Por Amália Safatle
“O filme Interestelar mostra uma sociedade no futuro próximo que só está preocupada com a sobrevivência. É uma sociedade de fazendeiros, excessivamente voltados para a terra. As plantações são dizimadas continuamente por pragas, porque a sociedade se concentrou em um só aspecto. Mas nós somos dois aspectos: terra e céu.” Assim Amâncio Friaça acaba resumindo o espírito desta entrevista concedida em um pátio do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo.
De composição química mais correlata à do Cosmos do que à da própria Terra, somos uma espécie de elo entre chão e espaço, entre o mundano e o firmamento. A dimensão infinita serve para colocar em perspectiva as questões práticas do dia a dia, e lá buscar respostas para as questões mais essenciais e problemas da nossa existência. “As pessoas estão esquecendo do céu. Isso pode ser muito perigoso para a sobrevivência da espécie humana.” Mas Friaça diz tudo isso com muita leveza, a de quem transita à vontade entre a solidez da terra e o ar rarefeito.
Quimicamente falando, a gente não é muito mais que H2O e carbono, por favor, me corrija. A escassez de água que sofremos hoje e a excesso de carbono que lançamos na atmosfera são sinais de que vivemos uma espécie de crise de identidade?
A gente é predominantemente CHON: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio. Essa é a maior parte de nossa composição. A Terra tem uma abundância extremamente grande de água, mas outros mundos do mesmo tamanho têm até mais água do que a Terra. A água é a terceira molécula mais abundante do Universo. O que falta pra gente é gerenciar bem a água doce, que é aquela de que alguns mamíferos precisam muito para viver. Para outros animais, tanto importa. Com respeito ao carbono, o carbono ligado à vida é o CH, o carbono orgânico. Na Terra, é produzido pelos seres vivos; no Universo,
é abundante.
Por isso, a investigação do cometa 67P é importante [quando a entrevista foi concedida, em meados de novembro, a nave Philae havia aterrissado no cometa fazia dois dias]. O cometa é cinzento, escuro, porque é coberto de alcatrão, de um monte de substâncias
orgânicas. No espaço é muito fácil fabricar e preservar alcatrão. Se não há vida, logo é transformado em CO2. Quanto mais CO2 atmosférico melhor, porque nossos corpos são feitos de CO2 atmosférico. Quanto mais CO2, mais quente e mais carbono disponível para construção de corpos. Quando há aumento de temperatura no planeta, aumenta dramaticamente o número de espécies. Então a gente gosta de carbono. Só que a sociedade foi construída sob limites muito estreitos, que necessitam de uma temperatura muito estável. Se aumentar a temperatura em 2 graus, 3 graus, essa estrutura não aguenta.
A problema é aumentar abruptamente o carbono, como se deu desde a Revolução Industrial, com muito carbono sendo jogado na atmosfera em curtíssimo espaço de tempo. Se o aumento fosse gradativo, daria tempo de as espécies irem se adaptando, não é?
Sim. O que está provocando a extinção das espécies? O aumento da temperatura sem dúvida, mas o mais importante é o uso errado da terra. Fronteiras políticas ignoram ecossistemas.
O corpo humano é composto em 97% por elementos químicos procedentes da hidrosfera e atmosfera, e por apenas 3% de elementos da litosfera. Isso nos torna praticamente alienígenas. Isso explica muita coisa do que fazemos com este planeta?
Toda a vida é alienígena na Terra.
A teoria é que a vida veio de fora? A Terra teria sido “polinizada”?
Não necessariamente por formas de vida, mas por moléculas orgânicas. É mais fácil produzir essas moléculas orgânicas fora da Terra. Juntando isso com uma situação planetária, pode-se agregar essas moléculas em formas de vida. A água não tem problema, em toda a parte do Universo existe água. É como no filme Interestelar [de Christopher Nolan, 2014]. O planeta tem uma imensa geleira. A maior parte dos planetas tem geleiras gigantes. Se está mais perto do Sol, tem água líquida, mas se colocar perto demais, entra em estado de vapor. A água é um grande solvente. Esse é o problema de se achar água doce.
