populações que ainda sofrem com esse problema em suas mais variadas versões, e para melhorar a qualidade da água para aqueles que ainda dispõem de um recurso de má qualidade.
Tecnologias de baixo orçamento, de implantação simples e que, geralmente, podem ser replicadas em todo ou em quase todo o território nacional. O problema é que nem sempre há um compasso entre a disponibilização de tecnologias e o reconhecimento destas pelo Estado.
Isso sem contar a “tradição” brasileira de fazer grandes obras, que muitas vezes não resolvem o problema dos pequenos produtores e das famílias que moram em locais isolados, enquanto consomem grandes volumes de recursos.
Atualmente, 67% das famílias rurais do Semiárido não possuem acesso à rede geral de abastecimento de água, das quais 43% utilizam poços ou nascentes e 24% empregam outras formas de acesso, como fontes distantes, que exigem longas caminhadas diárias.
O Programa 1 Milhão de Cisternas, iniciado em 2003 pela Articulação do Semiárido (ASA), que agrupa centenas de organizações, é um exemplo de como uma iniciativa com base numa tecnologia secular simples, com apoio do governo, pode ajudar a população a lidar com o problema da água. As cisternas são tradicionalmente uma alternativa bastante utilizada pela população do Semiárido para captar água das chuvas e guardá-la.
Executado pela Associação Programa 1 Milhão de Cisternas (AP1MC), tem sua maior parte financiada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Os últimos números do programa contabilizam 520.646 mil cisternas já construídas e, para 2014, estão previstas mais 53 mil. Para a construção de cisternas no Semiárido, o MDS assinou termo de parceria com a AP1MC e firma convênios anualmente com governos estaduais e municipais.
“Creio que este programa é um marco para o País, cuja tradição é fazer grandes obras, que muitas vezes não chegam a beneficiar quem precisa. É uma outra visão de política pública”, afirma a agrônoma Valquíria Lima, coordenadora da ASA em Minas Gerais. O custo de cada cisterna varia entre R$ 2.894 (em Pernambuco) e R$ 2.720 (no Piauí), incluindo formação, aprendizado e assessoria técnica.
O programa trabalha em duas frentes: possibilitar a captação de água da chuva para consumo próprio e para atividades agrícolas. O primeiro desafio é maior, porque a água para consumo humano requer maior tratamento. Quando cai das nuvens, a água está limpa, pode ser usada depois de um sistema de desinfecção simples, como hipoclorito, fervura e outros. Mas, em seu trajeto até as cisternas, ela passa por telhados e calhas. Assim,as primeiras águas da chuva devem ser desprezadas, não devem entrar nas cisternas.
“Orientamos os proprietários a desencaixar o cano da entrada da cisterna no início da chuva, e deixar as primeiras águas caírem. Depois de um tempo, encaixa-se o cano e a água boa já pode fluir para as cisternas”, explica Valquíria.
TÉCNICA DE DESVIO
Para facilitar a vida do produtor, o Núcleo de Tecnologia de Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) aprimorou uma técnica de desvio de água para as cisternas, e testou o novo sistema com cem famílias da zona rural de Caruaru.
O equipamento, chamado de DesviUFPE, compõem-se de canos de PVC que retêm o total de 1 milímetro de água, e são instalados no meio do caminho entre a calha e a cisterna. À medida que a chuva cai, enche os tubos de PVC. Quando ficam cheios, aí, sim, a água vai para as cisternas, pois as águas mais sujas já ficaram retidas nos tubos. O DesviUFPE custa R$ 200.
“Não estamos reinventando a roda”, diz a professora da UFPE Savia Gavazza, do Núcleo de Tecnologia do campus de Caruaru. “Esse conceito de desvio já existe, há vários modelos na literatura científica, mas feitos de concreto, que dão muito problema de vazamento. As famílias acabam desistindo de usá-los, porque não podem perder um único litro d’água quando atravessam períodos de secas severas”, explica.
