Uma distribuição mais igualitária de poderes tende a resultar em melhor qualidade ambiental. A renda per capita mais alta é insuficiente para reduzir externalidades negativas
O debate sobre a dinâmica da desigualdade social confunde-se com a própria história do pensamento econômico. O interesse no tema foi reacendido com a publicação de O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty. O polêmico livro retoma a discussão sobre a concentração de riqueza e desigualdade, revisitando as ideias do economista Simon Kuznets, especialmente a relação que ficou conhecida como Curva de Kuznets (CK).
Kuznets influenciou o debate sobre crescimento econômico e desigualdade, sugerindo que a relação entre desigualdade e nível de renda per capita seria representada por uma curva em forma de “U” invertido: o crescimento econômico estaria associado a um aumento da desigualdade para níveis de renda mais baixa, mas o contrário seria verificado para sociedades de renda elevada [1].
Posteriormente, diversos autores extrapolaram a hipótese de Kuznets para a esfera ambiental, relacionando o nível de degradação ambiental com o nível de renda. Entretanto, da mesma forma que Piketty usa dados de diversos países para embasar a hipótese de que a concentração de renda volta a aumentar com o crescimento da renda per capita, especialistas encontraram evidências de que a relação entre as variáveis de degradação ambiental e o nível de renda seria mais bem representada por uma curva em formato de “N”, indicando que, para determinadas dimensões da qualidade ambiental, a degradação volta a crescer com elevados níveis de renda [2].
[1] KUZNETS, S. “Economic growth and income inequality”. The American Economic Review, 1955.
[2] Exemplo dessa relação foi encontrado para as quantidades de SO2 e renda per capita por Gene Grossman e Alan Krueger, no artigo “Economic growth and the environment”. The Quarterly Journal of Economics, 1995.
Justificativas para essa nova dinâmica da CK original incluem tanto a redução dos salários de trabalhadores pouco qualificados, para a qual a globalização teve papel primordial, quanto mudanças de padrão tecnológico, que contribuíram para a redução de postos de trabalho por meio da automatização, aumentando a diferença entre salários de trabalhadores qualificados e não qualificados.
Globalização e progresso tecnológico também são explicações possíveis para o formato em “N” da CK ambiental. Quanto maior a distância entre produtores e consumidores, menor é a percepção destes sobre as externalidades negativas geradas. Afinal, é necessário algum tempo de reflexão para listar os possíveis impactos gerados pela produção de um novo equipamento eletrônico produzido na China. Já um indivíduo que mora no mesmo município onde uma indústria química está instalada percebe facilmente os danos que ela pode causar, o que desencadearia mudanças em seu comportamento de consumo.
De fato, os resultados empíricos corroboram a diferenciação de impactos com relação a sua abrangência geográfica. O primeiro ponto de reversão da curva, isto é, a diminuição da degradação conforme aumenta a renda per capita, seria observado apenas para aqueles indicadores aos quais os indivíduos são mais sensíveis, ou seja, cujo impacto é local. O comércio internacional contribui, assim, para um descolamento entre os impactos da produção e sua influência sobre mudanças no padrão de comportamento dos consumidores.
A tendência à desmaterialização –redução da energia e materiais necessários à geração de valor – suportada pelo avanço tecnológico, por sua vez, é acompanhada por um dilema que já foi batizado de paradoxo de Jevons e de efeito ricochete, pelo qual a economia gerada pela eficiência e os menores custos que proporciona acaba sendo usada na compra de outros serviços ou bens (mais em “Efeito Cilada”, edição 55). Ao dispormos de equipamentos mais eficientes, por exemplo, deixamos de poupar energia e recursos efetivamente, passando a consumir mais do mesmo bem e/ou de outros lançamentos de “última geração”.
Mais importante que estabelecer paralelos entre as possíveis explicações para as duas CKs é investigar elementos que podem exercer efeitos por trás de ambas. É fundamental explicitar que indicadores como nível de alfabetização, direitos políticos e liberdades civis, além da própria desigualdade de renda, são determinantes da degradação ambiental [3].
[3] TORRAS, M.; BOYCE, J. “Income, inequality and pollution: a reassessment of the environmental Kuznets Curve”. Ecological Economics, 1998.
A ligação efetiva entre as duas curvas nos permite concluir que uma distribuição igualitária de poderes, mantidas constantes as demais variáveis, tende a resultar em melhor qualidade ambiental e que uma renda per capita mais elevada por si só não é suficiente para reduzir as externalidades negativas geradas com o crescimento econômico.
De fato, o empoderamento dos cidadãos quanto aos bens ambientais e a conscientização sobre as consequências das externalidades podem ser elementos mais relevantes que o próprio progresso tecnológico não só para atingirmos menor desigualdade econômica e social, mas também para desenvolvermos as instituições necessárias à internalização das externalidades no sistema de preços da economia.