A água doce é mais rara porque precisa ter menos sais dissolvidos?
Isso. Até uns 500 milhões de anos atrás, a vida só existia praticamente no oceano. Só depois da conquista da terra firme é que surgiram formas de vida que usam a água da chuva, que não tem sais minerais, o que é um desafio para os seres. Um organismo marinho primitivo, por exemplo, que começa a entrar por um rio que desemboca no mar, depois de um certo tempo pode explodir. Como a água do rio é doce, ele começa a inflar até estourar. Como temos esse chauvinismo de seres de água doce, a gente não tem ideia de que a maioria dos seres não precisa dela.
Um vez o físico Stephen Hawking afirmou que temos 200 anos para colonizar outro planeta, dado que a vida aqui ficará muito hostil, de tanto que estragamos o ambiente. O senhor concorda com essa visão? Em um artigo seu publicado na PÁGINA22, o senhor se referiu à Terra como um raro jardim da galáxia, e a nós, humanos, como jardineiros muito desastrados.
A perspectiva dele pode se realizar ou não, depende de como a gente vai gerenciar os recursos naturais. Existem alguns cálculos de que a população humana pode se multiplicar até um fator de 7 em relação ao atual, chegando a 50 bilhões e, se houver um gerenciamento, esse mundo será um mundo-jardim, com a maior parte das áreas intocadas. Infelizmente, com uma população muito menor que essa, a gente já está estragando bastante. Então tudo depende de decisões nossas. Também é preciso levar em conta que o Stephen Hawking tem muito senso de humor. Vai saber se isso foi dito seriamente ou não.
Mesmo com 50 bilhões será possível administrar?
Com 50 bilhões, é [possível termos uma] Terra-jardim. Com 1 trilhão, será Terra-devastada. Tem gente que fez essas contas, que trabalha com a evolução das biosferas.
Se tivermos mesmo de procurar um outro planeta é muito difícil encontrar um com as condições da Terra?
A Terra é planeta com condições muito particulares, que a protegem muito. Por exemplo, ela usufrui da existência de uma lua que estabiliza, de uma estrela amigável que não sofreu muitas explosões ao longo de vários bilhões de anos, de um sistema solar estabilizado, ou seja, a órbita da Terra não saiu do lugar também em vários bilhões de anos. Na maior parte dos sistemas não é isso que acontece. A Terra tem um campo magnético que a protege da erosão da atmosfera pelo vento solar, possui uma tectônica de placas que renova o CO2. Ter CO2 na atmosfera é uma benção; o problema, como falamos, é lançar o carbono de uma vez só.
Nossa sociedade é baseada na agricultura, e a próxima revolução talvez seja juntar agricultura com bactérias e assim produzir mais alimentos. No Brasil, a gente não vive isso, mas poderá viver em breve. Em vez de usar fertilizante (nitrogênio) sintético,você usa bactérias que fazem a fixação de nitrogênio. Se tem alguém trabalhando em prol da sustentabilidade, esse alguém está trabalhando na fusão entre plantas e bactérias e assim poderá alimentar muita gente, sem desequilibrar mais o ciclo do nitrogênio. O nitrogênio atmosférico é o nitrogênio molecular, N2, que é neutro. A gente precisa de nitrogênio hidrogenado, para ser absorvível pelos seres vivos. Durante toda a história da Terra isso foi feito pelas bactérias. Apenas no começo do século XX é que inventaram um processo que transforma o nitrogênio da atmosfera em amônia, o NH3, com o qual se fazem os fertilizantes. A maior parte do nitrogênio do nosso corpo é nitrogênio sintético, porque a maior parte das culturas cresceu usando o sintético. O grande problema é que essa transformação do atmosférico em formas hidrogenadas, oxidadas, cria ácido, substâncias corrosivas. Existem mecanismos bióticos que transformam esse excesso de substância hidrogenada em N2 , só que ultimamente não estão dando conta. Estamos lançando quatro vezes mais compostos hidrogenados ativos do que o sistema biológico é capaz de absorver, de transformar de novo em N2.