A professora defende que, além das cisternas, as famílias deveriam receber o desvio e uma bomba elétrica para puxar a água. Atualmente, recebem uma bomba manual. Uma elétrica de modelo simples também custaria em torno de R$ 200.
A professora Savia ressalta que o programa de construção de cisternas tem grande impacto na região, mas que os problemas vão além da questão das reservas. Para ela, é preciso ainda usar tecnologias de desinfecção combinadas nos períodos de seca muito intensa. “Em 2012, tivemos uma seca muito severa. Algumas famílias acabaram abastecendo suas cisternas com água de caminhões-pipa. Só que eram águas contaminadas [2]. Houve uma epidemia de morte por doenças de veiculação hídrica. Ainda tem gente morrendo. Então, quando não tem chuva, não adianta só a cisterna. É necessária uma combinação de tecnologias sociais de desinfecção para dar conta do problema.”
[2] Segundo denúncia do Fantástico, tanques que armazenavam combustível foram usados pelo Exército, prefeituras e governos para levar água em caminhões-pipa à população já carente e fragilizada da região, causando contaminação.
Aluna e orientanda de Savia, Ramona Conceição Moreira de Azevedo defendeu uma dissertação de mestrado intitulada Uso de tecnologias sociais para adequação da qualidade da água armazenada em cisternas para consumo humano, em que testou várias combinações de tecnologias simples de desinfecção e filtragem para saber o que seria mais recomendável para a região.
A combinação que atingiu melhor desempenho foi a do pote de barro com o filtro de barro e o sistema Sodis (Solar Water Desinfection), de desinfecção por radiação solar, em que a água é colocada em garrafas PET e exposta ao sol durante algumas horas.
PROJETO BARRAGINHAS
Há ainda que conseguir água para a roça e os animais, que mantêm as famílias do campo. Para isso, o Programa 1 Milhão de Cisternas trabalha com outras tecnologias consorciadas às cisternas de água para consumo humano: cisternas de enxurrada, cisterna de calçadão, pequenas barragens, barragens subterrâneas, entre outras.
Mas há ainda um outro projeto que está ajudando a mudar a paisagem e a realidade do campesino, tanto na Caatinga quanto no Cerrado. É o Barraginhas, financiado pela Petrobras e levado a cabo pelo agrônomo Luciano Cordoval de Barros, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
A “matéria-prima” são as enxurradas, e a premissa é simples: o ciclo de chuvas no Semiárido brasileiro dura cerca de três meses – a pluviosidade média é de 400 a 800 milímetros nesse período. Quando cai sobre o solo muito seco, a chuva gera enxurradas que escavam erosões. Nos pontos onde o fenômeno é mais violento, uma equipe treinada abre pequenas barragens, de 15 a 20 metros de diâmetro. A terra retirada vai para as laterais, formando um anel protetor que segura o lago.
Quando chove forte, essas pequenas barragens prestam-se a reter a enxurrada. Em 5 a 10 dias, a água infiltra-se no solo. Dependendo do tipo do solo, isso demora até 15 dias. A água será guardada no subsolo, no lençol freático. A cada ciclo, uma barraginha encherá de quatro a cinco vezes.
O processo contribui para elevar o nível do lençol freático, tanto que, depois de alguns anos, os produtores passam a ter outras possibilidades de geração de renda, como a construção de lagos impermeabilizados para criação de peixes, e para garantir o abastecimento de hortas e pomares.
Presente nos estados de Minas Gerais, Piauí, Ceará e Rio de Janeiro, o projeto também tem frentes em Tocantins e na Paraíba. São mais de 150 mil barraginhas supervisionadas pelos técnicos do projeto, e mais de 300 mil feitas por produtores que tomaram conhecimento da tecnologia e resolveram aplicá-la em seus terrenos.