*Pesquisadora do Programa de Política e Economia Ambiental do GVces, com mestrado em Economia pela UFRJ[:en]Uma distribuição mais igualitária de poderes tende a resultar em melhor qualidade ambiental. A renda per capita mais alta é insuficiente para reduzir externalidades negativas
O debate sobre a dinâmica da desigualdade social confunde-se com a própria história do pensamento econômico. O interesse no tema foi reacendido com a publicação de O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty. O polêmico livro retoma a discussão sobre a concentração de riqueza e desigualdade, revisitando as ideias do economista Simon Kuznets, especialmente a relação que ficou conhecida como Curva de Kuznets (CK).
Kuznets influenciou o debate sobre crescimento econômico e desigualdade, sugerindo que a relação entre desigualdade e nível de renda per capita seria representada por uma curva em forma de “U” invertido: o crescimento econômico estaria associado a um aumento da desigualdade para níveis de renda mais baixa, mas o contrário seria verificado para sociedades de renda elevada [1].
Posteriormente, diversos autores extrapolaram a hipótese de Kuznets para a esfera ambiental, relacionando o nível de degradação ambiental com o nível de renda. Entretanto, da mesma forma que Piketty usa dados de diversos países para embasar a hipótese de que a concentração de renda volta a aumentar com o crescimento da renda per capita, especialistas encontraram evidências de que a relação entre as variáveis de degradação ambiental e o nível de renda seria mais bem representada por uma curva em formato de “N”, indicando que, para determinadas dimensões da qualidade ambiental, a degradação volta a crescer com elevados níveis de renda [2].
[1] KUZNETS, S. “Economic growth and income inequality”. The American Economic Review, 1955.
[2] Exemplo dessa relação foi encontrado para as quantidades de SO2 e renda per capita por Gene Grossman e Alan Krueger, no artigo “Economic growth and the environment”. The Quarterly Journal of Economics, 1995.
Justificativas para essa nova dinâmica da CK original incluem tanto a redução dos salários de trabalhadores pouco qualificados, para a qual a globalização teve papel primordial, quanto mudanças de padrão tecnológico, que contribuíram para a redução de postos de trabalho por meio da automatização, aumentando a diferença entre salários de trabalhadores qualificados e não qualificados.
Globalização e progresso tecnológico também são explicações possíveis para o formato em “N” da CK ambiental. Quanto maior a distância entre produtores e consumidores, menor é a percepção destes sobre as externalidades negativas geradas. Afinal, é necessário algum tempo de reflexão para listar os possíveis impactos gerados pela produção de um novo equipamento eletrônico produzido na China. Já um indivíduo que mora no mesmo município onde uma indústria química está instalada percebe facilmente os danos que ela pode causar, o que desencadearia mudanças em seu comportamento de consumo.
De fato, os resultados empíricos corroboram a diferenciação de impactos com relação a sua abrangência geográfica. O primeiro ponto de reversão da curva, isto é, a diminuição da degradação conforme aumenta a renda per capita, seria observado apenas para aqueles indicadores aos quais os indivíduos são mais sensíveis, ou seja, cujo impacto é local. O comércio internacional contribui, assim, para um descolamento entre os impactos da produção e sua influência sobre mudanças no padrão de comportamento dos consumidores.
A tendência à desmaterialização –redução da energia e materiais necessários à geração de valor – suportada pelo avanço tecnológico, por sua vez, é acompanhada por um dilema que já foi batizado de paradoxo de Jevons e de efeito ricochete, pelo qual a economia gerada pela eficiência e os menores custos que proporciona acaba sendo usada na compra de outros serviços ou bens (mais em “Efeito Cilada”, edição 55). Ao dispormos de equipamentos mais eficientes, por exemplo, deixamos de poupar energia e recursos efetivamente, passando a consumir mais do mesmo bem e/ou de outros lançamentos de “última geração”.
Mais importante que estabelecer paralelos entre as possíveis explicações para as duas CKs é investigar elementos que podem exercer efeitos por trás de ambas. É fundamental explicitar que indicadores como nível de alfabetização, direitos políticos e liberdades civis, além da própria desigualdade de renda, são determinantes da degradação ambiental [3].
[3] TORRAS, M.; BOYCE, J. “Income, inequality and pollution: a reassessment of the environmental Kuznets Curve”. Ecological Economics, 1998.
A ligação efetiva entre as duas curvas nos permite concluir que uma distribuição igualitária de poderes, mantidas constantes as demais variáveis, tende a resultar em melhor qualidade ambiental e que uma renda per capita mais elevada por si só não é suficiente para reduzir as externalidades negativas geradas com o crescimento econômico.
De fato, o empoderamento dos cidadãos quanto aos bens ambientais e a conscientização sobre as consequências das externalidades podem ser elementos mais relevantes que o próprio progresso tecnológico não só para atingirmos menor desigualdade econômica e social, mas também para desenvolvermos as instituições necessárias à internalização das externalidades no sistema de preços da economia.
*Pesquisadora do Programa de Política e Economia Ambiental do GVces, com mestrado em Economia pela UFRJ