Qual o efeito disso? Acidifica a terra? Cria zonas mortas nas águas?
Sim, também provoca chuva ácida. Por enquanto, a gente está acumulando, então não se nota ainda o efeito. Este é o principal limite químico que está sendo ultrapassado no momento. Já o excesso de CO2 é mais notável por conta do aquecimento global. A vantagem do N ativo é que, tão logo você deixa de produzi-lo, o próprio sistema Terra se encarrega de retornar ao estado anterior.
Como?
Ele se decompõe, é instável. Depois de algumas décadas, apenas quimicamente, transforma-se em nitrogênio molecular e água. Já o CO2 é um gás de equilíbrio, ou seja, final. Os produtos finais são três: CO2, água e N2. Em uma visão astrobiológica, “equilíbrio” significa algo sem graça (risos). Qualquer sistema abiótico chega ao equilíbrio e fica lá por bilhões de anos. A atmosfera de Marte é a mesma há bilhões de anos. Já a da Terra não, ela evolui ao longo do tempo.
Quanto mais desequilíbrio, mais vida existe?
Sim, quando a gente desequilibra a atmosfera, em uma visão positiva, a gente está fazendo o que a vida faz.
Os ambientalistas usam o termo “equilíbrio” como algo positivo, que mantém a vida na Terra.
Sustentabilidade significa a manutenção de um estado de não equilíbrio por um período de tempo excessivamente longo. É isso o que a vida faz. A vida está aqui há 3,8 bilhões de anos.
Essa é a sua definição de vida, então? Qual a fronteira entre o vivo e o não vivo?
Para uma forma ser viva, existem três condições: ter uma fronteira bem definida em relação ao exterior – uma membrana, uma pele que se distingue do ambiente e se relaciona com ele; possuir um mecanismo metabólico, que vai construindo seu corpo; e ter um gerenciamento de informação, como o DNA e RNA fazem, e assim se reproduzir. Uma vez eu fui a um congresso em que apresentaram 60 definições de vida.
Se tem 60 definições, não tem nenhuma!
O chairman fez o relato final do congresso dizendo que terminaram o encontro sem saber o que era vida (risos).
A Astrobiologia envolve Astronomia, Biologia, Química, Geologia, Meteorologia e Nanociência, certo?
Entre outras disciplinas.
Qual o objetivo da Astrobiologia?
Estudar a vida no contexto cósmico.
E qual a importância disso? Fazer uma reflexão mais existencial, até?
Sim, porque há quatro grandes questões: quem somos, de onde viemos, para onde vamos e quem é o outro. “Quem somos” está ligada a “quem é o outro”. A gente se esquece de que isso só é definido por alteridade. Faz parte dessa busca do outro.
Então quando a gente pergunta “quem somos”, está admitindo que existe um outro.
Se você vai lá no sertão do Seridó [no Rio Grande do Norte], os profetas olham para o céu e perguntam se vai ter chuva. Eles também olham para o céu e o veem habitado por seres. O céu, dentro das culturas tradicionais, sempre foi habitado por formas de vida. Então é uma busca muito antiga.
Então não estamos sós?
A aposta é que não, mas até agora não encontramos ninguém (risos).
Os ufologistas dizem que encontramos.
É uma história muito interessante a dos ufologistas, né? (risos) Mas as formas de vida que a gente pretende encontrar em um primeiro momento são bem mais simples. Não são sequer animais, que são extremamente elaborados, com sistema nervoso. Queremos, por enquanto, encontrar bactérias. A gente fala em bactérias porque, em quase 3 bilhões de anos de vida na Terra, a única forma de vida que existiu foi bacteriana. E pode ser que nunca tivesse aparecido uma forma multicelular. A condição para surgisse a multicelular foi o aparecimento do oxigênio, que permitiu às células crescerem em tamanho e complexidade. O provável é que os demais planetas não tenham oxigênio. Na Terra, ele foi produzido por uma classe de bactéria, as cianobactérias, que poderiam não ter existido.