“O interessante é que o projeto acaba se replicando sozinho. Tem muita gente aderindo. Quando um grande produtor compra uma escavadeira, para fazer em seu terreno, não raro acaba fazendo no do vizinho que não tem condições. É bonito de se ver”, diz Cordoval. Segundo ele, o custo de uma barraginha é de cerca de R$ 150, ou o equivalente a uma hora e meia de aluguel de uma escavadeira.
Ele diz que a alta taxa de evaporação do Nordeste não é empecilho para o projeto, que tem o objetivo, justamente oposto, de guardar a água. “A maior parte da água não evapora: entra no solo e o alimenta. O sistema evita a evaporação”, garante.
*Este ensaio é resultado da parceria firmada entre a PÁGINA 22 e o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.
O SOL QUE NOS PROTEGE
Equipamento desenvolvido pelo Inpa possibilita desinfecção da água por meio da energia solar
O engenheiro florestal alemão Roland Vetter, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), deparou-se com uma situação insólita quando chegou à comunidade de Morada Nova, em Itamarati (AM), a 1.500 km de Manaus. Em 2007 ele foi ao local, onde vivem os índios Deni, para oferecer uma tecnologia de secagem de madeira. Mas ouviu dos índios que o maior problema deles era o acesso à água potável. “Eu nunca imaginaria que, no meio de tanta água, eles tivessem esse problema”, relata Vetter. Ouviu também que, em 2004, 11 índios, dos quais 5 crianças, haviam morrido de desidratação por diarréia e vômito.
Com isso, dedicou-se a criar um equipamento que pudesse purificar água em grandes quantidades e em locais remotos, usando energia solar. A máquina tem uma placa fotovoltaica que fornece energia para uma lâmpada de quartzo, ultravioleta, montada dentro de um tubo metálico. A água do Rio Xeruá, que banha a comunidade, é captada por uma bomba, passa pelo tubo e sai 100% desinfectada. O equipamento tem capacidade para limpar 44 litros por hora e custa, aproximadamente, R$ 7 mil. A lâmpada, de R$ 50, precisa ser trocada a cada 3 anos. O Inpa patenteou a invenção.
Hoje Vetter fornece o equipamento para oito aldeias, sendo a maior delas composta por cerca de 300 pessoas. “Finalmente, começamos a ver uma mudança na preocupação das pessoas com a água. Há três anos, eu tinha 50 equipamentos montados, e ninguém queria nem mesmo testar. Hoje, estamos iniciando uma parceria com um empresário interessado em investir no equipamento, e enviando sete máquinas para o Exército na Amazônia, com finalidade de teste. Eles nos solicitaram, pois têm o mesmo problema dos índios”, conta Vetter.
Leia mais:
O que podemos aprender com a atual crise de abastecimento, em “Nó em pingo d’água“
A difícil relação da população urbana com seus rios, em “Os lados do rio“
Em que pontos a gestão pública pode ter errado, em “A pedagogia da crise“
O que empresas têm a ver com a preservação da água (e seu próprio futuro), em “A fonte secou“
Como usar melhor o recurso natural mais precioso, em “Saídas possíveis“
[:en]Métodos simples contribuem para o abastecimento em regiões pobres e distantes no Brasil, mas ainda falta banir a proliferação de doenças transmitidas pela água
À primeira vista, o grande problema que salta aos olhos nesses tempos de seca e de colapso iminente do abastecimento é o da reserva de água. Tanto para consumo humano quanto para bancar atividades como a agricultura e a indústria. Mas vamos atentar para outros aspectos cruciais: populações urbanas e rurais não sofrem da mesma forma com a falta d’água e, nas regiões muito pobres, como o Semiárido [1], ou distantes, como a Amazônia, recursos hídricos mal manejados e falta de planejamento são responsáveis diretos pela morte de inúmeros brasileiros – a maioria deles ainda crianças, que são as mais suscetíveis a doenças transmitidas pela água.