E como as cianobactérias surgiram?
Passaram a existir por uma evolução normal. Sem elas, a história da vida na Terra não teria passado das bactérias. Daí a importância da missão do cometa como o 67P, pois é coberto de substâncias orgânicas, que podem ser a base da vida na Terra. Em particular, eu gostaria de saber se os compostos orgânicos do cometa têm a mesma orientação espacial que as moléculas da Terra. Há moléculas com orientação para a esquerda ou para a direita. A vida só usa uma dessas duas orientações: todos os aminoácidos são levógiros (giram para a esquerda) e todos os açúcares são dextrógiros (giram para a direita). O próprio backbone do DNA gira no sentido levógiro, anti-horário. Saber o porquê dessa diferença de orientação é um dos mistérios da vida. Talvez isso tenha vindo do espaço.
O leitor pode se perguntar para que serve saber isso.
Para que serve viver, né? (risos) É a busca da origem. São as grandes perguntas que a gente faz. Eu não assisti ao filme Interestelar. Dei palpites sobre o filme sem tê-lo assistido. Ele mostra uma sociedade no futuro próximo que só está preocupada com a sobrevivência. É uma sociedade de fazendeiros, excessivamente voltados para a terra. E acabam perdendo o domínio das ciências básicas. Quem perde o domínio das ciências básicas não sabe como agir. As plantações são dizimadas continuamente por pragas, porque a sociedade se concentrou em um só aspecto. Mas nós somos dois aspectos: terra e céu.
[Um bem-te-vi passa cantando]
Ao mesmo tempo em que você está fazendo coisas muito práticas, está ligado a um contexto mais amplo. O contexto mais amplo é que dá a perspectiva de resolver as coisas mais práticas. As pessoas estão esquecendo do céu. Isso pode ser muito perigoso para a sobrevivência da espécie humana. O que o Stephen Hawking quis dizer, na verdade, foi o seguinte: se a gente focar só na Terra, estaremos fadados à extinção.
Veja o vídeo da entrevista.
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“O filme Interestelar mostra uma sociedade no futuro próximo que só está preocupada com a sobrevivência. É uma sociedade de fazendeiros, excessivamente voltados para a terra. As plantações são dizimadas continuamente por pragas, porque a sociedade se concentrou em um só aspecto. Mas nós somos dois aspectos: terra e céu.” Assim Amâncio Friaça acaba resumindo o espírito desta entrevista concedida em um pátio do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo.
De composição química mais correlata à do Cosmos do que à da própria Terra, somos uma espécie de elo entre chão e espaço, entre o mundano e o firmamento. A dimensão infinita serve para colocar em perspectiva as questões práticas do dia a dia, e lá buscar respostas para as questões mais essenciais e problemas da nossa existência. “As pessoas estão esquecendo do céu. Isso pode ser muito perigoso para a sobrevivência da espécie humana.” Mas Friaça diz tudo isso com muita leveza, a de quem transita à vontade entre a solidez da terra e o ar rarefeito.
Quimicamente falando, a gente não é muito mais que H2O e carbono, por favor, me corrija. A escassez de água que sofremos hoje e a excesso de carbono que lançamos na atmosfera são sinais de que vivemos uma espécie de crise de identidade?
A gente é predominantemente CHON: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio. Essa é a maior parte de nossa composição. A Terra tem uma abundância extremamente grande de água, mas outros mundos do mesmo tamanho têm até mais água do que a Terra. A água é a terceira molécula mais abundante do Universo. O que falta pra gente é gerenciar bem a água doce, que é aquela de que alguns mamíferos precisam muito para viver. Para outros animais, tanto importa. Com respeito ao carbono, o carbono ligado à vida é o CH, o carbono orgânico. Na Terra, é produzido pelos seres vivos; no Universo,
é abundante.
Por isso, a investigação do cometa 67P é importante [quando a entrevista foi concedida, em meados de novembro, a nave Philae havia aterrissado no cometa fazia dois dias]. O cometa é cinzento, escuro, porque é coberto de alcatrão, de um monte de substâncias
orgânicas. No espaço é muito fácil fabricar e preservar alcatrão. Se não há vida, logo é transformado em CO2. Quanto mais CO2 atmosférico melhor, porque nossos corpos são feitos de CO2 atmosférico. Quanto mais CO2, mais quente e mais carbono disponível para construção de corpos. Quando há aumento de temperatura no planeta, aumenta dramaticamente o número de espécies. Então a gente gosta de carbono. Só que a sociedade foi construída sob limites muito estreitos, que necessitam de uma temperatura muito estável. Se aumentar a temperatura em 2 graus, 3 graus, essa estrutura não aguenta.
A problema é aumentar abruptamente o carbono, como se deu desde a Revolução Industrial, com muito carbono sendo jogado na atmosfera em curtíssimo espaço de tempo. Se o aumento fosse gradativo, daria tempo de as espécies irem se adaptando, não é?
Sim. O que está provocando a extinção das espécies? O aumento da temperatura sem dúvida, mas o mais importante é o uso errado da terra. Fronteiras políticas ignoram ecossistemas.
O corpo humano é composto em 97% por elementos químicos procedentes da hidrosfera e atmosfera, e por apenas 3% de elementos da litosfera. Isso nos torna praticamente alienígenas. Isso explica muita coisa do que fazemos com este planeta?
Toda a vida é alienígena na Terra.
A teoria é que a vida veio de fora? A Terra teria sido “polinizada”?
Não necessariamente por formas de vida, mas por moléculas orgânicas. É mais fácil produzir essas moléculas orgânicas fora da Terra. Juntando isso com uma situação planetária, pode-se agregar essas moléculas em formas de vida. A água não tem problema, em toda a parte do Universo existe água. É como no filme Interestelar [de Christopher Nolan, 2014]. O planeta tem uma imensa geleira. A maior parte dos planetas tem geleiras gigantes. Se está mais perto do Sol, tem água líquida, mas se colocar perto demais, entra em estado de vapor. A água é um grande solvente. Esse é o problema de se achar água doce.
A água doce é mais rara porque precisa ter menos sais dissolvidos?
Isso. Até uns 500 milhões de anos atrás, a vida só existia praticamente no oceano. Só depois da conquista da terra firme é que surgiram formas de vida que usam a água da chuva, que não tem sais minerais, o que é um desafio para os seres. Um organismo marinho primitivo, por exemplo, que começa a entrar por um rio que desemboca no mar, depois de um certo tempo pode explodir. Como a água do rio é doce, ele começa a inflar até estourar. Como temos esse chauvinismo de seres de água doce, a gente não tem ideia de que a maioria dos seres não precisa dela.
Um vez o físico Stephen Hawking afirmou que temos 200 anos para colonizar outro planeta, dado que a vida aqui ficará muito hostil, de tanto que estragamos o ambiente. O senhor concorda com essa visão? Em um artigo seu publicado na PÁGINA22, o senhor se referiu à Terra como um raro jardim da galáxia, e a nós, humanos, como jardineiros muito desastrados.
A perspectiva dele pode se realizar ou não, depende de como a gente vai gerenciar os recursos naturais. Existem alguns cálculos de que a população humana pode se multiplicar até um fator de 7 em relação ao atual, chegando a 50 bilhões e, se houver um gerenciamento, esse mundo será um mundo-jardim, com a maior parte das áreas intocadas. Infelizmente, com uma população muito menor que essa, a gente já está estragando bastante. Então tudo depende de decisões nossas. Também é preciso levar em conta que o Stephen Hawking tem muito senso de humor. Vai saber se isso foi dito seriamente ou não.
Mesmo com 50 bilhões será possível administrar?
Com 50 bilhões, é [possível termos uma] Terra-jardim. Com 1 trilhão, será Terra-devastada. Tem gente que fez essas contas, que trabalha com a evolução das biosferas.
Se tivermos mesmo de procurar um outro planeta é muito difícil encontrar um com as condições da Terra?