[1] O Semiárido brasileiro abrange uma área de 969.589,4 quilômetros quadrados e compreende 1.133 municípios de nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Nessa região vivem 22 milhões de pessoas, ou 11,8% da população brasileira, segundo o IBGE.
Não passamos apenas por um colapso de abastecimento ou de modelo de gestão de reservas naturais e/ou artificiais. Em boa parte do território nacional, ainda não conseguimos lidar com o dilema moral secular que representa a morte de brasileiros por conta da falta de manutenção de um serviço básico, que é o acesso à água potável e ao saneamento.
Essa discussão é anterior ao colapso do abastecimento, à gestão das reservas, e até mesmo à educação que o brasileiro deveria estar recebendo, há muito tempo, para saber usar um recurso com o qual o País foi presenteado tão generosamente.
O conhecimento para garantir acesso a um bem íntegro para todos, independentemente da classe social, existe. Instituições de pesquisa, universidades, cientistas e organizações do Terceiro Setor vêm desenvolvendo e aperfeiçoando tecnologias para facilitar a distribuição de água às populações que ainda sofrem com esse problema em suas mais variadas versões, e para melhorar a qualidade da água para aqueles que ainda dispõem de um recurso de má qualidade.
Tecnologias de baixo orçamento, de implantação simples e que, geralmente, podem ser replicadas em todo ou em quase todo o território nacional. O problema é que nem sempre há um compasso entre a disponibilização de tecnologias e o reconhecimento destas pelo Estado.
Isso sem contar a “tradição” brasileira de fazer grandes obras, que muitas vezes não resolvem o problema dos pequenos produtores e das famílias que moram em locais isolados, enquanto consomem grandes volumes de recursos.
Atualmente, 67% das famílias rurais do Semiárido não possuem acesso à rede geral de abastecimento de água, das quais 43% utilizam poços ou nascentes e 24% empregam outras formas de acesso, como fontes distantes, que exigem longas caminhadas diárias.
O Programa 1 Milhão de Cisternas, iniciado em 2003 pela Articulação do Semiárido (ASA), que agrupa centenas de organizações, é um exemplo de como uma iniciativa com base numa tecnologia secular simples, com apoio do governo, pode ajudar a população a lidar com o problema da água. As cisternas são tradicionalmente uma alternativa bastante utilizada pela população do Semiárido para captar água das chuvas e guardá-la.
Executado pela Associação Programa 1 Milhão de Cisternas (AP1MC), tem sua maior parte financiada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Os últimos números do programa contabilizam 520.646 mil cisternas já construídas e, para 2014, estão previstas mais 53 mil. Para a construção de cisternas no Semiárido, o MDS assinou termo de parceria com a AP1MC e firma convênios anualmente com governos estaduais e municipais.
“Creio que este programa é um marco para o País, cuja tradição é fazer grandes obras, que muitas vezes não chegam a beneficiar quem precisa. É uma outra visão de política pública”, afirma a agrônoma Valquíria Lima, coordenadora da ASA em Minas Gerais. O custo de cada cisterna varia entre R$ 2.894 (em Pernambuco) e R$ 2.720 (no Piauí), incluindo formação, aprendizado e assessoria técnica.
O programa trabalha em duas frentes: possibilitar a captação de água da chuva para consumo próprio e para atividades agrícolas. O primeiro desafio é maior, porque a água para consumo humano requer maior tratamento. Quando cai das nuvens, a água está limpa, pode ser usada depois de um sistema de desinfecção simples, como hipoclorito, fervura e outros. Mas, em seu trajeto até as cisternas, ela passa por telhados e calhas. Assim,as primeiras águas da chuva devem ser desprezadas, não devem entrar nas cisternas.
“Orientamos os proprietários a desencaixar o cano da entrada da cisterna no início da chuva, e deixar as primeiras águas caírem. Depois de um tempo, encaixa-se o cano e a água boa já pode fluir para as cisternas”, explica Valquíria.