A Terra é planeta com condições muito particulares, que a protegem muito. Por exemplo, ela usufrui da existência de uma lua que estabiliza, de uma estrela amigável que não sofreu muitas explosões ao longo de vários bilhões de anos, de um sistema solar estabilizado, ou seja, a órbita da Terra não saiu do lugar também em vários bilhões de anos. Na maior parte dos sistemas não é isso que acontece. A Terra tem um campo magnético que a protege da erosão da atmosfera pelo vento solar, possui uma tectônica de placas que renova o CO2. Ter CO2 na atmosfera é uma benção; o problema, como falamos, é lançar o carbono de uma vez só.
Nossa sociedade é baseada na agricultura, e a próxima revolução talvez seja juntar agricultura com bactérias e assim produzir mais alimentos. No Brasil, a gente não vive isso, mas poderá viver em breve. Em vez de usar fertilizante (nitrogênio) sintético,você usa bactérias que fazem a fixação de nitrogênio. Se tem alguém trabalhando em prol da sustentabilidade, esse alguém está trabalhando na fusão entre plantas e bactérias e assim poderá alimentar muita gente, sem desequilibrar mais o ciclo do nitrogênio. O nitrogênio atmosférico é o nitrogênio molecular, N2, que é neutro. A gente precisa de nitrogênio hidrogenado, para ser absorvível pelos seres vivos. Durante toda a história da Terra isso foi feito pelas bactérias. Apenas no começo do século XX é que inventaram um processo que transforma o nitrogênio da atmosfera em amônia, o NH3, com o qual se fazem os fertilizantes. A maior parte do nitrogênio do nosso corpo é nitrogênio sintético, porque a maior parte das culturas cresceu usando o sintético. O grande problema é que essa transformação do atmosférico em formas hidrogenadas, oxidadas, cria ácido, substâncias corrosivas. Existem mecanismos bióticos que transformam esse excesso de substância hidrogenada em N2 , só que ultimamente não estão dando conta. Estamos lançando quatro vezes mais compostos hidrogenados ativos do que o sistema biológico é capaz de absorver, de transformar de novo em N2.
Qual o efeito disso? Acidifica a terra? Cria zonas mortas nas águas?
Sim, também provoca chuva ácida. Por enquanto, a gente está acumulando, então não se nota ainda o efeito. Este é o principal limite químico que está sendo ultrapassado no momento. Já o excesso de CO2 é mais notável por conta do aquecimento global. A vantagem do N ativo é que, tão logo você deixa de produzi-lo, o próprio sistema Terra se encarrega de retornar ao estado anterior.
Como?
Ele se decompõe, é instável. Depois de algumas décadas, apenas quimicamente, transforma-se em nitrogênio molecular e água. Já o CO2 é um gás de equilíbrio, ou seja, final. Os produtos finais são três: CO2, água e N2. Em uma visão astrobiológica, “equilíbrio” significa algo sem graça (risos). Qualquer sistema abiótico chega ao equilíbrio e fica lá por bilhões de anos. A atmosfera de Marte é a mesma há bilhões de anos. Já a da Terra não, ela evolui ao longo do tempo.
Quanto mais desequilíbrio, mais vida existe?
Sim, quando a gente desequilibra a atmosfera, em uma visão positiva, a gente está fazendo o que a vida faz.
Os ambientalistas usam o termo “equilíbrio” como algo positivo, que mantém a vida na Terra.
Sustentabilidade significa a manutenção de um estado de não equilíbrio por um período de tempo excessivamente longo. É isso o que a vida faz. A vida está aqui há 3,8 bilhões de anos.
Essa é a sua definição de vida, então? Qual a fronteira entre o vivo e o não vivo?
Para uma forma ser viva, existem três condições: ter uma fronteira bem definida em relação ao exterior – uma membrana, uma pele que se distingue do ambiente e se relaciona com ele; possuir um mecanismo metabólico, que vai construindo seu corpo; e ter um gerenciamento de informação, como o DNA e RNA fazem, e assim se reproduzir. Uma vez eu fui a um congresso em que apresentaram 60 definições de vida.
Se tem 60 definições, não tem nenhuma!
O chairman fez o relato final do congresso dizendo que terminaram o encontro sem saber o que era vida (risos).
A Astrobiologia envolve Astronomia, Biologia, Química, Geologia, Meteorologia e Nanociência, certo?
Entre outras disciplinas.
Qual o objetivo da Astrobiologia?
Estudar a vida no contexto cósmico.
E qual a importância disso? Fazer uma reflexão mais existencial, até?
Sim, porque há quatro grandes questões: quem somos, de onde viemos, para onde vamos e quem é o outro. “Quem somos” está ligada a “quem é o outro”. A gente se esquece de que isso só é definido por alteridade. Faz parte dessa busca do outro.
Então quando a gente pergunta “quem somos”, está admitindo que existe um outro.
Se você vai lá no sertão do Seridó [no Rio Grande do Norte], os profetas olham para o céu e perguntam se vai ter chuva. Eles também olham para o céu e o veem habitado por seres. O céu, dentro das culturas tradicionais, sempre foi habitado por formas de vida. Então é uma busca muito antiga.
Então não estamos sós?
A aposta é que não, mas até agora não encontramos ninguém (risos).
Os ufologistas dizem que encontramos.
É uma história muito interessante a dos ufologistas, né? (risos) Mas as formas de vida que a gente pretende encontrar em um primeiro momento são bem mais simples. Não são sequer animais, que são extremamente elaborados, com sistema nervoso. Queremos, por enquanto, encontrar bactérias. A gente fala em bactérias porque, em quase 3 bilhões de anos de vida na Terra, a única forma de vida que existiu foi bacteriana. E pode ser que nunca tivesse aparecido uma forma multicelular. A condição para surgisse a multicelular foi o aparecimento do oxigênio, que permitiu às células crescerem em tamanho e complexidade. O provável é que os demais planetas não tenham oxigênio. Na Terra, ele foi produzido por uma classe de bactéria, as cianobactérias, que poderiam não ter existido.
E como as cianobactérias surgiram?
Passaram a existir por uma evolução normal. Sem elas, a história da vida na Terra não teria passado das bactérias. Daí a importância da missão do cometa como o 67P, pois é coberto de substâncias orgânicas, que podem ser a base da vida na Terra. Em particular, eu gostaria de saber se os compostos orgânicos do cometa têm a mesma orientação espacial que as moléculas da Terra. Há moléculas com orientação para a esquerda ou para a direita. A vida só usa uma dessas duas orientações: todos os aminoácidos são levógiros (giram para a esquerda) e todos os açúcares são dextrógiros (giram para a direita). O próprio backbone do DNA gira no sentido levógiro, anti-horário. Saber o porquê dessa diferença de orientação é um dos mistérios da vida. Talvez isso tenha vindo do espaço.
O leitor pode se perguntar para que serve saber isso.
Para que serve viver, né? (risos) É a busca da origem. São as grandes perguntas que a gente faz. Eu não assisti ao filme Interestelar. Dei palpites sobre o filme sem tê-lo assistido. Ele mostra uma sociedade no futuro próximo que só está preocupada com a sobrevivência. É uma sociedade de fazendeiros, excessivamente voltados para a terra. E acabam perdendo o domínio das ciências básicas. Quem perde o domínio das ciências básicas não sabe como agir. As plantações são dizimadas continuamente por pragas, porque a sociedade se concentrou em um só aspecto. Mas nós somos dois aspectos: terra e céu.
[Um bem-te-vi passa cantando]
Ao mesmo tempo em que você está fazendo coisas muito práticas, está ligado a um contexto mais amplo. O contexto mais amplo é que dá a perspectiva de resolver as coisas mais práticas. As pessoas estão esquecendo do céu. Isso pode ser muito perigoso para a sobrevivência da espécie humana. O que o Stephen Hawking quis dizer, na verdade, foi o seguinte: se a gente focar só na Terra, estaremos fadados à extinção.
Veja o vídeo da entrevista.