TÉCNICA DE DESVIO
Para facilitar a vida do produtor, o Núcleo de Tecnologia de Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) aprimorou uma técnica de desvio de água para as cisternas, e testou o novo sistema com cem famílias da zona rural de Caruaru.
O equipamento, chamado de DesviUFPE, compõem-se de canos de PVC que retêm o total de 1 milímetro de água, e são instalados no meio do caminho entre a calha e a cisterna. À medida que a chuva cai, enche os tubos de PVC. Quando ficam cheios, aí, sim, a água vai para as cisternas, pois as águas mais sujas já ficaram retidas nos tubos. O DesviUFPE custa R$ 200.
“Não estamos reinventando a roda”, diz a professora da UFPE Savia Gavazza, do Núcleo de Tecnologia do campus de Caruaru. “Esse conceito de desvio já existe, há vários modelos na literatura científica, mas feitos de concreto, que dão muito problema de vazamento. As famílias acabam desistindo de usá-los, porque não podem perder um único litro d’água quando atravessam períodos de secas severas”, explica.
A professora defende que, além das cisternas, as famílias deveriam receber o desvio e uma bomba elétrica para puxar a água. Atualmente, recebem uma bomba manual. Uma elétrica de modelo simples também custaria em torno de R$ 200.
A professora Savia ressalta que o programa de construção de cisternas tem grande impacto na região, mas que os problemas vão além da questão das reservas. Para ela, é preciso ainda usar tecnologias de desinfecção combinadas nos períodos de seca muito intensa. “Em 2012, tivemos uma seca muito severa. Algumas famílias acabaram abastecendo suas cisternas com água de caminhões-pipa. Só que eram águas contaminadas [2]. Houve uma epidemia de morte por doenças de veiculação hídrica. Ainda tem gente morrendo. Então, quando não tem chuva, não adianta só a cisterna. É necessária uma combinação de tecnologias sociais de desinfecção para dar conta do problema.”
[2] Segundo denúncia do Fantástico, tanques que armazenavam combustível foram usados pelo Exército, prefeituras e governos para levar água em caminhões-pipa à população já carente e fragilizada da região, causando contaminação.
Aluna e orientanda de Savia, Ramona Conceição Moreira de Azevedo defendeu uma dissertação de mestrado intitulada Uso de tecnologias sociais para adequação da qualidade da água armazenada em cisternas para consumo humano, em que testou várias combinações de tecnologias simples de desinfecção e filtragem para saber o que seria mais recomendável para a região.
A combinação que atingiu melhor desempenho foi a do pote de barro com o filtro de barro e o sistema Sodis (Solar Water Desinfection), de desinfecção por radiação solar, em que a água é colocada em garrafas PET e exposta ao sol durante algumas horas.
PROJETO BARRAGINHAS
Há ainda que conseguir água para a roça e os animais, que mantêm as famílias do campo. Para isso, o Programa 1 Milhão de Cisternas trabalha com outras tecnologias consorciadas às cisternas de água para consumo humano: cisternas de enxurrada, cisterna de calçadão, pequenas barragens, barragens subterrâneas, entre outras.
Mas há ainda um outro projeto que está ajudando a mudar a paisagem e a realidade do campesino, tanto na Caatinga quanto no Cerrado. É o Barraginhas, financiado pela Petrobras e levado a cabo pelo agrônomo Luciano Cordoval de Barros, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
A “matéria-prima” são as enxurradas, e a premissa é simples: o ciclo de chuvas no Semiárido brasileiro dura cerca de três meses – a pluviosidade média é de 400 a 800 milímetros nesse período. Quando cai sobre o solo muito seco, a chuva gera enxurradas que escavam erosões. Nos pontos onde o fenômeno é mais violento, uma equipe treinada abre pequenas barragens, de 15 a 20 metros de diâmetro. A terra retirada vai para as laterais, formando um anel protetor que segura o lago.
Quando chove forte, essas pequenas barragens prestam-se a reter a enxurrada. Em 5 a 10 dias, a água infiltra-se no solo. Dependendo do tipo do solo, isso demora até 15 dias. A água será guardada no subsolo, no lençol freático. A cada ciclo, uma barraginha encherá de quatro a cinco vezes.
O processo contribui para elevar o nível do lençol freático, tanto que, depois de alguns anos, os produtores passam a ter outras possibilidades de geração de renda, como a construção de lagos impermeabilizados para criação de peixes, e para garantir o abastecimento de hortas e pomares.
Presente nos estados de Minas Gerais, Piauí, Ceará e Rio de Janeiro, o projeto também tem frentes em Tocantins e na Paraíba. São mais de 150 mil barraginhas supervisionadas pelos técnicos do projeto, e mais de 300 mil feitas por produtores que tomaram conhecimento da tecnologia e resolveram aplicá-la em seus terrenos.
“O interessante é que o projeto acaba se replicando sozinho. Tem muita gente aderindo. Quando um grande produtor compra uma escavadeira, para fazer em seu terreno, não raro acaba fazendo no do vizinho que não tem condições. É bonito de se ver”, diz Cordoval. Segundo ele, o custo de uma barraginha é de cerca de R$ 150, ou o equivalente a uma hora e meia de aluguel de uma escavadeira.
Ele diz que a alta taxa de evaporação do Nordeste não é empecilho para o projeto, que tem o objetivo, justamente oposto, de guardar a água. “A maior parte da água não evapora: entra no solo e o alimenta. O sistema evita a evaporação”, garante.
*Este ensaio é resultado da parceria firmada entre a PÁGINA 22 e o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.
O SOL QUE NOS PROTEGE
Equipamento desenvolvido pelo Inpa possibilita desinfecção da água por meio da energia solar
O engenheiro florestal alemão Roland Vetter, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), deparou-se com uma situação insólita quando chegou à comunidade de Morada Nova, em Itamarati (AM), a 1.500 km de Manaus. Em 2007 ele foi ao local, onde vivem os índios Deni, para oferecer uma tecnologia de secagem de madeira. Mas ouviu dos índios que o maior problema deles era o acesso à água potável. “Eu nunca imaginaria que, no meio de tanta água, eles tivessem esse problema”, relata Vetter. Ouviu também que, em 2004, 11 índios, dos quais 5 crianças, haviam morrido de desidratação por diarréia e vômito.
Com isso, dedicou-se a criar um equipamento que pudesse purificar água em grandes quantidades e em locais remotos, usando energia solar. A máquina tem uma placa fotovoltaica que fornece energia para uma lâmpada de quartzo, ultravioleta, montada dentro de um tubo metálico. A água do Rio Xeruá, que banha a comunidade, é captada por uma bomba, passa pelo tubo e sai 100% desinfectada. O equipamento tem capacidade para limpar 44 litros por hora e custa, aproximadamente, R$ 7 mil. A lâmpada, de R$ 50, precisa ser trocada a cada 3 anos. O Inpa patenteou a invenção.
Hoje Vetter fornece o equipamento para oito aldeias, sendo a maior delas composta por cerca de 300 pessoas. “Finalmente, começamos a ver uma mudança na preocupação das pessoas com a água. Há três anos, eu tinha 50 equipamentos montados, e ninguém queria nem mesmo testar. Hoje, estamos iniciando uma parceria com um empresário interessado em investir no equipamento, e enviando sete máquinas para o Exército na Amazônia, com finalidade de teste. Eles nos solicitaram, pois têm o mesmo problema dos índios”, conta Vetter.
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O que podemos aprender com a atual crise de abastecimento, em “Nó em pingo d’água“
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O que empresas têm a ver com a preservação da água (e seu próprio futuro), em “A fonte secou“
Como usar melhor o recurso natural mais precioso, em “Saídas possíveis“